Os intensos debates contemporâneos
sobre sexo e gênero sugerem que parece haver mais dúvidas do que certezas sobre
o tema.
Beatriz Díez
BBC News Mundo
11 setembro 2020
E há quem acredite que
é hora de acabar com essas definições — ou, pelo menos, da forma como as usamos
atualmente.
Uma das polêmicas mais
recentes surgiu há alguns meses, quando declarações de algumas feministas,
vistas como discriminatórias em relação a transexuais, abriram uma caixa de
Pandora na qual diferentes grupos trocam acusações e parecem relutantes em
ouvirem uns aos outros.
A controvérsia envolve
o movimento feminista, o movimento LGBTQI+ (sigla internacional para lésbicas,
gays, bissexuais, transexuais, intersexuais, queers e mais), teóricos da
cultura queer (termo associado aos que não se encaixam em padrões
heteronormativos) e políticos de diferentes tendências.
Sexo
biológico ou designado
No senso comum, o sexo
é um rótulo que o médico nos dá ao nascer, de acordo com uma série de fatores
fisiológicos como a genitália, os hormônios e os cromossomos que carregamos.
A maioria das pessoas
recebe o gênero masculino ou feminino, e é isso que geralmente aparece na
certidão de nascimento.
Os fatores que
determinam o nosso sexo designado no nascimento começam logo após a
fertilização:
Cada espermatozoide
tem um cromossomo X ou Y. Todos os óvulos têm um cromossomo X. Quando o
espermatozoide fertiliza um óvulo, seu cromossomo X ou Y se combina com o
cromossomo X do óvulo.
Uma pessoa com
cromossomos XX geralmente tem órgãos sexuais e reprodutivos femininos e,
portanto, geralmente é designada como do sexo feminino.
Uma pessoa com
cromossomos XY geralmente tem órgãos sexuais e reprodutivos masculinos e,
portanto, geralmente é designada como do sexo masculino.
Isso não exclui outras
combinações de cromossomos, hormônios e órgãos que podem levar uma pessoa a se
considerada intersexual.
Nestes casos, o mais
comum é que os pais ou responsáveis decidam criar o bebê como menino ou menina,
embora haja cada vez mais países nos quais não é mais necessário determinar o
sexo — feminino ou masculino — na certidão de nascimento.
Alemanha, Holanda,
Austrália, Nova Zelândia, Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e alguns lugares
no México e na Argentina permitem haja um sexo distinto ou não-identificado.
Gênero e
identidade
O gênero é ainda mais
complexo do que o sexo.
Ele inclui papéis e
expectativas que a sociedade tem sobre comportamentos, pensamentos e
características que acompanham o sexo atribuído a uma pessoa.
Por exemplo, ideias
sobre a maneira que alguns esperam que homens e mulheres se comportem, se
vistam e se comuniquem ajudam a construir a concepção de gênero.
Geralmente também é
masculino ou feminino, mas em vez de se referir a partes do corpo, refere-se à
maneira como se espera que devamos agir de acordo com o sexo.
O sexo atribuído e a
identidade de gênero de algumas pessoas são praticamente os mesmos ou estão
alinhados. Estas pessoas são conhecidas como pessoas cisgênero.
Outras pessoas sentem
que o sexo que lhes foi atribuído no nascimento é diferente da sua identidade
de gênero. Elas são chamados de transexuais ou transgêneros e nem todas vivem
seus processos da mesma forma.
Há também aqueles não
se identificam com sexo ou gênero. Essas pessoas podem escolher rótulos como
"genderqueer", não binárias ou de gênero fluido.
Mas qual
é a discussão?
No centro do debate
atual está a batalha para estabelecer quem determina o gênero e quais os
efeitos que isso tem em termos jurídicos e políticos.
Na Espanha, por
exemplo, um projeto de lei trans que contempla a autodeterminação de gênero
está sendo discutido por políticos.
A proposta defende que
qualquer pessoa possa estabelecer seu gênero e que isso seja legalmente
reconhecido sem a necessidade de passar por processos médicos ou psicológicos.
Certos grupos
feministas, incluindo algumas mulheres com cargos no atual governo espanhol,
dizem temer que este tipo de legislação priorize o gênero em detrimento do sexo
designado e desconfigure a categoria das mulheres.
Para as críticas, a
medida traria efeitos negativos em políticas especificamente dirigidas a
proteger direitos femininos.
Por outro lado, os
defensores dessa lei, que já existe em nível regional, argumentam que ela
pretende incluir e garantir direitos para todas, sem a intenção de apagar
ninguém.
No Reino Unido, uma
discussão semelhante levou a uma briga entre feministas encabeçadas pela autora
de Harry Potter, JK Rowling, e parte do movimento transsexual que as acusou de
serem intolerantes e excludentes.
Comentando um texto
que falava de "pessoas menstruadas", Rowling afirmou: "Se o sexo
biológico não é real, a realidade vivida pelas mulheres globalmente acaba sendo
apagada. Eu sei e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo biológico
elimina a capacidade de muitas pessoas de analisar o significado de suas vidas.
Dizer a verdade não é discurso de ódio."
Sua afirmação foi
duramente criticada e rotulada como transfóbica.
Uma
preocupação 'recente'
O gênero como
construção social é um conceito difundido, mas relativamente recente, segundo
Maria Trumpler, diretora do departamento LGBTQ da Universidade de Yale (EUA) e
professora de estudos sobre mulheres, gênero e sexualidade.
"A crença de que
as pessoas são homens ou mulheres tem apenas 200 ou 300 anos. Eu diria que
surgiu na Europa no século 18, quando os governos começaram a querer
classificar as pessoas", disse Trumpler à BBC News Mundo, o serviço em
língua espanhola da BBC.
"As pessoas que
não se enquadravam claramente nas categorias de homem ou mulher compareciam
perante o juiz, passavam por exames médicos e eram questionadas se queriam se
casar com um homem ou uma mulher.
Dependendo da
resposta, lhes era atribuído um gênero", continuou.
Trumpler diz que
acompanha com fascínio a variedade de identidades e gêneros com que seus alunos
com idades entre 18 e 25 anos se apresenta na faculdade.
"Eles são jovens
de mente muito aberta que se questionam sobre o significa ter traços femininos
ou masculinos, ou quem foi que os rotulou de determinada maneira. ? É um
diálogo às vezes doloroso, mas também é alegre e criativo.
Eu acho que é
totalmente fascinante e adoro a energia que eles trazem", diz a
professora.
Desafiando
conceitos
Diante disso, há vozes
que se perguntam se os termos sexo e gênero, como os conhecemos, ainda são
válidos.
"O problema
básico é que termos um pensamento binário", diz Coral Herrera, escritora e
doutora em Humanidades e Comunicação pela Universidade Carlos III de Madrid, na
Espanha.
O gênero está dando lugar a múltiplas reflexões
"Eu rompi há
muito tempo com aquele binômio cultura-natureza (gênero-sexo) porque todas as
oposições que se colocam entre termos opostos como estes não nos permitem ver a
complexidade da realidade", ela afirma.
"Existem culturas
que pensam diferente. As culturas orientais unem o yin e o yang, o masculino e
o feminino, e também dizem que a doença e a morte fazem parte da vida, e não
são o oposto da vida", diz Herrera, que se define como uma feminista radical
abolicionista trans-inclusiva.
Herrera sublinha esta
última palavra para que não seja confundida com o termo feminista radical
trans-excludente (TERF), que ganhou grande relevância neste debate sobre sexo e
gênero.
Nesta era de
pensamento complexo e de pensamento em rede, não faz sentido ficar preso a uma
discussão de polos opostos. O que isso significa? Acho que sexo é uma questão
biológica, mas também é uma questão social e cultural, porque o ser humano não
pode ser considerado nem apenas um animal, nem apenas um ser cultural."
"Se ficarmos
presos nessa contradição de cultura x natureza ou sexo x identidade de gênero,
não avançaremos", enfatiza.
Sexo é
uma construção?
Mas se sexo é algo
fisiológico, como pode ser também uma questão social e cultural, como aponta
Coral Herrera?
Este ponto é defendido
pela teoria queer, corrente que surgiu no final dos anos 1980 nos Estados
Unidos e que se situa na interseção entre o feminismo e o movimento LGBTQ.
Sua representante mais
conhecida é a filósofa americana Judith Butler.
A partir dessa teoria,
diz-se que o sexo é uma construção, o que não significa que ele seja algo falso
ou artificial.
"O queer não quer
dizer que não existem características sexuais biológicas, mas que organizar
essas características do corpo em duas categorias únicas é uma construção
sóciopolítica", escreve a antropóloga Nuria Alabao no site ctxt.es.
Mau uso
da palavra gênero
Para o jornalista Ilya
Topper, usar a palavra gênero para descrever "estereótipos associados ao
sexo" é um erro, um neologismo derivado do inglês.
"'Gênero' tem
vários significados em espanhol [como no português]: pode descrever uma
categoria de animais (o gênero bovino), pode ser simplesmente sinônimo de
'mercadoria' (gênero alimentício) e pode ser usado para categorias gramaticais.
Mas nunca significa 'sexo'", afirma.
Para ele, o uso da
palavra gênero em expressões como "violência de gênero",
"enfoque de gênero" e "identidade de gênero" é uma
armadilha em que o feminismo caiu nos anos 1990.
"O patriarcado
oprime as mulheres por causa de seu sexo, não por causa de seu gênero",
denuncia Topper.
O sociólogo e sexólogo
Erick Pescador, especialista em gênero, masculinidades e igualdade, discorda.
"Em nossa
cultura, sexo e gênero andam juntos e as mulheres são discriminadas por causa
da instituição do gênero", disse ele à BBC Mundo.
"Quando uma
mulher não é discriminada? Quando ela é 'masculinizada', como por exemplo
acontece com a [chanceler alemã] Angela Merkel, que representa exatamente o que
o patriarcado deseja em termos de sua gestão política e econômica."
Evolução
da linguagem
Podemos continuar a
usar os mesmos conceitos?
Pescador afirma que
"o gênero ainda é atual" e afirma que "borrar as definições de
gênero, a ponto que as estruturas de diferenciação cultural desapareçam, deve
ser o fim, e não o princípio".
Para Coral Herrera, a
categoria mulher também não deve ser apagada.
"É totalmente
necessária porque é uma categoria de luta e não pode se diluir até que
consigamos acabar com a opressão, a discriminação e a violência", explica.
O debate sobre qual
linguagem usar é parte do recente confronto que se tornou particularmente
violento nas redes sociais entre alguns setores do feminismo e do movimento
trans.
"Acho que a
guerra se deve à forma como nos comunicamos", ressalta Herrera. "Não
há espaços seguros, livres de violência para falar sobre isso.
Percebo violência dos
dois lados, mas acho isso que vem de uma dor e uma raiva muito fortes."
Para Pescador, esse
confronto não deveria servir como distração "dos verdadeiros problemas".
"Se o foco ficar
na luta entre feministas e trans, o feminismo se enfraquece e o patriarcado
ganha", diz ele.
"A verdadeira
luta é desmontar a estrutura que sustenta as desigualdades entre os
sexos."
Quais são esses sexos?
O caminho para se chegar a uma resposta consensual promete ser longo e duro,
mas também interessante e enriquecedor.
Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-54123807.
Acesso em 16 out 2022.