Luna D'Alama
03/03/2013
A identificação com o sexo oposto e o eventual desejo de uma
pessoa em assumir uma nova identidade de gênero começa geralmente na primeira
infância, entre os 4 e 6 anos de idade, segundo o psicólogo clínico e
psicanalista Rafael Cossi, autor do livro "Corpo em obra", lançado em
2011 após análise de seis biografias de transexuais.
Na última semana, o G1 publicou a história do menino
americano Coy Mathis, de 6 anos, que se identifica como menina e é aceito pelos
pais, mas tem tido problemas na escola ao querer usar o banheiro feminino.
Segundo a família, Coy age assim e brinca com bonecas desde que tinha 1 ano e
meio.
"Nessa idade, ainda não dá para falar se a criança será
um transexual no futuro. Isso porque não se sabe até que ponto ela só está
brincando de se comportar como alguém do outro sexo ou se esse já é um indício
de transexualidade", diz.
Transexual é a pessoa que tem um transtorno mental e de
comportamento sobre sua identidade de gênero, ou seja, nasce biologicamente com
determinado sexo, mas se vê pertencente a outro e cogita fazer tratamentos
hormonais e cirurgia para mudar o corpo físico. Ao contrário do que já
acreditaram psicanalistas no passado, esse não é um caso de psicose, com
alucinações e delírios, defende Cossi.
Brincadeira de criança – ou não
De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do
Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo, casos como
esse sempre existiram, e é importante diferenciar uma simples brincadeira de um
comportamento constante.
Nessa idade (até os 6 anos), ainda não dá para falar se a
criança será um transexual no futuro"
Rafael Cossi,
psicólogo clínico e psicanalista
"É muito comum crianças inverterem os papéis, e quando
é algo pontual não há maiores problemas. Mas, se isso se tornar um hábito
frequente, diário, o menino querer mudar de nome, usar presilha e brinco, é
indicado que os pais e o filho passem por uma avaliação profissional antes de
qualquer coisa, para ver se essa é uma questão familiar que a criança está
tentando resolver dessa forma ou se já é um transtorno de gênero", afirma.
O médico diz que cada caso precisa de um acompanhamento
diferente e individualizado. Se houver realmente um transtorno, ser violento
com a criança e censurá-la pode piorar muito a situação.
"A escola também não deve reprimir, mas chamar os pais,
explicar o que está acontecendo e aproveitar essa oportunidade para educar
também com as diferenças. E não é porque uma criança vê outra fazendo algo que
vai querer imitá-la, elas não são macaquinhos", destaca Saadeh.
Na opinião do psicólogo Rafael Cossi, os pais têm que
acompanhar o que está acontecendo e não adianta julgar, proibir, punir ou
bater.
"Se houvesse uma mentalidade mais aberta e liberal dos
pais, a escola aceitaria melhor. O medo do colégio é de como isso repercute para
as famílias e a possibilidade de perder alunos de uma hora para a outra",
diz.
Segundo Cossi, o preconceito da escola não é apenas contra
transexuais e homossexuais, mas contra deficientes, pessoas com síndromes e
tudo o que foge ao que é caracterizado "normal" – desde uma falta de
uniforme até um cadarço ou cabelo colorido.
"Já os pais costumam dizer que ficam preocupados não
tanto com o fato de o filho ser diferente, mas como será a vida dele em
sociedade, se os colegas vão tirar sarro, pois existe muita
discriminação", afirma.
Cossi cita o filme francês "Tomboy", de 2011, que
conta a história da menina Laure, de 10 anos, que muda de cidade e se apresenta
aos novos amigos como Mikhael. Até então, o fato de ela se vestir e se
comportar como um menino não parecia incomodar a mãe, mas, quando ela fica
sabendo que a criança "mudou" de nome, rejeita a situação.
"O filme é muito bom, é um relato, e não faz questão de
dar nenhuma pista sobre qual vai ser o futuro da menina. Isso fica em
aberto", aponta.
A escola não deve reprimir, mas chamar os pais, explicar o
que está acontecendo e aproveitar essa oportunidade para educar também com as
diferenças"
Alexandre Saadeh,
psiquiatra do HC-SP
Corpo x gênero
O psiquiatra do HC Alexandre Saadeh explica que há um
componente biológico muito importante na questão da identidade de gênero.
"Hoje em dia, sabe-se que existe um cérebro feminino e
um masculino, determinado no útero da mãe por hormônios masculinos circulantes.
E isso interfere no desenvolvimento cerebral para uma linhagem feminina ou
masculina. A cultura e o ambiente também têm importância, mas a determinação é
biológica", acredita o médico.
Segundo o psicólogo Rafael Cossi, a ideia de dimorfismo
corporal entre homens e mulheres, ou seja, indivíduos da mesma espécie com
características físicas (não sexuais) claramente diferentes, só ganhou força
com os avanços da biologia no século 19.
"Até então, prevalecia a ideia de isomorfismo, em que o
corpo feminino era visto apenas como uma versão do masculino. A vagina era
considerada um pênis invertido e o calor era o diferencial dos corpos, pois a
temperatura do homem era mais alta que a da mulher", afirma.
O psicólogo cita o livro "Inventando o Sexo – Corpo e
gênero dos gregos a Freud", em que o historiador e sexólogo americano
Thomas Laqueur estuda como o corpo foi encarado em vários momentos históricos.
Cossi também destaca que desejo sexual, gênero e identidade sexual são
conceitos bem distintos.
"Uma coisa é o desejo, a orientação, a prática sexual.
Outra é o gênero, como a pessoa se vê, seus gostos e comportamentos – algo
cultural, social, que varia com o tempo. Essa é a ideia do que um homem ou uma
mulher faz, como pensa, como se veste, quais traços o definem. Já a identidade
sexual envolve uma noção de inconsciente, inclui o fator psíquico, de como o
sexo se constrói na mente e reconhece o que é homem e o que é mulher",
esclarece.
É por isso que, segundo o psicólogo, existem transexuais
lésbicas ou gays, ou seja, pessoas que se transformam fisicamente com cirurgia
e hormônios, mas não necessariamente se atraem pelo sexo oposto. "Nossa
mentalidade ainda é muito heterossexual", ressalta.
'Sofria muito por ser diferente'
A transexual Brunna Valin, de 38 anos, conta que desde os 7
anos já sabia muito bem que não gostava de meninas. Aos 11 anos, vieram as
brigas no colégio, as surras dos meninos, até que ela deixou a escola na 7ª
série do ensino fundamental.
"Eu sofria muito por ser diferente. Com 12 anos, já me
apresentava como Brunna e me vestia de menina, com saia, sapato de salto,
batom, brinco. Queria ser igual à Roberta Close, era um espelho", lembra.
Em casa, dentro de uma família religiosa, em São José do Rio
Preto, no interior de São Paulo, a transexual também encontrou rejeição. Após
apanhar algumas vezes, deixou os pais aos 14 anos e foi morar com a avó, depois
com uma prima, até ficar sozinha.
"Tenho mais sete irmãos – dois homens e cinco mulheres.
Só um irmão me aceita muito bem. No começo, para eles eu era gay, não entendiam
essa questão de gênero. Meu pai morreu há três anos, ainda não aprovando",
revela.
Brunna mora há dois anos na capital paulista, onde trabalha
como orientadora sócio-educativa no Centro de Referência da Diversidade da ONG
Grupo pela Vida, e visita a família apenas uma ou duas vezes por ano.
"No fim de 2012, fui lá passar o Ano Novo e contei que
vou fazer a mudança de sexo. Percebi a rejeição no olhar, na fala deles.
Ficaram perguntando se já consegui trocar de nome, se já está no RG. Enfrento
isso todo dia, pois a sociedade nos vê como diferentes", diz.
Com 12 anos, já me apresentava como Brunna e me vestia de
menina, com saia, sapato de salto, batom, brinco. Queria ser igual à Roberta
Close, era um espelho"
Brunna Valin,
transexual
A transexual, que foi profissional do sexo dos 14 aos 36
anos, voltou a estudar e agora está prestes a concluir o ensino fundamental.
Este ano, pretende começar o médio e, depois, quer fazer faculdade de
psicologia. No currículo, ela também acumula cursos de formação de costureira,
cabeleireira e cozinheira.
Além disso, Brunna tem passado por um acompanhamento com
vários profissionais no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e
Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, da Secretaria de
Estado da Saúde. A meta é se submeter à cirurgia de mudança de sexo em 2014 –
da qual não tem medo de se arrepender.
"Tomo hormônio desde os 15 anos, e hoje aplico uma
injeção mensal à base de progesterona. Em maio do ano passado, coloquei
silicone nos seios e agora estou tirando os pelos do corpo com laser. Já fiz no
rosto e vou para os braços. Em agosto, também quero pôr prótese nos glúteos,
porque as características femininas estão no corpo inteiro, não é só fazer uma
vagina. Hoje nem gosto de olhar muito, aquilo não é meu", diz.
Dois anos de preparação
Antes de toda cirurgia para mudança de sexo, o Sistema Único
de Saúde (SUS) exige que a pessoa, com mais de 21 anos, faça pelo menos dois
anos de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, no qual seja diagnosticada
com distúrbio de identidade de gênero.
No ambulatório de São Paulo, criado em 2009 e considerado o
primeiro do tipo no país a atender exclusivamente travestis e transexuais, há
atualmente 1.500 pessoas cadastradas. Desse total, 65% (975) se consideram
transexuais – 915 são homens biologicamente que se sentem como mulheres e 60
são o contrário. Os outros 35% são travestis que desejam tomar hormônios e
mudar a aparência, mas não pretendem fazer a operação.
"Esses dois anos de acompanhamento que oferecemos com
psicoterapeuta, psiquiatra e endocrinologista servem para a pessoa ter certeza
sobre a cirurgia"
Angela Peres,
diretora técnica do ambulatório
para travestis e transexuais de SP
"Esses dois anos de acompanhamento que oferecemos com
psicoterapeuta, psiquiatra e endocrinologista servem para a pessoa ter certeza
sobre a cirurgia. Aí fazemos o encaminhamento ao HC. Nesse período, alguns
desistem. Outros vão para a Tailândia, mudam de sexo e se arrependem, porque lá
não existe todo esse protocolo daqui", diz a diretora técnica substituta
do ambulatório, Angela Peres.
Segundo ela, o local conta com uma equipe de 30
profissionais – entre clínicos gerais, endocrinologista, psiquiatra,
psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, urologista, ginecologista,
proctologista, assistentes sociais e recepcionistas – e atende brasileiros de
vários estados, como Minas Gerais, Bahia e Acre.
Cirurgia, felicidade ou arrependimento
Em 14 anos, o HC de São Paulo já operou 50 pacientes para
mudança de sexo, a maioria homem que se sente mulher, segundo o chefe de
urologia pediátrica e disfunção sexual do hospital, Francisco Dénes.
"Nunca vi um caso de alguém que tenha se arrependido.
Isso ocorre quando o paciente é mal orientado", ressalta.
Para trocar do sexo masculino para o feminino, em geral são
feitos tratamento hormonal e uma única cirurgia de 4 horas. Já o inverso exige
duas ou mais operações de cerca de 3 horas. Apesar de o primeiro caso, em que
há a desconstrução do pênis e dos testículos para a formação de uma vagina,
parecer mais tranquilo, o urologista diz que pode exigir retoques, ter mais
problemas anatômicos, risco de infecção, abertura dos pontos ou necrose (morte
do tecido).
"Eu achava que a minha felicidade era embasada na cirurgia.
Fiquei mais à vontade, mas um pênis e uma vagina não trazem felicidade para
ninguém. Nunca vou ser 100% mulher. Calço 42, minha mão é enorme, meu ombro é
largo"
Lea T,
transexual
O pós-operatório envolve o uso de curativos, sonda e pelo
menos sete a dez dias de repouso no hospital. Se não houver problema, a pessoa
pode voltar logo às atividade normais. E nos dois anos seguintes, pelo menos,
deve fazer acompanhamento médico.
Em entrevista ao Fantástico, em janeiro, a transexual Lea T,
filha do ex-jogador de futebol Toninho Cerezo, disse que se arrepende de ter
feito a troca de sexo em março do ano passado e que não aconselha o
procedimento para ninguém. Ela foi operada na Tailândia e passou um mês e meio
no hospital sentindo dores.
"Eu achava que a minha felicidade era embasada na
cirurgia. Fiquei mais à vontade, mas um pênis e uma vagina não trazem
felicidade para ninguém. Nunca vou ser 100% mulher. Calço 42, minha mão é
enorme, meu ombro é largo. Quando fiquei deitada na cama, entendi que isso tudo
é uma bobeira. É um detalhe importante para a sociedade", disse na época.
Segundo o psicólogo Rafael Cossi, ver a cirurgia como forma
de "normalização" social, para se adequar ao pensamento
heterossexual, é uma das maiores críticas à mudança de sexo. Ele cita o site
sexchangeregret.com, em que um grupo de transexuais arrependidos após a
operação contesta a ideia de que a troca de sexo é o fim para todos os males.
"Muitas pessoas não ficam em paz consigo mesmas, não
têm benefícios nem se veem de uma forma mais tranquila. Algumas desenvolvem
problemas que não tinham antes, como alcoolismo ou dependência de drogas. Isso
porque a cirurgia não altera só a imagem corporal para pertencer a outro sexo,
mas tem várias complicações, pelo fato de o indivíduo passar a apresentar outro
status na vida, um novo nome e ser visto de maneira diferente pela
sociedade", explica.
Mas, por outro lado, tem gente que é muito beneficiada com a
cirurgia, diz o psicólogo. "É caso a caso. Para a (ex-BBB) Ariadna, por exemplo,
pelo que ela deu de entrevista, foi algo muito bom", ressalta.
Desde 2008, o SUS já fez 2.451 cirurgias de mudança de sexo
de homem para mulher, único grupo de pacientes atendido atualmente, pelo fato
de o Ministério da Saúde considerar que são casos mais comuns (três homens para
uma mulher), mais bem padronizados e aprovados pelos conselhos de medicina.
Disponível em
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/03/transexual-pode-se-descobrir-ja-na-primeira-infancia-dizem-especialistas.html.
Acesso em 04 jun 2013.