Natália Eiras
28/03/2013
"Eu vou virar mulher". Foi com essa afirmação meio
fora do ritmo que um estudante de composição na Universidade do Estado de São
Paulo (Unesp) informou aos colegas que começaria a tomar hormônios para
encontrar a sua identidade sexual. A garota que agora responde por Beatriz
entrou na faculdade ainda como um menino e fez a revelação à sua turma no fim
do primeiro semestre. Com a ajuda das amigas, comprou roupas femininas e
maquiagem para, no primeiro dia de aula depois das férias de julho, chegar à
universidade já vestida como Beatriz. “O pessoal perguntava se eu tinha dado
uma de Laerte”, diz a jovem, se referindo ao cartunista que se tornou adepto do
cross dressing (prática na qual alguém passa a se vestir com figurino do sexo
oposto). Vamos omitir o nome masculino de Beatriz, porque ele é uma das reminiscências
do passado que ela prefere não dividir com (mais) ninguém.
A segunda surpresa referente à mudança de sexo de Beatriz é
que, mesmo na pele de uma mulher, ela segue interessada sexualmente em
mulheres. “Eu gosto e sempre gostei de meninas”, deixa claro Beatriz Calore, de
22 anos. Há apenas um ano fazendo o tratamento de mudança de sexo, a garota é
uma prova de que orientação e identificação sexual são coisas completamente
diferentes. Desde cedo, a estudante soube que gostava de mulheres, mas não se
sentia confortável em um corpo masculino. “Quando era adolescente, eu via um
desenho japonês sobre um colégio de lésbicas e achava aquilo o paraíso. Queria ser
uma das meninas, se relacionando com outras meninas”, explica, rindo, a jovem
violonista.
Atualmente, após passar por uma cirurgia plástica para
feminilizar o rosto, Beatriz quer encontrar o amor, como qualquer garota, mas,
além do preconceito generalizado contra gays, ela é uma nota destoante dentro
da própria população LGBTT. “Eu perguntava para as meninas no Leskut, o Orkut
das lésbicas, se elas sairiam com uma trans e a resposta era: ‘Eu não saio com
homens’”, explica Beatriz. “As pessoas veem o que era antes e não o que é
agora”. A seguir a entrevista que ela deu ao iGay .
iG: Como sua família lidou com a sua decisão?
Beatriz: Eu sou quase orfã. Minha mãe faleceu há uns quatro
anos e meu pai não fala comigo. Eu sei onde ele mora, ele sabe da situação em
que estou, mas não quer me ver. A última vez que o vi foi no ano passado, quando ainda não
tinha contado que eu sou... eu. Quanto ao meu padrasto, que era o marido de
minha mãe, é difícil ficar com a família dele. Algumas pessoas se sentem
incomodadas, acham que o convívio como uma trans pode atrapalhar a criação do
filho. Minha tia também demorou para aceitar. Ela tinha muitos preconceitos
baseados em noções erradas, achando que a prostituição era a única opção. Mas
ela viu que eu não vou largar os meus estudos para me prostituir.
Minha mãe faleceu e meu pai não fala comigo. Sei onde ele
mora, ele sabe da situação em que estou, mas não quer me ver. Na última vez que
o vi ainda não tinha contado que eu sou...eu.
iG: Quando percebeu que tinha algo de diferente em você?
Beatriz: Quando
criança, eu era bem afeminada, mas até uns sete, oito anos, eu não sacava nada.
Depois, aprendi a me relacionar com os garotos e por um bom tempo andei com
eles. Porque eu gostava e gosto de meninas. Meninas. Na adolescência, fui
passando a perceber que as coisas não eram muito bem assim, que eu me sentia
diferente. Comecei a ter interesses diferentes.
iG: Que tipo de interesses?
Beatriz: Pode parecer muito ridículo, mas enquanto os
meninos assistiam desenhos japoneses de ação, eu tinha me interessado muito por
um que era de romance e era sobre um colégio em que só tinha meninas lésbicas.
E me apaixonei por aquilo, pensava: “Nossa, como eu queria ser uma dessas
meninas”. Não é que eu queria ser um menino dentro desse colégio, eu queria ser
uma das alunas, se relacionando com outras alunas. Achava aquilo um paraíso
(risos).
iG: Você conseguiu lidar bem com a situação?
Beatriz: Mais ou menos. Comecei a me sentir mal por ser
homem, passei a desprezar os homens. Uma espécie de preconceito que se voltava
contra mim, de certa maneira. E em certo momento, percebi que gostaria
realmente de ser uma mulher. Antes disso, eu tinha muitos problemas com o meu
corpo, especialmente com as reações sexuais do corpo masculino, que eu achava
que não condiziam com a maneira que eu pensava sobre o amor, o romance, as
relações. Eu achava que era algo totalmente diferente, impulsivo, que não tinha
nada a ver comigo. Depois que eu comecei a tomar hormônio, acabou.
Tinha muitos problemas com o meu corpo, com as reações
sexuais do corpo masculino, que achava que não condiziam com a maneira que eu
pensava sobre o amor, o romance, as relações. Percebi que queria ser mulher.
Comecei a tomar hormônio e tudo isso passou.
iG: Quando tomou a decisão de mudar para o sexo com o qual
você se identifica?
Beatriz: Comecei a
fazer tratamento psicológico com 17 anos, mas não por causa disso. Eu falava
sobre essas questões com a minha psicóloga da época, mas ela não achava que eu
era trans, achava que era alguma fantasia. Depois passei por outros
profissionais até encontrar uma especializada em sexologia, que me diagnosticou
transexual e escreveu um laudo sobre a minha situação, me encaminhando para o
SUS. No ano passado, consegui começar a tomar hormônio. E, a partir do momento
em que comecei o tratamento, comecei a contar para as pessoas que sou
transexual.
iG: Você estava no meio do primeiro ano de faculdade quando
tomou a decisão. Como foi contar para os colegas?
Beatriz: Durante as férias, eu contei para os meus colegas
de classe e para algumas pessoas de outros cursos. As minhas amigas, então, me
ajudaram a comprar roupa e me ensinaram a me maquiar. No primeiro dia de aula,
todo mundo comentou e o pessoal ficava perguntando se eu tinha dado uma de
Laerte. Mas, em geral, eles entenderam bem.
iG: E como os seus amigos de infância estão lidando com a
sua transição?
Beatriz: Eles ainda têm problema para me chamar de Beatriz e
me dar beijo no rosto. Preferem apertar a minha mão e me chamar pelo que eu
era. Não se tornaram pessoas agressivas, não me tratam de maneira diferente,
nem pro bem e nem para o mal.
iG: Seus pais desconfiavam que você é trans?
Beatriz: Não. Eu não lembro de já ter falado alguma coisa
para minha mãe que desse indícios, mas ela achou que eu era gay. Ela chegou a
me perguntar diretamente e disse que, se eu fosse homossexual, ela não teria
problema nenhum e me apoiaria. Eu disse que não era, porque eu gosto de mulher.
E é verdade. Agora, eu sou uma mulher gay, mas não no sentido que ela estava
pensando na época.
iG: Você percebe que mesmo os gays demoram a entender a sua
orientação sexual?
Beatriz: Totalmente. Eu fiz uma conta no Leskut, o Orkut de
lésbicas, e tudo bem. Disfarçava, não falava que sou trans. Daí uma menina
perguntou, no chat geral, se eu era T. Todo mundo reagiu de maneira muito
estranha. Algumas pessoas disseram que tudo bem, mas outras acharam engraçado,
estranho. Eu já tinha perguntado em outro momento se elas sairiam com uma
menina transexual e a reposta foi: “Não, eu não saio com homem”. As pessoas
veem o que eu era antes e não o que sou agora.
iG: Você pensa em fazer cirurgia de mudança de sexo?
Beatriz: Eu quero tirar o pênis porque para mim ele não
serve para nada (risos). É uma coisa muito inútil, de que não vou sentir
absolutamente nenhuma falta. Mas algumas pessoas resolvem fazer cirurgia,
outras não. Não é porque quer manter o pênis que ela vai deixar de ser, de
pensar e de se vestir como mulher.
Quero tirar o pênis porque para mim ele não serve para nada.
É uma coisa inútil, de que não vou sentir a menor falta. Algumas pessoas
resolvem fazer a cirurgia e outras não. Não é porque vai manter o pênis que vai
deixar de ser, de pensar e se vestir como mulher.
iG: No que o pênis te atrapalha?
Beatriz: Estou há 9
meses sem manifestar nada. Tipo: “Por favor, saia daí, que eu preciso viver a
minha vida sexual de uma maneira normal”. As pessoas que querem sair com trans
que não é operada quase sempre é por causa da ideia da mulher com um pênis.
Então é uma coisa fetichista.
iG: Você já teve algum relacionamento anterior?
Beatriz: Não. Já tive um rolo uma vez, quando ainda não
tinha começado o meu tratamento, com uma travesti. Eu não tenho problema em
sair com uma menina trans. Eu a vejo apenas como uma garota. Nem lembro o que
aconteceu depois. Acho que não deu certo, né? (risos).
iG: Que outra mudança física você espera?
Beatriz: Estou procurando uma fonoaudióloga que me ajude na
transição de voz porque eu quero poder cantar. Se for profissionalmente,
melhor. É mais uma opção para mim como musicista. Não me identifico mais com o
violão, que é o instrumento que eu toco. E o canto é super versátil, posso
fazer qualquer tipo de música. Me interesso muito pela voz em geral, até porque
ela está ligada com a minha transição.
iG: Você sonha em se casar?
Beatriz: Eu penso a respeito. Já pensei que teria filhos,
queria poder engravidar, se fosse possível. Mas, por enquanto, é fora da
realidade. Estão fazendo testes na Rússia de transplante de útero, mas não sei
se é com transexuais ou apenas com mulheres. De qualquer forma, também penso em
adotar.
iG: Você quer ser ativista?
Beatriz: Não tenho estilo de ativista. Se posso falar alguma
coisa, falo. Acho legal poder dividir minha experiência, mas não sou o tipo de
pessoa que vai em passeata, que milita mesmo. Me importo com a causa, me
importo quando vejo um pastor Marco Feliciano lá na Comissão de Direitos
Humanos. Tem coisas que me preocupam e algumas que não são tão relacionadas a
mim. Por exemplo, em alguns movimentos transfeministas, enfatizam muito a
quebra da separação de gêneros, o que eu acho muito positivo, mas não me encaixo
nessa questão. Não me vejo como uma pessoa que está no meio dos dois sexos, me
vejo como mulher mesmo. Eu sou mulher e
é isso aí.
Ainda não tenho RG com esse nome, mas consegui fazer o
bilhete único como Bia e a minha foto. Fico mostrando para todo mundo.
iG: Como você escolheu o nome Beatriz?
Beatriz: O primeiro critério foi que eu não queria um nome
que tivesse correspondente masculino. Não existe Beatriz masculino. Então
sobraram algumas opções e eu escolhi o mais bonito. Eu ainda não tenho RG com
esse nome, mas consegui fazer o bilhete único como Bia, com uma foto minha. Eu
fico mostrando para todo mundo (risos).
Disponível em
http://igay.ig.com.br/2013-03-28/beatriz-22-transexual-eu-gosto-e-sempre-gostei-de-meninas.html.
Acesso em 14 out 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário