Cleo Fante
janeiro de 2008
A violência e seus impactos são temas freqüentes nos debates
nacionais e internacionais, especialmente quando se desdobram em tragédias que
envolvem estudantes e instituições escolares. É fato que tais acontecimentos
trazem à luz questões até então negligenciadas no passado, como a violência
entre os estudantes.
Os trotes universitários, muitas vezes humilhantes e
violentos, por exemplo, ainda são pouco discutidos e só ganham visibilidade
quando os meios de comunicação veiculam cenas de barbárie. A literatura mostra
a existência desse costume em diversos países. No Brasil, datam da criação das
instituições acadêmicas. Como herança de Coimbra, os trotes em algumas
instituições brasileiras já fizeram – e continuam a fazer – inúmeras vítimas. O
primeiro registro de morte – de um aluno da Faculdade de Direito – ocorreu em
Recife, em 1831.
Ainda hoje, essas práticas são consideradas por muitos como
ritos de passagem – e esperadas com certa ansiedade tanto por calouros quanto
por seus parentes. Entretanto, aqueles que se dedicam ao estudo do tema
concordam que se trata de um ritual de exclusão e não de integração. Deve ser
considerado como um mecanismo de dominação fundamentado por discriminação,
intolerância, violência e preconceitos de classe, etnia e gênero. O abuso de
poder é sua marca principal.
Em razão de atitudes agressivas e abusos psicológicos, sob a
alegação de que se trata de “brincadeiras”, muitos estudantes se convertem em
“bodes expiatórios” do grupo, desde a sua entrada no ensino superior até a sua
conclusão e, em alguns casos, essa situação se estende na vida profissional. Os
que se negam a participar da “interação” são sumariamente coagidos,
intimidados, perseguidos ou mesmo isolados do convívio e das atividades dos
demais.
Em muitas situações, o trote, que seria um ato pontual, se
prolonga numa série de ações repetitivas e deliberadas. Sobre as vítimas dessa
perseguição recaem prejuízos, que podem afetar várias áreas de sua vida
afetiva, acadêmica, familiar, social e profissional. Sentimentos de
insegurança, inferioridade, incompreensão, revolta e desejos de vingança podem
resultar em stress intenso, depressão, fobias e culminar em suicídio e
assassinatos. Outros não resistem à pressão e abandonam a vida acadêmica,
carregando consigo a dor e a frustração de ter pertencido a uma instituição que
nada fez para romper com essa cultura.
Por outro lado, existem os que se resignam e aceitam
submeter-se às diversas formas de opressão e tortura, ou se tornam cúmplices
delas: respaldados na tradição dos trotes, justificarão seus atos de posterior
dominação. Há ainda aqueles que apenas presenciam o que acontece aos colegas,
mas, mais tarde, também se sentirão aptos a reproduzir a experiência.
Estamos, assim, diante de uma dinâmica repetitiva de abusos,
já que aquele que foi vítima tende a ser algoz no futuro – seja no ambiente
acadêmico, profissional, social ou na instituição familiar.
No ambiente profissional essas práticas ocorrem tantas vezes
que chegam a ser vistas como “normais”. De acordo com a freqüência e a
intensidade os atos podem se caracterizar como assédio moral. Há grande
probabilidade de que suas conseqüências afetem a saúde mental de trabalhadores,
comprometendo a auto-estima, a vida pessoal e o rendimento profissional,
resultando em queda da produção, faltas freqüentes ao trabalho, licenciamentos
para tratamento médico, abandono do emprego ou pedidos de demissão, alto grau
de stress, depressão e, em casos extremos, suicídio.
No contexto familiar, a violência pode ser vista como
“prática educativa” ou forma eficaz de controle, validada pela maioria que a
presencia ou a vive, incluindo a própria vítima. Tanto no contexto profissional
quanto na família há estreita ligação de dependência – afetiva, emocional ou
financeira – entre os protagonistas. Isso faz com que as vítimas em geral se
calem e carreguem consigo uma série de prejuízos psíquicos.
Pesquisas mostram que grande parte daqueles que sofreram
abusos psicológicos na infância utilizará na vida adulta essas práticas na
educação de seus filhos, acreditando ser esse o procedimento mais adequado.
Outros se tornarão submissos, passivos, indefesos, acreditando ser merecedores
dos maus-tratos. Muitos ainda reproduzirão a violência no espaço socializador
imediato à família, ou seja, na escola.
Assassinato psíquico
É na análise das relações entre os adultos e na observação
das interações de grupos de crianças na escola que se alarga nossa percepção
sobre o círculo vicioso de abusos. O que antes se acreditava ocorrer apenas nas
relações entre os adultos – descritas como padrões relacionais disfuncionais,
abusive relationships – se verifica também entre as crianças com idade igual ou
semelhante. Trata-se do bullying escolar: um conjunto de comportamentos
marcados por atitudes abusivas, repetitivas e intencionais e pelo desequilíbrio
de poder.
Bullying é um termo de difícil tradução na língua
portuguesa, assim como a dor e o sofrimento daqueles que são vítimas desse
fenômeno antigo, mas apenas recentemente identificado. Pode ser considerado um
problema mundial que ocorre em todas as escolas, independentemente de serem
públicas ou privadas, de sua localização ou dos turnos de funcionamento.
Trata-se de uma forma quase invisível, que sorrateiramente vai diminuindo o
outro, como se fosse uma espécie de “assassinato psíquico”. Suas conseqüências
afetam todos os envolvidos, porém, os maiores prejudicados são mesmo as vítimas
diretas, que suportam silenciosas o seu sofrimento.
Alguns motivos justificam o silêncio: o medo de represálias
e de que os ataques se tornem ainda mais persistentes e cruéis; a falta de
apoio e compreensão quando se queixam aos adultos; a vergonha de se exporem
perante os colegas; o sentimento de incompetência e merecimento dos ataques; o
temor das reações dos familiares, que muitas vezes incentivam o revide com
violência ou culpabilizam as vítimas.
Apesar de os educadores saberem da existência dessa forma de
violência, nenhuma ação efetiva foi adotada até os anos 70, por acreditarem ser
“brincadeira própria da idade” ou do processo de amadurecimento do indivíduo.
Infelizmente, muitos ainda têm esse olhar, o que colabora significativamente
para sua disseminação.
O despertar para a gravidade desse comportamento teve início
há cerca de duas décadas, primeiro na Suécia e anos depois na Noruega, onde a
questão se tornou tema de estudos científicos. O pesquisador norueguês Dan
Olweus, professor da Universidade de Bergen, reconhecido internacionalmente
como pioneiro nas investigações sobre o fenômeno, observou os altos índices de
suicídio entre os estudantes e constatou a relação com o bullying na escola.
Aos poucos, o tema despertou interesse em outros países,
inclusive no Brasil. Nossos estudos sobre a temática são recentes, datam de
2000, motivo pelo qual muitos ainda desconhecem o tema, sua gravidade e
abrangência. Apesar dos recentes estudos, pesquisas revelam que 45% dos
estudantes brasileiros estão envolvidos diretamente no fenômeno.
Assim como no mundo dos adultos, os autores de bullying
planejam meticulosamente seus ataques. Escolhem dentre seus pares uma “presa”
que pareça vulnerável – aquela que não oferecerá resistência, não revidará, não
denunciará e nem conseguirá fazer com que outros saiam em sua defesa.
Desferem seus golpes de modo a humilhar, constranger,
difamar, menosprezar, excluir a vítima e intimidá-la de forma direta ou
indireta. Para isso, se utilizam de várias estratégias, como apelidos
pejorativos, comentários maldosos, calúnias, gozações, piadas jocosas
relacionadas à sexualidade, insinuações, assédios, ameaças, danificação ou
furto de pertences, empurrões, chutes, socos, pontapés, invasões e ataques
virtuais, entre outras.
Esse tipo de comportamento preocupa pais e educadores de
todo o mundo, especialmente por envolver crianças muito novas. O bullying pode
ser identificado a partir dos 3 anos, quando a “intencionalidade desses atos já
pode ser observada”.
As meninas agem de forma ainda mais velada e cruel. Enquanto
os garotos escolhem aleatoriamente seus alvos, elas elegem as próprias amigas e
“executam o plano” no horário do lanche ou de lazer. Infernizam a vida da
colega e desferem contra ela diversas formas de maus-tratos. Uma das mais
freqüentes e dolorosas é a exclusão social: ficam “de mal” ou fingem não
reconhecer a vítima. Intimidam, constrangem, exigem que traga algo de casa para
a escola de que muitas vezes não dispõem, visando ridicularizá-la ou isolá-la.
Fofocam, inventam mentiras, ameaçam e contam seus segredos aos outros.
Riso e aplauso
Independentemente da idade dos envolvidos e do local onde
ocorrem os assédios, parece haver entre aqueles que presenciam a situação certo
grau de tolerância ou até mesmo de conivência. Em alguns casos, alegam que a
vítima “merece” hostilidade por causa do seu comportamento provocativo ou
passivo. Alguns chegam mesmo a rir e incentivar o que ocorre ao “bode
expiatório” – uma atitude que fortalece a ação dos autores e sua popularidade.
Outros temem ser o próximo alvo, preferindo, assim, fazer parte do grupo de
agressores, o que garante a sua segurança na escola.
Com a conivência do grupo e a omissão dos adultos, os
“valentões” tendem, cada vez mais, a abandonar sentimentos de generosidade,
empatia, solidariedade, afetividade, tolerância e compaixão. Falhas na formação
do caráter se tornam mais acentuadas e, infelizmente, muitos pais e educadores
não percebem – ou fingem não perceber – o que se passa.
Com o tempo, as forças do indivíduo que sofre os abusos são
minadas, seus sonhos desaparecem, aos poucos ele vai se fechando e se isolando.
Esse talvez seja o pior momento na vida das vítimas: o abandono de si mesmo.
Muitos não superam as humilhações vividas durante os anos de
escola e podem tornar-se adultos abusivos, depressivos ou compulsivos. Tendem a
apresentar problemas na vida afetiva, por não confiar nos parceiros. Na vida
laboral, podem desenvolver dificuldade de se expressar, principalmente em
público, evitar assumir postos de liderança e apresentar déficit de
concentração e insegurança, principalmente quando precisam resolver conflitos
ou de tomar decisões. Ou seja, tornam-se presa fácil do assédio moral. Quanto à
educação dos filhos, há grandes probabilidades de que se mostrem
superprotetores, projetando sobre eles seus medos, desconfianças e
inseguranças.
É importante, porém, lembrar que estamos nos referindo a um
comportamento repetitivo, deliberado e destrutivo, diferentemente de um
comportamento agressivo pontual, numa situação em que a criança, na disputa de
um brinquedo ou de seu espaço, ataca o outro com mordidas e socos ou com
xingamentos e ameaças. Não nos referimos aqui às divergências de pontos de
vista, de idéias contrárias e preconceituosas que muitas vezes redundam em
discussões, desentendimentos, brigas ou conflitos sociais ou às disputas
profissionais, em que o colega é visto como empecilho para uma promoção, por
exemplo. Também não aludimos a pais que, em sua ignorância, aplicam
“corretivos” nos filhos quando estes os desafiam, desobedecem ou desapontam.
Referimos-nos a uma ação violenta gratuita e recorrente,
baseada no desequilíbrio de poder. É a intencionalidade de fazer mal e a
persistência dos atos que diferencia o bullying de outras formas de violência.
É por meio da desestabilidade emocional das vítimas e no apoio do grupo que os
autores ganham simpatia e popularidade. A busca por sucesso, fama e poder a
qualquer preço, o apelo ao consumismo, à competitividade, ao individualismo, ao
autoritarismo, à indiferença e ao desrespeito favorecem a proliferação do
bullying. E seu potencial de destruição psíquica não cessa com o fim da
escolaridade ou da adolescência: se desdobra em outros contextos, num movimento
contínuo e circular.
O que se sabe é que esse movimento não pode mais ser
ignorado. É necessário estudá-lo à luz das diversas ciências, para que possamos
compreendê-lo melhor. É imprescindível a adoção de medidas emergenciais por
parte de autoridades, instituições, empresas, famílias, enfim, da sociedade,
uma vez que seus prejuízos afetam a todos os níveis e contextos sociais.
Ignorar a situação é abrir espaços para muitos protótipos de tiranos, que estão
hoje em pleno desenvolvimento. Afinal, no futuro, não serão estes que
ingressarão nas universidades, que desempenharão cargos importantes em grandes
empresas, que aplicarão leis e penas, que serão manchete em noticiários - sobre
violência, que nos representarão no poder e serão responsáveis pela educação das
crianças?
Conceitos-chave
Sentimentos de insegurança, inferioridade, incompreensão,
revolta e desejos de vingança causados por essa situação podem resultar em
stress intenso, depressão, fobias e culminar em suicídio e assassinatos. Muitos
não resistem à pressão e abandonam a vida acadêmica, carregando consigo a dor e
a frustração de ter pertencido a uma instituição que nada fez para romper com
essa cultura. Outros se resignam e aceitam submeter-se à opressão e tortura, ou
se tornam cúmplices delas: respaldados na tradição dos trotes, justificarão
seus atos de posterior dominação.
É a intenção de fazer mal e a persistência dos atos que
diferencia o bullying de outras formas de violência. Em razão de atitudes
agressivas e abusos psicológicos, sob a alegação de que se trata de
“brincadeiras”, muitos estudantes se convertem em “bodes expiatórios” do grupo,
desde a sua entrada no ensino superior até a sua conclusão e, em alguns casos,
essa situação se perpetua na vida adulta.
Humilhação e cabeças raspadas para “domesticar” novatos
Há muito tempo a violência entre estudantes tem sido um
traço característico das relações escolares. Entretanto, seu foco era
direcionado ora para a violência contra a escola e seus representantes (no caso
das rebeliões estudantis), ora para os próprios pares (como nos trotes).
No que se refere às rebeliões, registros mostram sua
ocorrência já no século XVII, na França. A de 1883, no Liceu Louis-le-Grand, em
conseqüência da expulsão de um aluno, tornou-se célebre. As revoltas de
estudantes contra os pedagogos eram constantes e marcadas por atos de
violência, inclusive com a utilização de instrumentos como bastões, pedras,
espadas e chicotes.
Já a origem dos trotes estudantis é incerta; porém, existem
registros de sua ocorrência na Idade Média. Um dos documentos mais antigos
desse tipo data de 1342 e refere-se à Universidade de Paris. Nas instituições européias,
era comum separar os novatos dos veteranos. Aos novos alunos era negada a
possibilidade de assistir às aulas junto com os demais, no interior das salas:
eles eram obrigados a se dirigir aos vestíbulos (pátios de acesso ao prédio) –
daí o uso do termo vestibulando para identificar aqueles que estão prestes a
entrar para a universidade.
Sob a alegação de profilaxia e necessidade de manter a
higiene, os novatos tinham a cabeça rapada e, na maioria das vezes, suas roupas
eram queimadas. Essa prática, no entanto, logo se converteu numa espécie de
culto à humilhação.
Freqüentemente, os trotes assumiam conotações sexuais,
transformando-se em humilhantes orgias para aqueles que eram submetidos a elas.
Com o tempo, os trotes ganharam ainda mais requintes de crueldade. Foram
registrados, sobretudo, nas universidades de Heidelberg (Alemanha), Bolonha
(Itália) e Paris (França), situações em que os calouros eram obrigados pelos
veteranos a beber urina e a comer excrementos antes de serem declarados
“domesticados”.
O julgamento dos monstros fedorentos
No início do século XX, na Alemanha, era comum que calouros
fossem obrigados a vestir roupas feitas de falsa pele de animal, com orelhas,
chifres e presas. Fantasiado, o jovem era arrastado pelos colegas até cinco ou
seis “juízes”, sob olhares atentos de uma grande platéia. Era insultado e
tratado como “monstro fedorento” por “assistentes” que em dado momento recebiam
ordens para “depená-lo”, cortando-lhe as orelhas com tesouras e os chifres com
serras; os dentes eram arrancados com tenazes. O nariz era limado e as nádegas,
“polidas”; o novato era sacudido, empurrado e, por fim, açoitado com varas.
Durante a tortura, o calouro tinha de se reconhecer culpado de inúmeros
“pecados”, sobretudo sexuais. E, como penitência, era obrigado a oferecer um
banquete aos veteranos.
Tragédia na escola
Os maus-tratos repetidos podem ao longo do tempo causar
graves danos ao psiquismo e interferir negativamente no processo de
desenvolvimento cognitivo, emocional, sensorial e socioeducacional. Quando os
ataques são crônicos, as vítimas podem se tornar agressoras; em casos extremos,
muitas vezes resultam em tragédias escolares, como as de Columbine (1999) e
Virginia Tech (2007), nos Estados Unidos, as de Taiúva (2003) e Remanso (2004),
no Brasil, e a da Finlândia (2007).
PARA CONHECER MAIS
Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e
educar para a paz. Cléo Fante. Verus, 2005.
Bullying, como combatê-lo? Prevenir e enfrentar a violência
entre jovens. A. Costantini. Itália Nova, 2004.
Centro Multidisciplinar de Estudos e Orientação sobre o
Bullying Escolar (Cemeobes): www.bullying.pro.br
Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/brincadeiras_perversas.html.
Acesso em 03 ago 2013.