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quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

As mutações na cultura, no narcisismo e na clínica: o que muda e o que faz falar os pacientes limítrofes?

Natasha Mello Helsinger
Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 36, n. 31, p. 69-93, jul./dez. 2014


Resumo: Investigaremos a questão narcísica nos estados limítrofes de analisabilidade (GREEN, 1975), situando-os no contexto da cultura do narcisismo (LASCH, 1979). Apresentaremos algumas transformações vividas pelo estatuto do narcisismo na obra freudiana, contemplando-o em sua dimensão constituinte, como também, patogênica. Em seguida, partiremos das propostas greenianas, para articular o narcisismo de morte à patologia limítrofe que, por sua vez, é caracterizada pela fragilidade narcísica e pelo desinvestimento objetal. Poderemos compreender, assim, de que formas as mutações na cultura e nas experiências narcísicas podem produzir e exigir mutações na clínica.




sábado, 14 de setembro de 2013

O silêncio na psicanálise

Alessandra Fernandes Carreira
10/09/2013

É tão vasto o silêncio da noite na montanha.
É tão despovoado.
Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, 
pensar depressa para disfarçá-lo.
“Silêncio”, Clarice Lispector

A descoberta do inconsciente e a invenção da psicanálise, entre o final do século XIX e o início do século XX, deveu-se em grande parte a uma atitude fundamentalmente simples de seu fundador, Sigmund Freud: ele se dispôs a ouvir o que suas pacientes histéricas, até então silenciadas pela religião e pela ciência, tinham a dizer sobre seu próprio adoecimento.

Nessa escuta, a princípio, Freud lançou mão da hipnose, que serviu para retirar suas pacientes desse silenciamento, colocando-as a falar. Essa “limpeza da chaminé”, como foi nomeado esse trabalho por uma das pacientes de Josef Breuer, parceiro de Freud, recuperava cenas que, após serem recordadas no estado hipnótico, proporcionavam um notável alívio sintomático. Mas, por outro lado, esse método revelou-se inapropriado porque trazia dois efeitos indesejados ao tratamento: 1. existiam pacientes que não se conseguia hipnotizar e 2. os sintomas histéricos ou retornavam depois de um tempo, ou ganhavam novos formatos (Freud, 1909).

Tendo obtido, através da utilização da hipnose, a prova de que era preciso sair do silêncio para que o tratamento pudesse acontecer, Freud iniciou uma busca por um método de trabalho que permitisse ultrapassar essa barreira sem, no entanto, alterar o estado de consciência do paciente. Vemos que ele se deu conta da importância de o paciente poder ouvir o que dizia, enquanto dizia. Isso significava deixá-lo exposto à surpresa, ao enigma e, principalmente, ao silêncio.

Nessa busca, que podemos qualificar como ética, Freud criou, após alguns ensaios, o método da “associação livre”, utilizado até hoje. Trata-se de o paciente dizer tudo o que lhe vier ao pensamento, inclusive, e sobretudo, aquilo que ele julgar absurdo ou irrelevante. Vemos aí que Freud fez uma aposta: a de que o paciente sabe algo que sua consciência afirma desconhecer, pois há algo silenciado ou, em termos freudianos, recalcado. Com isso, ele também reconheceu uma insistência do recalcado em retornar, mas de forma disfarçada, distorcida.

Porém, a aplicação desse método fez Freud deparar-se, em seu trabalho clínico, com barreiras que ele chamou de resistências, ou seja, impedimentos para a associação livre, destacando-se dentre elas o silêncio do paciente. Esse silêncio aparece na sessão sob vários formatos: não ter nada a dizer, não poder dizer o que pensou ou experimentar uma espécie de “branco”, um esquecimento.

Essas lacunas, que emergem na associação livre, logo revelaram-se extremamente importantes no trabalho da análise, já que Freud reconheceu nelas um apontamento da proximidade do recalcado, isto é, daquilo que estava silenciado por ser, justamente, o cerne do sofrimento atual do paciente, sendo sua recordação direta, por isso, severamente evitada pelo aparelho psíquico (Freud, 1914).

Vemos que não só o silêncio, mas a própria possibilidade de silenciar durante uma sessão, tornou-se muito importante para o trabalho psicanalítico, na medida em que se fez índice daquilo que não consegue passar à palavra e que, por isso, traumatiza. É claro que o esforço de uma psicanálise vai na direção dessa passagem à palavra, mas esse trabalho não pode ser forçado. Ele precisa ser realizado pelo próprio paciente, que se autoriza, em seu tempo e em uma relação transferencial com seu psicanalista, a ultrapassar essa barreira de silêncio, dissolvendo através da ética do bem-dizer alguns sintomas que serviam, até então, para trazerem de forma mascarada o que estava silenciado.

Diferentemente da hipnose, que fornece um comando para que o paciente fale, Freud introduziu uma nova forma de trabalhar, na qual o paciente fica exposto ao próprio movimento do inconsciente, caracterizado por uma espécie de pulsação, que se alterna em abertura e fechamento (Lacan, 1964), bem como por apresentar caminhos próprios e tortuosos, exigindo um trabalho de escuta e interpretação. Esse é o meio para o analisante iniciar uma pesquisa que é fundamental para que uma psicanálise, de fato, aconteça.

Realizada essa demarcação do silêncio como mola propulsora do tratamento e índice do recalcado, que marcam a própria invenção da psicanálise, é preciso que agora abordemos uma espécie de duplo estatuto que o caracteriza. O próprio Freud já o vislumbrou, uma vez que, ao lado desse silêncio que pode e precisa passar à palavra na cadeia associativa, ele também encontrou um outro: aquilo que ele chamou de “rochedo da castração”, intransponível e que confere uma dimensão interminável à uma psicanálise (Freud, 1937). Dito de outro modo: trata-se de um impossível, que diz respeito ao vazio e que nunca passa à palavra.

É interessante notar que essa duplicidade é reconhecida também por Roland Barthes (1978), em referência à língua clássica, sendo que ele utiliza dois termos em latim para abordá-la. Um deles é sileo, que remete a uma ausência de movimento e de ruído, uma espécie de virgindade intemporal das coisas que existe antes de elas nascerem ou depois de elas desaparecerem. É aí que encontramos a origem de silentes, que pode ser traduzido para o português, em uma de suas acepções, como “mortos”. Já o outro termo utilizado por Barthes é taceo, que diz respeito a um calar-se enquanto deixar de falar, isto é, um silêncio verbal.

Jacques Lacan (1964-1965) também remete a duas formas do silêncio, utilizando esses mesmos termos em latim. Define taceo como a dimensão do silêncio que é aquela da palavra não-dita, enquanto sileo é, para ele, um silêncio fundante, estruturante, que aponta para uma ausência essencial da palavra, isto é, um buraco de significação, uma impossibilidade de simbolização (Lacan, 1967) que é, em última instância, a própria morte.

Para abordar as origens desse silêncio estruturante, Lacan (1964-1965) refere ao grito, expressão primitiva e indiferenciada da necessidade no recém-nascido que, por estar fora do sentido, convoca o outro a um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Tal ato tem por efeito a transmutação do próprio grito em demanda, ou seja, a mera descarga fisiológica, animada por um desconforto, é tomada como um pedido de um sujeito.

Freud já apontava que a primeira e mítica experiência de satisfação depende dessa ação do outro. Entretanto, acreditava que, por ela ser inédita, é também irrecuperável enquanto tal. Ela estabelece, com isso, tanto uma expectativa e procura por satisfação nos mesmos moldes da experiência inaugural, quanto uma impossibilidade de reencontro do objeto, ou seja, um vazio contínuo e constante para o sujeito, que nenhum objeto substituto pode preencher.

Isso mostra que, para além da demanda, que toma o lugar da necessidade através de um ato interpretativo do outro, surge também o desejo, pois há sempre uma insatisfação em toda e qualquer satisfação, há sempre falta. Dito de outro modo: o significante não dá conta do real, nem tudo passa à palavra, há sempre um resto. Em virtude dessa impossibilidade, podemos tomar o desejo, então, como oriundo do próprio silêncio que surge junto com o significante.

Assim, o grito não se perfila sobre um fundo de silêncio, pelo contrário: ele o faz surgir como silêncio (Lacan, 1964). Referindo ao quadro O grito (1893), de Eduard Munch, Lacan chama a nossa atenção para esse ser de aspecto estranho, que tapa as orelhas e escancara a boca em um grito que, literalmente, parece provocar e sustentar o silêncio. “O grito faz o abismo onde o silêncio se aloja.” (Lacan, 1964-1965, p. 217).

Esse abismo obriga o sujeito a uma retomada que Lacan chama de fantasia: uma construção significante que procura escamotear esse vazio ou, como nos diz Freud (1908), que procura concertar a realidade insatisfatória e realizar, sem realizar, o desejo. Assim, Lacan define a fantasia como algo que se interpõe à verdade, tal qual uma tela colocada no caixilho de uma janela. Isso é incrivelmente bem ilustrado em uma série de quadros de René Magritte, que trazem janelas justamente nessa condição de anteparo, especialmente um deles, intitulado A condição humana, de 1935. Para Lacan, “Seja qual for o encanto do que está pintado na tela, trata-se de não ver o que se vê pela janela.” (Lacan, 1962-1963, p. 85). E o que se vê pela janela? Nada.

Vale ressaltar que, embora inconfessável (Freud, 1908), por estar na lógica significante, a fantasia pode passar à palavra, isto é, ao saber. Mas, para isso, é preciso ultrapassar uma barreira: a da vergonha e da culpa. Essa travessia, embora realizada na cadeia associativa, conduz ao encontro derradeiro com o inominável, com a verdade que só pode ser meio-dita (Lacan, 1969-1970), o que estabelece a seguinte direção para uma psicanálise: é preciso atravessar taceo para atingir, embora não dizer, sileo.

Destarte, uma psicanálise trabalha nessas duas formas do silêncio, buscando trazer à palavra o que deixou de ser dito, por um lado, e cernindo aquilo que não pode ser dito, ou seja, apontando para essa impossibilidade estrutural e estruturante de sileo. Embora isso tenha uma dimensão trágica, tem também uma dimensão fecunda, à medida que libera o sujeito de uma esperança de completude que o mantém alienado ao desejo do Outro, desejo esse que se revela, afinal, sem nenhuma substância, mas sim como pura falta.

Referências bibliográficas
Barthes, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Freud, S. (1908). "Escritores criativos e devaneio". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, pp. 149-161.
Freud, S. (1909). "Cinco lições de psicanálise". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XI, pp. 13-57.
Freud, S. (1914). "Recordar, repetir e elaborar". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XII, pp. 193-206.
Freud, S. (1937)." Análise terminável e interminável". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXIII, pp. 247-288.
Lacan, J. (1962-1963). O Seminário de Jacques Lacan, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964). O seminário de Jacques Lacan, livro 11: Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964-1965). Problemas cruciais para a psicanálise. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife. (publicação para circulação interna)
Lacan, J. (1966-1967). La logique du fantasme. Seminário inédito. (mimeo)
Lacan, J. (1969-1970). O seminário de Jacques Lacan, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lispector, C. (1998). "Silêncio". In Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco.


Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=91&id=1125. Acesso em 10 set 2013.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Psicanálise do homem desbussolado

Jorge Forbes

Aforismo é uma sentença que em poucas palavras se compreende. Nesta coluna, proponho um formato diferente ao leitor como maneira provocativa de percebermos como estamos sendo confrontados a frases sintéticas. Proponho alguns aforismos sobre as mudanças necessárias a uma Psicanálise do Século XXI. Informações de relevância, porém concisas, o que obriga a cada um por de si, ao completá-las.

Freud teve a genialidade de propor uma estrutura capaz de esquadrinhar a experiência humana em um mundo pai-orientado: o complexo de Édipo. Um standard freuddiano, não um princípio.

Foi Jacques Lacan quem deu o alerta da necessidade de uma Psicanálise além do Édipo. Uma Psicanálise capaz de acolher um homem cujo problema não está mais nas amarras de seu passado - o que justificou a expressão "cura da memória" -, mas uma Psicanálise para o homem que não sabe o que fazer, nem escolher entre os vários futuros que lhe são possíveis hoje: sem pai, sem norte, sem bússola.

Tempo incompleto

Antes, as pessoas se queixavam por não conseguirem atingir os objetivos que perseguiam. Hoje, quase ao avesso, as pessoas se queixam pelas múltiplas possibilidades que se oferecem.

Se ontem se analisava para se compreender mais, para ir mais fundo, hoje se dirige o tratamento ao limite do saber, aonde surge a necessidade da aposta, na precipitação de um tempo sempre incompleto.

Se ontem se fazia análise para obter uma ação garantida, livre de influências fantasiosas, hoje, nenhuma ação é assegurada em um justo saber, toda ação é arriscada e inclui a responsabilidade do sujeito.

Se ontem os analistas se limitavam em sua práxis ao espaço do consultório, hoje haverá Psicanálise onde houver um analista, e ele é necessário nos mais diversos locais da experiência humana, muito além dos espaços de saúde.

HOJE, O QUE IMPORTA É RETIFICAR A POSIÇÃO DA PESSOA EM RELAÇÃO AO RADICAL DESCONHECIMENTO DO REAL

Quando a palavra não é mais necessária para intermediar o que se quer, para refletir sobre o que se teme, para inquirir o que se ignora; quando a palavra perde sua função de pacto social, ficamos suscetíveis ao curtocircuito do gozo. O gozo que prescinde da palavra é, em consequência, ilógico e desregrado.

Hoje estamos no momento do gozo ilógico e desregrado. Alguns exemplos dentre os mais notáveis são as toxicofilias, o fracasso escolar, a delinquência juvenil, as doenças psicossomáticas. Em cada um desses quadros podemos destacar a impotência da palavra dialogada para alterar o mal-estar da pessoa.

Gozo desregrado

Miremo-nos nos exemplos dos próprios adolescentes, os que mais sofrem os curtos-circuitos do gozo. Vejamos as soluções que eles encontram para ordenar este gozo caótico. O nome é: "esportes radicais". No ar: paraglider; na terra: alpinismo; no mar: kite-surf. Todos eles, no limite do dizível, tentativas de captura direta do gozo.

O fracasso escolar, a toxicomania, as bulimias, as anorexias, a violência despropositada têm em comum a impossibilidade de serem explicados. Suas causas não são decifráveis por via alguma: da Medicina, da Psicologia, da Pedagogia. Não explicáveis, não exclui que sejam tratáveis.

Lacan propôs duas clínicas: uma primeira, a da palavra decifrada, que levantando o recalque, alivia o sofrimento, e uma segunda, a clínica do gozo, onde a palavra serve para cifrar, para marcar, tal qual o soci do alpinista, a dura pedra do gozo a ser conquistado.

Os novos sintomas, por surgirem do curto circuito da palavra, são resistentes ao tratamento pela associação livre. De uma clínica do esclarecimento, vamos para a clínica da consequência.

Passado e futuro

A Psicanálise no tempo de Freud visava descobrir os impasses, os traumas que impediam uma pessoa de alcançar o futuro que idealizava. O futuro era claro, difícil era seu acesso. A Psicanálise no século XXI não é um tratamento do passado, mas, ao contrário, é invenção de um futuro.

Freud escreveu três famosos textos sobre a organização social: Totem e Tabu, Futuro de uma Ilusão e Mal estar na Civilização. É nossa tarefa, hoje, reinterpretar essa sociedade, não mais à luz do Complexo de Édipo, mas à luz de um novo amor além do pai, o que exigirá falarmos da responsabilidade de cada um ante sua escolha.

Se antes, o objetivo de uma análise, com Freud, era o de se conhecer melhor, hoje, com Lacan, o que importa é retificar a posição da pessoa em relação ao radical desconhecimento do Real, do "que não tem nome nem nunca terá", levando-a a inventar um futuro e a sustentar esta invenção.

Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/53/artigo174081-1.asp. Acesso em 19 dez 2012.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Uma luz sobre a violência

Lucia Rocha

Origens do comportamento violento. Explicar certas condutas violentas, muitas vezes, sem motivo aparente, apenas pelas dimensões objetivas - como falta de escolas, desemprego, pobreza e outras variáveis estruturais –, não deixa de ser pertinente, mas tem se mostrado infrutífero. Novos enfoques, em especial os que levam em conta as questões subjetivas, parecem oferecer respostas mais plausíveis ou, ao menos, mais condizentes com os anseios dos que querem encontrar ‘saídas’, enxergando com mais clareza as causas desse fenômeno.

Grande parte das pesquisas realizadas pelo viés socioclínico aponta como causas do problema a falta de limites resultante da ausência de um psiquismo equilibrado, para uma carência de visibilidade e da inserção dos interditos sociais fundamentais, além de denunciarem o declínio da função paterna e enfraquecimento das referências afetivas essenciais. Alguns sociólogos, psicanalistas e antropólogos abordados confirmam essa tese.

Há a armadilha do costume que se tem de definir pobreza, 
desigualdade e vontade política como 
causas da criminalidade

O antropólogo e doutor em Ciência Política, Luiz Eduardo Soares, autor de Elite da tropa - em parceria com André Batista e Rodrigo Pimentel, livro que fundamentou o polêmico filme Tropa de Elite - mesmo não trabalhando com a abordagem clínica, defende a necessidade de se enxergar as coisas por esse ângulo, quando se trata de querer entender a violência desses tempos. Ele expressa esse pensamento em diversos trabalhos que envolvem o tema na relação com a segurança pública, a exemplo de artigos e obras como Cabeça de Porco, Segurança tem saída e Legalidade libertária. “Não há como mudar a realidade se não a compreendermos”, diz.

História de vida

Há cinco anos trabalhando na perspectiva da Sociologia Clínica com presidiários homens e mulheres – a maioria entre 18 e 28 anos - no sistema prisional tradicional e no sistema Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), Vanessa Barros tem mostrado em suas pesquisas o sistema prisional a partir da ótica daqueles que estão presos, tentando compreender o sentido do encarceramento e suas repercussões na vida dos sujeitos e de seus familiares. “Buscamos avaliar as propostas de ressocialização que o sistema oferece – especialmente o trabalho – com o objetivo de instruir políticas públicas que considerem os detentos como sujeitos em situação de prisão. Em função do potencial de agressividade, a sociedade se vê, permanentemente, ameaçada de desintegração, vulnerabilidade e não mais como criminosos que têm que apodrecer nas piores condições”, expõe.

Para ter acesso à história social na qual essas pessoas estão inseridas, a pesquisadora utiliza o método de recolhimento de histórias de vida. Assim, ela enxerga a violência sob outro ângulo: a violência da qual todos os que estão presos são vítimas ao longo de sua existência, seja a violência concreta - espancamentos, abusos sexuais, todo tipo de carência material - seja a violência simbólica - abandono e desamparo, tanto familiar quanto por parte dos poderes públicos, falta de referências familiares sólidas e ausência de outras instâncias importantes como escola e cultura.

Analisando o olhar radical da psicanálise, o caminho quase sempre seguido para o estudo da subjetividade humana foi o que fundamentou o trabalho Vida e Morte: uma batalha de gigantes, da pesquisadora Ruth Vasconcelos, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutora em Sociologia, membro do Toro de Psicanálise (Centro de Formação Psicanalítica de Maceió) e autora de livros sobre a violência, a professora faz uma interseção entre Sociologia e Psicanálise. A referência utilizada é a obra O Mal- Estar na Civilização, de Sigmund Freud, na busca de esclarecer a sensação de se estar vivendo um descontrole, em que a violência se avoluma de forma difusa e, aparentemente, sem causa.

A Psicanálise parece arrancar o véu de ilusões que o ser humano tem sobre si mesmo, lançando verdades que embaraçam suas expectativas de perfeição. Freud foi enfático ao afirmar que o ser humano tem inata inclinação para a crueldade destrutiva; que a agressividade não é um defeito de uma outra criatura – “é um mal substancial” – e que este é o maior entrave ao construto da civilização.

Segundo Ruth, há, em toda pessoa, pulsões genuínas (desejos meio que incontroláveis e, quase sempre, inconscientes) de vida e de morte. A pulsão de morte se expressa nos atos de destruição e agressão; a pulsão de vida nos atos de preservação e conservação. As duas seriam mutuamente mescladas em proporções variadas e muito diferentes, portanto, quase irreconhecíveis a julgamentos. “Registros da história humana mostram o quanto de atrocidades, humilhações, torturas, mortes e horrores os homens são capazes de produzir quando suas pulsões destrutivas e agressivas estão destravadas de interdições”, assinala a pesquisadora.

Em função deste potencial de agressividade, a sociedade se vê, permanentemente, ameaçada de desintegração. Há uma luta interior e constante entre as pulsões de vida e de morte – ‘uma batalha de gigantes’, diz Ruth Vasconcelos usando a expressão de Freud.

Todos almejam a felicidade. No pensamento freudiano, o ser feliz vincula-se à plena satisfação dos desejos, ao viver sem limites. Viver em coletividade, no entanto, exige renúncia: não se pode fazer tudo o que se quer. Existe um ideal cultural e, a partir dele, foram estabelecidos limites e organizadas instâncias reguladoras das relações sociais – as leis. “Mas tudo isso se contrapõe à natureza original do homem. No intuito de restringir os movimentos pulsionais que podem gerar conflitos e desavenças no convívio social, os homens trocaram parte de sua liberdade por uma parcela de segurança”, analisa a pesquisadora.

No pensamento freudiano, o ser feliz vincula-se à plena satisfação dos desejos, ao viver sem limites, porém viver em coletividade, no entanto, exige renúncia e o cumprimento das regras reguladoras das relações sociais: as leis

Porém, na atualidade, esse pacto de convivência social está alterado. “Há uma profunda esgarçadura do tecido social: as instituições que assegurariam esse pacto passam por uma crise de legitimidade e produzem a destituição dos referenciais e dos interditos que são pressupostos para a vida em comum”, diz Ruth, observando que, sem o exercício dessas instituições, as pulsões destrutivas se liberam e o homem adentra espaços interditos.

Nesse ponto, entra-se no mérito do atual declínio da metáfora paterna que se traduz pela crise de autoridade das instituições coletivas que representam o ‘lugar do pai’ em sua função de interdição – seja um pai real ou simbolicamente constituído na figura de familiares, escola, instituições religiosas, organizações do mundo do trabalho e do político: “A falta da inscrição da lei no campo subjetivo impede o reconhecimento das leis no campo social”, explica a socióloga.

Para viver em sociedade, o homem precisa abdicar do princípio do prazer. As propostas contemporâneas, no entanto, acenam com a possibilidade de uma vida de prazer total, sem nenhuma sombra de angústia e com a sensação de impunidade. “A ilusória compreensão de que a felicidade depende do consumo de objetos amplia o mal-estar social em função das frustrações que, inevitavelmente, este empreendimento produz”, observa.

A ilusória compreensão de que a felicidade depende do consumo amplia o mal-estar social, em função das frustrações produzidas. O homem encontra o transitório consolo dos chamados publicitários que, por sua vez, difunde a idéia de que a felicidade é algo comprável.

Na mesma linha, utilizando conceitos de Freud, de Jacques Lacan, seu seguidor, e de pensadores clássicos da Filosofia, a psicanalista gaúcha Margareth Kuhn Martta, em seu livro Violência e Angústia, abre caminhos para o entendimento do fenômeno da violência contemporânea que, segundo afirma, “se diferencia do que foi, até hoje, visto e vivenciado”. Ela evidencia certos traços do homem contemporâneo, quais sejam, a falsa idéia de infinitude, a desvalorização da subjetividade e a falta de interdição. A conexão dos dois temas que dão título a sua obra é analisada a partir da forma como o ser humano tem lidado com a questão existencial na contemporaneidade.

Segundo Margareth, o homem vem sendo levado à ilusão de que pode excluir a angústia do seu existir – fato impossível, pois tal sentimento estaria atrelado, de forma indelével à existência humana, uma vez que “não é disso ou daquilo que o homem se angustia, mas de sua situação mesma de estar no mundo”, afirma.

Buscando aplacar tais sentimentos, o homem encontra o transitório consolo dos chamados da publicidade que, por sua vez, difunde a idéia de que a felicidade é algo comprável; que, adquirindo determinado produto, ganha-se um passaporte para viver em contínuo prazer. Citando o fotógrafo italiano Oliveiro Toscani, autor do livro A Publicidade é um Cadáver que nos Sorri, Margareth Martta reafirma o que ele expressou: “de tanto querer nos vender a felicidade, a publicidade acaba fabricando legiões de frustrados. De tanto provocar desejos que derivam em decepção, a publicidade perde o objetivo e dá origem a deprimidos e delinqüentes”.

Pesquisa coordenada pela doutora em Sociologia e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Vanessa de Barros, entre presidiários do sistema prisional de Belo Horizonte – homens e mulheres jovens, com idade entre 16 e 25 anos – denuncia o desmantelo resultante dessa lógica de que, consumindo, comprando, é possível viver sem angústia e em pleno gozo dos desejos. O trabalho foi feito seguindo o método socioclínico de história de vida, buscando compreender a relação entre trabalho e criminalidade. Segundo Vanessa, as conversas em torno das vivências e representações da vida dessas pessoas mostraram aspectos constitutivos da violência em suas várias facetas.

A pesquisa possui trechos depoimentos emblemáticos para se fazer a conexão entre consumo, violência e criminalidade, pois o desejo de consumir foi o motivo mais expresso em fatos e situações relatadas. Apesar de não apresentarem condições para o consumo, os pesquisados se mostraram portadores de todas as carências incutidas pela publicidade. Esses depoimentos dos presidiários de Belo Horizonte se juntam aos dos jovens das periferias urbanas de Natal - objeto de uma pesquisa da professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Norma Takeuti, pós-doutorada em Sociologia Clínica e autora do livro No outro lado do espelho: a fratura social e as pulsões juvenis.

Custo da violência

De acordo com a “Análise dos custos e conseqüências da violência no Brasil”, estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), publicado em junho de 2007, estima-se que, em 2004, o custo da violência no Brasil tenha chegado a R$ 92,2 bilhões, ou 5,09% do Produto Interno Bruto do País. O cálculo leva em consideração gastos ou investimentos públicos e privados, tais como internações, pensões, perdas materiais, aplicação de recurso em segurança, despesas com proteção de carros, entre diversos outros itens.

Irresponsabilidades dos pais em relação aos filhos

Uma pesquisa sobre paternidade, realizada por Ana Liési Thurler, durante doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília, revelou que aproximadamente 1/3 das crianças brasileiras não possui o nome do pai na certidão de nascimento. Isso sem contar as inúmeras crianças que possuem o nome do pai na certidão, sem efetivamente ter alguém que cumpra esta função em sua vida.

Nos EUA, dados estatísticos apontam que crianças educadas em lares monoparentais são mais vulneráveis aos transtornos de conduta; essas crianças possuem três ou quatro vezes mais chances de desenvolver problemas comportamentais e duas vezes mais chances de envolver-se com crimes do que as demais.

Uma pesquisa realizada na década de 90 revelou que 72% dos adolescentes que cometeram assassinato não tiveram presença paterna. Nas prisões, 60% dos estupradores e 70% dos prisioneiros que cumprem longas penas também não tiveram presença paterna em seus lares. Os pesquisadores americanos demonstraram que as crianças que não possuem presença paterna em casa têm onze vezes mais chances de apresentar comportamentos violentos na escola.

Pela lei, Art. 222 da Constituição Federal, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar prioridade absoluta do direito à vida, saúde, alimentação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O trabalho mostrou que os entrevistados - “jovens pobres que se encontram às margens da sociedade, confrontados com o processo de exclusão, segregação e discriminação sociais, e acusados de ser delinqüentes” - vislumbram ser mais ‘cômoda’ a via do ‘dinheiro rápido e fácil’, nas trilhas da ilegalidade (tráfico de drogas, por exemplo), porque o ‘trabalho suado e honesto’ seria a permanência na condição de miserabilidade e de segregação social.

“A valorização radicalizada da dimensão econômica, a sua prevalência enquanto significação imaginária social central aniquila valores sociais que poderiam trazer outros sentidos de vida aos indivíduos”, analisa Norma. Ela destaca que a constituição do sujeito se dá por meio de identificações sucessivas e que compete às instituições específicas a garantia de suportes de identificação aos indivíduos. Porém, diante de uma ordem simbólica vacilante, seja nos exemplos que a sociedade em geral lhes oferta, seja pela ausência de uma consistente estrutura familiar, os jovens não encontram respostas que ajudem a edificar sua formação.

De tanto provocar
desejos que derivam em decepção,
a publicidade perde o objetivo e
dá origem a deprimidos e delinqüentes

A ausência de valores como honestidade, integridade, legalidade, incorruptibilidade e a existência do exercício de práticas como fisiologismo, corrupção e mentira se destacam entre as causas do caos social instalado. Para a psicanalista Lourdinha Tenório, membro do Toro de Psicanálise, pensar no que funda a lei para uma criança é se reportar, primeiramente, à matriz que a antecede. “É indispensável que os pais tenham, em si mesmos, a inscrição do interdito fundamental para que possam fazê-la valer como lastro para o estabelecimento dos limites para a sua prole”. Este princípio, segundo a psicanalista, precisa ser bem definido nos pais, desde que a relação entre mãe, filho e pai se inicia, pois é a forma como os pais vão apresentando e significando o mundo para o filho que irá delineando as regras estabelecidas para nortear o convívio humano.

A criança vai sendo habilitada a viver em meio à sociedade “à medida que vai entendendo que, muitas vezes, é preciso abrir mão do que se quer para compor o que é importante para o grupo”, diz, acrescentando que se a criança aprender desde cedo que nem sempre será atendida em suas demandas, se lhe for possibilitado aprender a lidar com as frustrações, a convivência social se estabelecerá com naturalidade e será sempre enriquecedora.


Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/15/artigo72199-1.asp. Acesso em 08 dez 2012.