Tiago José Benedito Eugênio
Boas conversas surgem em uma mesa de bar ou diante das
estantes de livros. É comum no final de um happy hour as pessoas dividirem as
despesas e, mais comum ainda, alguém não ter dinheiro para ajudar a pagar a
conta. Nessa hora, sempre existe um amigo que coopera e empresta o dinheiro.
"Prometo que pago você amanhã, obrigado" é a resposta mais
corriqueira para tal ato de camaradagem. Doce ilusão, o tempo passa e o devedor
nunca mais toca no assunto, enquanto que quem emprestou nunca esquece. Será que
em outra situação, no futuro, este devedor receberá ajuda do seu amigo?
Ou, então: um amigo chega à sua casa. Diante dos seus
livros, você faz uma apresentação dos assuntos que está estudando e
trabalhando. Após alguns comentários, seu amigo avista um livro que lhe chama
atenção. Depois de folhear e elogiar o livro, ele o pede emprestado e promete
que devolverá, assim que terminar de lê-lo. Os meses se passam e o livro
emprestado não é devolvido. Você comunica o seu amigo, envia um e-mail dizendo
que está precisando da obra. Mas ele diz que sempre se esquece de devolvê-lo
ou, então, simplesmente ignora seu pedido e não responde. O que sente o
indivíduo que gentilmente emprestou o livro? Ele emprestará outro livro para
seu amigo?
Há uma infinidade de situações como essas, afinal, a cooperação
e a trapaça estão no centro do comportamento social humano. Mas, afinal, por
que o ser humano apresenta essa bipolaridade? Por que em algumas situações nos
comportamos como mocinho, em outras, somos o vilão da história? Até meados do
século XX, a sociedade e sua ordem eram compreendidas como uma entidade
orgânica e coesa, e seus cidadãos, meras partes. Nesta vertente, os indivíduos
eram negligenciados e a mente que importava era aquela pertencente ao grupo. A
negação da autonomia da cultura em relação às mentes individuais também foi
articulada pelo fundador da sociologia, Emile Durkheim (1858-1917), que
escreveu: "A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre
os fatos sociais que o precederam, e não entre os estados de consciência individual"
(Pinker, 2004, p. 46). Assim, justificavam-se as diferenças entre os grupos
étnicos exclusivamente com base nas diferenças culturais. Logo, a partir desta
perspectiva, o comportamento social do ser humano não poderia ser explicado por
mecanismos e propriedades inatas da mente.
Até meados do século XX, a sociedade e sua ordem eram
compreendidas como uma entidade orgânica e coesa
Perspectiva evolucionista
Nas últimas décadas, contudo, tem havido uma renovação
fascinante da literatura no que concerne à origem e à evolução desse sistema de
normas nas sociedades. Uma série de evidências aponta que o comportamento
humano parece também ser um produto de forças e propósitos evolutivos, isto é,
influenciado pelas predisposições biológicas moldadas durante a evolução da
espécie para lidar com as demandas ecológicas impostas, sobretudo, aos nossos
ancestrais. Interpretações modernas sobre a evolução da ordem social e
cooperação têm-se centrado no estudo comparativo com outras espécies e na
evolução de estratégias reprodutivas dos indivíduos, as quais dependem do tamanho,
estruturação dos grupos e dos padrões de interação entre os integrantes do
grupo. Essa perspectiva vislumbra a ordem social como um subproduto da evolução
das estratégias individuais engendradas por um longo processo
histórico-evolutivo.
Nesse sentido, as normas sociais, sob esta nova óptica, são
vistas, portanto, como um produto e não causa das ações dos indivíduos. O cerne
desta perspectiva encontra-se nas ideias de Charles Darwin sobre a evolução das
espécies. Para Darwin (1859/1996), o ambiente seleciona os indivíduos que detêm
características que trazem mais benefícios do que custos - concedendo-lhes mais
chances de sobrevivência e de reprodução -, e isso implica uma seleção natural,
a qual é responsável pela modificação das espécies ao longo do tempo e do
espaço. A seleção natural é, dessa forma, o processo através do qual variantes
favorecidas em uma população sobrevivem e se reproduzem mais. Nesse processo, o
ambiente seleciona os indivíduos - passando esse conjunto de traços para as
gerações seguintes (Cronin, 1995).
Do abstrato ao lógico
Para testar suas hipóteses, primeiramente, os pesquisadores
aplicaram em estudantes universitários a tarefa de seleção de Wason. Esse teste
consiste na apresentação de quatro cartões mostrando, por exemplo, os
caracteres "A", "B", "3" e "4"; é
explicado que cada carta possui, em uma face, uma letra e, na outra, um número,
e a regra condicional é: "Se uma carta tem uma vogal de um lado, tem um
número par do outro. Nesse caso, o participante deve dizer quais cartas ele
deve virar, no mínimo, para confirmar a regra". As primeiras constatações
foram de que em relações que envolviam o raciocínio lógico e abstrato a maioria
dos estudantes não acertava na escolha dos cartões. Entretanto, o desempenho
dos estudantes mudava quando a hipótese condicional se referia a uma regra
social não abstrata. Nessa versão, foi solicitado aos estudantes que se
imaginassem como um barman, o qual deveria cumprir uma lei que proíbe a venda
de bebidas alcoólicas para menores de 20 anos. Dessa forma, as cartas
representavam os fregueses: "bebendo cerveja", "bebendo
refrigerante" (que equivaleriam às letras "A" e "B",
respectivamente), com "16 anos" e com "22 anos" - que
equivaleriam as "3" e "4", respectivamente. Esse
experimento permitiu aos pesquisadores concluírem que, na espécie humana,
teriam evoluído adaptações específicas que tornariam o homem mais habilidoso
para detectar possíveis trapaças no seu meio social a partir de contratos
sociais e não abstratos.
Se aceitarmos os pressupostos da teoria da evolução, os
quais alegam que características, tais como órgãos e dentes, são produtos da
seleção natural, por que não admitir que a nossa mente também seja um produto
do processo evolutivo? Esta é a proposta central da Psicologia Evolucionista,
que se utiliza de conceitos e da lógica darwinista para compreender como as
pressões ambientais moldaram o cérebro humano ao longo do tempo. Nesse sentido,
a perspectiva evolucionista amplia o estudo do comportamento humano para além
da análise física e de suas causas próximas - mecanismos fisiológicos - e passa
a considerar e investigar também os mecanismos psicológicos evoluídos. Para
tanto, se debruça sobre o seu surgimento na história da vida, adotando o método
comparativo com outras espécies, entre indivíduos e entre os sexos, e procura
compreender a sua função ou o valor para a sobrevivência e reprodução do
indivíduo.
● A mente e o contratualismo ●
A Teoria da Mente é proposta inicialmente pelos
primatologistas Premack e Wooddruff em 1978 e é definida, em Psicologia, como a
capacidade para imputar estados mentais aos outros e a si próprio. Nesse
sentido, ela é essencial quer para a autorreflexão como para a coordenação da
ação social. A Teoria do Contrato Social ou contratualismo é uma teoria sobre o
contrato social que se difundiu entre os séculos XVI e XVIII e que tenta
explicar os caminhos que levam as pessoas a formar Estados e/ou manter a ordem
social. Thomas Hobbes (1651), John Locke (1689) e Jean-Jacques Rousseau (1762)
são os mais famosos filósofos do contratualismo.
Sob o ponto de vista evolutivo, o ato de cooperar implica em
custos para o executor e em benefícios gerados para quem recebe a ajuda,
enquanto a trapaça é compreendida quando alguém não retribui um favor ou
àqueles que retribuem, mas oferecem muito menos do que recebem; ou, ainda,
quando alguém usufrui de um benefício sem pagar os devidos custos. É dessa
forma que podemos compreender a cooperação e a trapaça como extremos de um
continum que envolve as relações e os jogos sociais. Desta forma, os mecanismos
psicológicos existentes atualmente teriam evoluído para resolver problemas
vivenciados por nossos ancestrais caçadores- coletores há milhões de anos e são
esses mecanismos que, modelados pelo ambiente, subjazem o comportamento humano.
Partindo do pressuposto que somos seres essencialmente
sociais, é esperado que, durante a evolução da espécie humana, tenha evoluído
um sistema de normas de convivência a fim de regular as interações assim como
as trocas sociais entre os indivíduos. Assim, mecanismos emocionais e
cognitivos, tais como detecção de trapaça, senso de justiça, vigilância; teoria
da mente e reputação, teriam originado e evoluído para regular nossa natureza
humana social benevolente e egocêntrica.
Teoria do Contrato Social
Os pesquisadores John Tooby e Leda Cosmides, da Universidade
da Califórnia, em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, propuseram a Teoria do
Contrato Social para explicar a evolução dos mecanismos reguladores das trocas
sociais e da cooperação na espécie humana. Para tanto, levantaram a hipótese da
existência de adaptações cognitivas específicas para regular as trocas sociais,
entre elas: capacidade de identificar e reconhecer diferentes indivíduos;
relembrar diversos aspectos históricos de interações com os indivíduos;
detectar possíveis sujeitos violadores das regras sociais na população;
expressar e compreender os desejos e as necessidades dos outros e representar
os custos e benefícios nas trocas sociais dos mais diversos itens (veja quadro
Do abstrato ao lógico).
● Teoria dos jogos●
É uma teoria matemática utilizada para o estudo da tomada de
decisão e interação de dois ou mais indivíduos. Para isso, faz uso de
diferentes jogos para compreender as estratégias dos indivíduos para alcançar o
melhor desempenho, maximizando os seus ganhos. A aplicação dessa teoria à
Psicologia tem sido importante para o estudo empírico do comportamento social,
sobretudo da cooperação em humanos.
Após os estudos com o teste de seleção de Wason, novas
questões foram feitas pelos psicólogos evolucionistas. Por exemplo, o que afeta
a cooperação em um grupo? Quais são os mecanismos psicológicos e emocionais
evoluídos para coibir a trapaça? Para responder a essas questões, pesquisadores
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, estudaram o
comportamento moral de crianças por meio de um jogo, conhecido como bens
públicos - um dos famosos modelos propostos pela Teoria dos Jogos. Nesse jogo,
cada criança recebia três chocolates e decidia quantos ela doaria para um fundo
comum. Para cada chocolate doado era acrescentado mais dois no bem comum e, no
final do jogo, este era dividido igualmente entre todos os indivíduos. As
crianças foram separadas em grupos pequenos e grandes. Foi observado que nos
grupos menores a generosidade foi maior, pois os indivíduos monitoravam o
comportamento dos colegas. Entretanto, nos grupos maiores, em que não é fácil
perceber quem doa, a cooperação caiu rapidamente, mostrando que o egoísmo
prevalece quando o indivíduo não percebe um ambiente propício para a cooperação
(Alencar, Siqueira e Yamamoto, 2008).
Uma série de evidências aponta que o comportamento humano
parece ser um produto de forças e propósitos evolutivos
O estudo feito em campo reproduz de forma elegante um
descompasso temporal, uma vez que no ambiente ancestral da espécie humana a
organização social provavelmente era igualitária, sem privilégios para alguns
membros e nem ocorrência de trapaceiros. O tamanho reduzido do grupo
proporcionava uma fiscalização mais rigorosa do comportamento de cada um
(Broom, 2006). Nesse sentido, a fiscalização era importante para coibir os
trapaceiros; aqueles indivíduos que usufruem do benefício, mas não pagam o
custo devido pelo mesmo (Trivers, 1971). Com o tempo, entretanto, os grupos
foram crescendo e, por consequência, a identificação dos trapaceiros se tornou
uma tarefa mais difícil (veja quadro Vigilância).
A capacidade de expressar e compreender os desejos e as
necessidades dos outros é outra adaptação cognitiva específica para regular as
trocas sociais. Premack e Woodruff (1978) estudaram o comportamento de
chimpanzés que, assim como os humanos, pensam em seus coespecíficos. Assim,
cunharam a expressão "Teoria da Mente", que significa a capacidade
para imputar estados mentais aos outros e a si próprio. Neste sentido, ela é
essencial quer para a autorreflexão como para a coordenação da ação social.
Com humanos, é empregado o clássico experimento
"Problema da Sally-Anne", no qual é exibida uma cena para os
sujeitos. Primeiramente, Sally entra, guarda uma bola em um local, por exemplo,
atrás do sofá, e sai da cena. Entra em cena a Anne, que retira a bola de trás
do sofá, a coloca em outro local, por exemplo, dentro de uma caixa, e sai.
Sally retorna em busca da bola - nesse ponto a cena é interrompida. Em seguida,
pergunta-se para o sujeito: "Onde Sally irá procurar pela bola?"
Vigilância
Pistas sutis de vigilância parecem também influenciar o
comportamento dos indivíduos. Rigdon e colaboradores (2009) solicitaram para
alguns sujeitos compartilharem um recurso de forma arbitrária com outros, que
deveriam aceitar de forma passiva a oferta. Devido a esse caráter, esta
situação é conhecida na literatura como jogo do ditador. Os pesquisadores, no
momento da tomada de decisão, entregaram para os "ditadores" um
cartão com três pontos - dispostos como uma face (figura a). Em outra condição,
os ditadores viam o mesmo estímulo, no entanto, rotacionado 180º (figura b).
Observou-se que os participantes ditadores alocaram mais recurso para os
receptores quando eram submetidos à condição de vigilância. Os pontos
distribuídos como se fosse uma face parecem ativar a área fusiforme do cérebro
- responsável pelo reconhecimento de faces - sendo, portanto, suficiente para
modificar o comportamento social dos ditadores.
a = Pontos dispostos como uma face (condição de vigilância).
b = Pontos rotacionados 180o (condição neutra). Adaptado de Rigdon et al.,
(2009)
Recurso cognitivo
Os pesquisadores observaram que, até três anos de idade, as
crianças apresentam dificuldades de entender que diferentes pessoas podem ter
representações distintas de uma mesma realidade. Nesse caso, essas crianças
respondem, em geral, que Sally irá procurar a bola dentro da caixa. Todavia,
quando a mesma pergunta era feita para crianças com mais de seis anos, quase
todas as crianças respondiam corretamente, que Sally iria procurar no local
onde tinha deixado a bola, isto é, atrás do sofá. No que se refere à idade
crítica no desenvolvimento da "Teoria da Mente", há divergências
entre os pesquisadores (Ottoni, Rodriguez & Barreto, 2006).
No entanto, é inegável que, com tal recurso cognitivo, o ser
humano pôde, por exemplo, planejar estratégias e tomar decisões críticas numa
situação social. Além disso, tornou-se possível ao Homo sapiens prever que
ideia os outros estariam formando a seu respeito, bem como tornou mais
sofisticadas as relações e a comunicação intra e intergrupo, habilitando-o a
entender artifícios da expressão humana como a ironia, a dissimulação, o
sofrimento, o interesse e a falsidade.
Pode ser verdade que nossa moralidade é, em última análise,
um meio pelo qual os indivíduos induzem o moralismo no próximo para satisfazer
seus próprios interesses (Cartwright, 2000) e que, por mais niilista que seja
isso, somos hospedeiros de genes egoístas usurpadores, cujo objetivo maior é
sobreviver e se reproduzir. Mas assumir isso não nos inviabiliza o planejamento
e a criação de contextos que burlem os desígnios da nossa essência genética e
egocêntrica. Somos seres humanos imbuídos em um mundo social: viemos ao mundo
equipados com predisposições para aprender a cooperar, a distinguir o justo e
virtuoso do traiçoeiro, a praticar e prezar pela lealdade, a conquistar boa
reputação diante dos nossos semelhantes, intercambiar produtos e informações, a
dividir o trabalho e a modelar sua individualidade e vínculos sociais a partir
das reações do outro. Nisso, somos uma espécie única.
Referências
Alencar, A. I., Siqueira, J. O, & Yamamoto, M. E.
(2008). "Does group size matter? Cheating and cooperation in Brazilian
school children". Evolution and human behavior, 29, 42-48. Broom, D. M.
(2006). "The evolution of morality". Applied Animal Behavioral
Science, 100, 20-28. Cartwright, J. (2000). Evolution and human behavior.
London: MacMillan Press. Cosmides, L. & Tooby, J. (1992). "Cognitive
adaptations for social exchange". In: H. J. Barkow, L. Cosmides & J.
Tooby. The adapted mind: Evolutionary psychology and the generation of culture
(p. 163-228). New York: Oxford University Press. Cronin, H. (1995). A formiga e
o pavão: altruísmo e seleção sexual de Darwin até hoje. Campinas: Papirus.
Darwin, C. (1859/1996). The origin of species. Oxford: Oxford University Press.
Hamlin, J. K., Wynn, K., & Bloom, P. (2007). "Social evaluation by
preverbal infants". Nature, 450, 557-559. Nowak, M. A., Page, K. M., &
Sigmund, K. (2000). "Fairness versus reason in the ultimatum game".
Science, 289, 1773-1775. Pinker, S. (2004). Tábula rasa: a negação
contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras. Ottoni, E.
B., Rodriguez, C. F. & Barreto, J. C. (2006). "Teoria da Mente e
compreensão da representação gráfica de conteúdos mentais (balões de
pensamento)". Interação em Psicologia, 10, 225-234. Rigdon, M., Ishii, K.,
Watabe, M. & Kitayama, S. (2009). "Minimal social cues in the dictator
game". Journal of Economic Psychology, 30, 358-367. Trivers, R. (1971).
"The evolution of reciprocal altruism". Quarterly Review of Biology,
46, 35-57.
Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/73/artigo244856-1.asp.
Acesso em 25 ago 2013.