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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Espaços educativos e produção das subjetividades gays, travestis e transexuais

Deise Azevedo Longaray; Paula Regina Costa Ribeiro
Revista Brasileira de Educação v. 20 n. 62 jul.-set. 2015


Resumo: O artigo tem como objetivo conhecer e compreender como as instâncias sociais – a família, a instituição religiosa, o movimento homossexual (Associação LGBT) e as instituições médicas e psicológicas –, por meio de suas estratégias de governamento, interpelam os sujeitos, produzindo suas subjetividades. Entendemos tais instâncias como espaços educativos, pois nos ensinam modos de ser e estar no mundo. Nesse sentido, analisamos enunciações de alguns sujeitos gays, travestis e transexuais, produzidas por meio de metodologias da história oral temática e da observação participante. Assim, concluímos que a família prima pela coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo; as instituições médicas e psicológicas buscam diagnosticar e normalizar as atitudes dos sujeitos “desviantes”; as instituições religiosas buscam “condenar” as práticas transgressoras; e o movimento homossexual conduz as práticas dos sujeitos ao instituir as posturas adequadas e coerentes com a política do movimento. 


sábado, 28 de fevereiro de 2015

Reflexões sobre preconceito: em busca de relações mais humanas

Mônica Mastrantonio Martins
InterAÇÃO, Curitiba, v. 2, p. 9-27, jan./dez. 1998 


RESUMO: Esse estudo estabelece princípios que constituem o preconceito, presente tanto na subjetividade como nas relações sociais. O preconceito é concebido como apropriação distorcida da realidade, através da qual projeta-se em outro ser humano, grupo ou sociedade características não aceitas em si mesmo. O preconceito pode estar presente nas ações, linguagem e atitude dos indivíduos. Nas relações pautadas pelo preconceito, outro ser humano é colocado como mero objeto dessa relação, e não como sujeito ativo das relações sociais e constituição da subjetividade. Existem diversos fatores que propiciam o aparecimento e desenvolvimento do preconceito, por exemplo: relações dogmáticas, sem críticas, sem história e sem reflexão entre indivíduos; não identificação dos seres humanos com a humanidade; falta de igualdade de relações sociais e dificuldade de se lidar com fraquezas e imperfeições que são projetadas nos outros. Em um mundo capitalista, baseado na propriedade privada, na alienação e no narcisismo, o preconceito aliena ambos, o sujeito e o objeto do preconceito, em uma relação estática. Exemplos de preconceitos são tão inúmeros e múltiplos quanto a história da humanidade, e variam desde a barbárie do holocausto até piadas e ditos populares que projetam características negativas em grupos minoritários. Nesse sentido, os indivíduos devem procurar compreender o preconceito e suas relações, em especial o psicólogo, que deve ser capaz de desenvolver tais discussões, refletindo e transformando as relações preconceituosas em relações mais humanas, éticas e igualitárias entre os homens. 

texto completo


sábado, 17 de janeiro de 2015

Travestismo, transexualismo, transgêneros: identificação e imitação

Simona Argentieri
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 42(77): 167-185, dez. 2009. 


Resumo: No decorrer de algumas décadas, tem havido uma dramática mudança, tanto psicológica quanto nos direitos civis, na convulsiva arena social e cultural em que os assim chamados “transexualismos” vivem, são definidos e se definem. Até a linguagem técnica mudou. No passado, diagnósticos de transexualismo e travestismo eram muito diferentes uns dos outros; enquanto falamos hoje de “disforia de gênero” ou usamos o termo abrangente “transgênero”, que muda o acento da pulsão sexual para a identidade de gênero. Em nosso trabalho clínico, os fenômenos do assim chamado “vestir-se como o outro sexo” infantil aumentaram, e há muito mais casos de perversões femininas – ou, ao menos, sua existência não é mais negada, ainda que possam ter nomes diferentes. Penso que a psicanálise deve se esforçar para recuperar seu espaço teórico e método específico de trabalho clínico, de modo a se afastar dos escândalos confusos da mídia, da sedução falsamente liberal e do conluio da reatribuição médico-cirúrgica de gênero sexual (atualmente permitida nas instituições públicas de muitos países) que, na verdade, remete o problema de volta ao nível biológico. Não podemos nos limitar a intervir, como acontece frequentemente, quando o dano já ocorreu.




domingo, 19 de janeiro de 2014

'Sempre me senti mulher', diz transexual que quer mudar certidão

Rayssa Natani
29/11/2013

Quem vê a acreana Anahí Rodrigues segura e bem resolvida aos 19 anos não imagina os obstáculos enfrentados por ela para se sentir feliz e satisfeita com a imagem no espelho. Não se trata dos dramas vividos por muitas mulheres em busca de uma boa aparência, ou de pequenos detalhes no visual que causam insatisfação, trata-se de não se reconhecer no próprio corpo e decidir encarar a transexualidade.

“Ninguém quer ser trans. Vida de trans não é fácil. E a transformação é um risco. Você não sabe se vai ficar bonita, se vai dar certo, nem se vai ser aceita”, diz. A decisão de assumir a identidade feminina, tomada há pouco mais de um ano, significou para ela aprender a lidar com o preconceito e envolve um processo longo de mudanças físicas e acompanhamento psicológico.

“Não é o que você tem entre as pernas que conta"
Anahí Rodrigues

Em busca de uma nova vida como mulher, ela mudou-se em 2012 para São Paulo, onde trabalha como modelo. Na bagagem, levou poucos pertences. “A intenção era recomeçar como Anahi, onde ninguém me conhecesse como homem e, ao mesmo tempo, buscar oportunidades em um lugar onde viver como trans é mais comum e aceitável pela sociedade”, afirma.

Há dois meses, ela entrou em uma briga judicial para alterar o nome e o sexo na certidão, mas sabe que a luta será longa. Entre os vários documentos necessários para juntar ao processo, ela conseguiu o laudo de transexualidade, expedido por um psicólogo. Sem querer comentar sobre uma possível cirurgia de mudança de sexo, Anahí, que também não gosta de falar do passado, ou do nome que ainda consta na certidão, diz que o órgão sexual é o que menos importa.

“Não é o que você tem entre as pernas que conta. Para obter o laudo de trans, o que importou foi a minha rotina. E eu levo uma vida de mulher e sempre me senti uma. Tem trans que não tem uma aparência feminina, mas a cabeça é de mulher e a sociedade não entende isso. Chama de traveco, faz piada, mas não sabe como a pessoa sofre”, comenta.

Infância conturbada

E o sofrimento, segundo Anahi, começa muito cedo.  “Desde os 4 anos eu já sabia que queria ser mulher. Eu me olhava no espelho e via um órgão ali que não combinava com a minha mente. Eu ficava bem confusa”, conta. Já nesta idade, ela dava os primeiros sinais à mãe de que era diferente. “Eu dizia para minha mãe que queria brincar de boneca e usar as roupas e maquiagens dela. Ela brigava comigo. Quando ela saía, eu pegava e usava escondida”, lembra.

Aos 8 anos, ela conta que tomou anticoncepcional na esperança de se transformar em uma menina. “Ouvi falar sobre hormônio feminino na escola a primeira vez. Pensei ‘se isso é hormônio feminino e eu tenho o masculino no meu corpo, então se eu tomar, vai mudar alguma coisa’", relembra.

As lembranças da crise de identidade na infância são muito nítidas. Sentimentos que a jovem reprimiu por muitos anos para não contrariar a mãe, com quem morava. “Meu pai foi embora quando eu era muito novinha e não participou disso. Mas, com medo da reação da minha mãe, me negava a ser o que era. Tentei até namorar uma menina, aos 12 anos, mas nunca senti atração por mulheres”, confessa.

Aceitação

Aos 13, Anahí criou coragem de conversar com a mãe, Tiana Rodrigues, primeiramente sobre a sexualidade. "A reação foi boa, diferente da maioria dos pais. Ela disse que já sabia. Que toda mãe conhece seu filho. Por mais discreta que ela seja", conta.

Tiana confirma. "Eu já sabia, com certeza, desde criança. Toda mãe sabe. Só tem mãe que não quer aceitar", pontua. Ela relembra, com bom humor, situações inusitadas da infância da filha. "Comprava um carrinho, ela chorava e quebrava. Dava uma Barbie 'ai, que felicidade'. Cortava o cabelo curtinho, ela queria arrancar a própria cabeça", brinca.

Mas, a príncipio, Tiana confessa que não foi fácil encarar a realidade. "Eu não queria que ela se vestisse de mulher. Eu acho que até para arrumar um trabalho fica difícil. Eu pensei no que ela poderia sofrer. Preconceito, constrangimentos, pensei no que as pessoas iriam dizer. Mas tem que aceitar. Fazer o que?", admite.

Processo de mudança

Depois de conversar com a mãe, Anahí se sentiu mais segura. No mesmo ano, foi à primeira parada gay em Rio Branco vestida de mulher. "Me achei meio caricata na primeira vez. Mas depois disso, não parei mais. Fui me vestindo assim em um lugar e outro, no carnaval, participava de concurso de beleza e sempre ganhei o primeiro lugar em todos", conta.

Aos 17 anos começou a tomar hormônio feminino regularmente. Ainda este ano, colocou prótese de silicone e fez plástica no nariz, acreditando que deixaria o rosto mais delicado. O resultado disso é uma imagem de mulher perfeitamente condizente com a cabeça de Anahí. "Meu jeito sempre foi de menina, e mesmo antes de qualquer transformação, muitas pessoas já se confundiam", diz.

Anahí confessa que na balada os homens nunca desconfiam que ela seja trans. "E eu também não conto. Mas já tive experiência de ficar e depois o cara saber e querer me agredir. Como também já aconteceu de ficar, ele descobrir, me agredir, depois voltar atrás e querer ficar comigo me aceitando como sou. Foi o caso do meu último relacionamento", admite.

Preconceito

O processo de transição e aceitação própria foi a fase mais difícil para a jovem. Segundo ela, o preconceito ainda existe. "Eu acho que quando eu estava na fase de transição eu sentia mais o preconceito. Passei por alguns constrangimentos, mas aprendi a lidar com eles. Hoje em dia eu já levo uma vida de mulher", afirma.

Ainda assim, ela conclui que tudo valeu a pena. "Cada pessoa tem que buscar sua felicidade independente do que os outros vão pensar. Antes eu não me sentia feliz do jeito que eu queria. Depois que eu assumi minha identidade feminina, posso dizer que sou uma pessoa realizada porque é tudo que eu sempre quis desde criança", finaliza.


Disponível em http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2013/11/sempre-me-senti-mulher-diz-transexual-que-quer-mudar-certidao.html. Acesso em 16 jan 2014.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Aspectos da psicossexualidade e da personalidade de pacientes autodenominados transexuais masculinos e femininos avaliados pelo teste projetivo de Szondi

Elisa Del Rosario Ugarte Verduguez
Universidade de São Paulo - SP
Área de Concentração: Endocrinologia
São Paulo, 2009

Resumo: O transexualismo é um transtorno da identidade sexual, associado a uma forte e persistente identificação com o sexo oposto. Há poucos estudos referentes à utilização de testes psicológicos para auxiliar no diagnóstico do transexualismo. O objetivo deste estudo foi avaliar os aspectos da psicossexualidade de pacientes autodenominados transexuais através do teste de Szondi: Estudo retrospectivo e prospectivo no quais os pacientes com transtornos da identidade de gênero foram avaliados através de entrevistas livres; com aplicação dos critérios diagnósticos de transexualismo da DMS-IV da Associação Psiquiátrica Americana, seguido da aplicação dos testes projetivos de Szondi e H-T-P. O teste de Szondi foi aplicado por 8 vezes em cada indivíduo para avaliação quantitativa das proporções psicossexuais Dur e Moll. OS pacientes com diagnóstico de transtorno específico da identidade de gênero (transexualismo) foram acompanhados em psicoterapia de grupo por pelo menos 2 anos. Casuística: 105 indivíduos autodenominados transexuais (78 masculinos); grupo controle: 109 indivíduos (55 homens) autodenominados heterossexuais. Após aplicação dos critérios diagnósticos para transtorno da identidade de gênero do DMS-IV da Associação Psiquiátrica Americana e acompanhamento psicoterápico foram definidos como transexuais 41 indivíduos do sexo masculino e 17 indivíduos do sexo feminino. Na análise estatística as variáveis obtidas nos testes Szondi e H-T-P foram avaliadas por testes não paramétricos. Resultados: No grupo masculino, houve predomínio da proporção Moll total assim como na proporção Moll no vetor sexual e no do ego nos transexuais em comparação aos heterossexuais e aos portadores de transtorno da identidade de gênero não especificado (p<0,05). A sensibilidade do teste Szondi para identificação feminina nos transexuais masculinos foi de 80%, a especificidade de 86% e a acurácia de 83% enquanto que a sensibilidade do teste H-T-P foi de 88%, a especificidade de 54% e a acurácia de 72%. No grupo feminino houve predomínio da proporção Dur total assim como na proporção Dur do ego nas transexuais em comparação as heterossexuais e as portadoras de transtorno da identidade de gênero não especificado (p<0,05). A sensibilidade do teste Szondi para identificação masculina nos transexuais femininos foi de 94%, a especificidade de 67% e a acurácia de 85% enquanto que no teste H-T-P a sensibilidade foi de 94%, a especificidade foi de 33% e a acurácia de 73%. No período pós-cirúrgico todos os pacientes portadores de transtorno específico da identidade de gênero se mostraram satisfeitos, com alguma frustração pela limitação do processo transexualizador, por terem realizado a cirurgia, porém com melhora significativa dos vínculos sócio-familiares. Discussão: A validação de testes psicológicos para o diagnóstico dos transtornos de identidade de gênero é de grande importância visto o número crescente de pacientes com queixas de transtorno sexual que procuram tratamento. No estudo atual analisamos as propriedades do teste Szondi e do teste H-T-P num grupo de pacientes com transtornos da identidade de gênero classificados através dos critérios vigentes. Verificamos que a acurácia do teste Szondi foi maior que a do teste H-T-P no diagnóstico dos transtornos específicos da identidade de gênero a custa de uma maior especificidade frente a uma sensibilidade semelhante. Além disto, a detecção de transtornos psíquicos pelo teste Szondi, que podem ser causa ou efeito do transtorno da identidade de gênero, permite alertar o psicoterapeuta na indicação da cirurgia de transgenitalização. Conclusão: O teste Szondi mostrou ser um excelente teste auxiliar para o diagnóstico do transexualismo em ambos os sexos.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Transexualidade e preconceito: as implicações do psicólogo

Mário de Oliveira Neto
Maressa de Freitas Vieira
2a. Jornada Científica e Tecnológica da FATEC de Botucatu.
21 a 25 de Outubro de 2013, Botucatu – São Paulo, Brasil

Resumo: A aceitação na família, na escola, a inserção no mercado de trabalho, os direitos garantidos por leis, o acolhimento, a igualdade, a dignidade e, acima de tudo, a liberdade (no seu mais amplo significado) são direitos garantidos de grande parte da sociedade, exceto a transexuais. Isto porque a sociedade atual, muitas vezes, exclui significativamente os transexuais, dificultando e impedindo o acesso do reconhecimento da identidade e dos direitos civis básicos desses indivíduos. Diariamente transexuais são alvos de preconceitos, exclusão, ameaças, agressões e violências das mais variadas formas, culminando não muito raro em homicídio. A esse conjunto de atitudes a pessoa transexual, denomina-se transfobia. (JESUS, 2011). Transexuais e travestis, a partir das avaliações sociais e biológicas, são vistos como fracassos ambulantes, incapacitados para desenvolverem seu potencial natural em função de seu comportamento socialmente inadequado. Assim, o individuo está exposto a violências, ridicularização, estigma e marginalização, fortalecendo assim o gênero binário, ou seja, masculino e feminino (GUIMARÃES et al, 2013).

sábado, 19 de outubro de 2013

Beatriz, 22, transexual: “eu gosto e sempre gostei de meninas”

Natália Eiras
28/03/2013

"Eu vou virar mulher". Foi com essa afirmação meio fora do ritmo que um estudante de composição na Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) informou aos colegas que começaria a tomar hormônios para encontrar a sua identidade sexual. A garota que agora responde por Beatriz entrou na faculdade ainda como um menino e fez a revelação à sua turma no fim do primeiro semestre. Com a ajuda das amigas, comprou roupas femininas e maquiagem para, no primeiro dia de aula depois das férias de julho, chegar à universidade já vestida como Beatriz. “O pessoal perguntava se eu tinha dado uma de Laerte”, diz a jovem, se referindo ao cartunista que se tornou adepto do cross dressing (prática na qual alguém passa a se vestir com figurino do sexo oposto). Vamos omitir o nome masculino de Beatriz, porque ele é uma das reminiscências do passado que ela prefere não dividir com (mais) ninguém.

A segunda surpresa referente à mudança de sexo de Beatriz é que, mesmo na pele de uma mulher, ela segue interessada sexualmente em mulheres. “Eu gosto e sempre gostei de meninas”, deixa claro Beatriz Calore, de 22 anos. Há apenas um ano fazendo o tratamento de mudança de sexo, a garota é uma prova de que orientação e identificação sexual são coisas completamente diferentes. Desde cedo, a estudante soube que gostava de mulheres, mas não se sentia confortável em um corpo masculino. “Quando era adolescente, eu via um desenho japonês sobre um colégio de lésbicas e achava aquilo o paraíso. Queria ser uma das meninas, se relacionando com outras meninas”, explica, rindo, a jovem violonista.

Atualmente, após passar por uma cirurgia plástica para feminilizar o rosto, Beatriz quer encontrar o amor, como qualquer garota, mas, além do preconceito generalizado contra gays, ela é uma nota destoante dentro da própria população LGBTT. “Eu perguntava para as meninas no Leskut, o Orkut das lésbicas, se elas sairiam com uma trans e a resposta era: ‘Eu não saio com homens’”, explica Beatriz. “As pessoas veem o que era antes e não o que é agora”. A seguir a entrevista que ela deu ao iGay .

iG: Como sua família lidou com a sua decisão?
Beatriz: Eu sou quase orfã. Minha mãe faleceu há uns quatro anos e meu pai não fala comigo. Eu sei onde ele mora, ele sabe da situação em que estou, mas não quer me ver. A última vez que  o vi foi no ano passado, quando ainda não tinha contado que eu sou... eu. Quanto ao meu padrasto, que era o marido de minha mãe, é difícil ficar com a família dele. Algumas pessoas se sentem incomodadas, acham que o convívio como uma trans pode atrapalhar a criação do filho. Minha tia também demorou para aceitar. Ela tinha muitos preconceitos baseados em noções erradas, achando que a prostituição era a única opção. Mas ela viu que eu não vou largar os meus estudos para me prostituir.

Minha mãe faleceu e meu pai não fala comigo. Sei onde ele mora, ele sabe da situação em que estou, mas não quer me ver. Na última vez que o vi ainda não tinha contado que eu sou...eu.

iG: Quando percebeu que tinha algo de diferente em você?
Beatriz:  Quando criança, eu era bem afeminada, mas até uns sete, oito anos, eu não sacava nada. Depois, aprendi a me relacionar com os garotos e por um bom tempo andei com eles. Porque eu gostava e gosto de meninas. Meninas. Na adolescência, fui passando a perceber que as coisas não eram muito bem assim, que eu me sentia diferente. Comecei a ter interesses diferentes.

iG: Que tipo de interesses?
Beatriz: Pode parecer muito ridículo, mas enquanto os meninos assistiam desenhos japoneses de ação, eu tinha me interessado muito por um que era de romance e era sobre um colégio em que só tinha meninas lésbicas. E me apaixonei por aquilo, pensava: “Nossa, como eu queria ser uma dessas meninas”. Não é que eu queria ser um menino dentro desse colégio, eu queria ser uma das alunas, se relacionando com outras alunas. Achava aquilo um paraíso (risos).

iG: Você conseguiu lidar bem com a situação?
Beatriz: Mais ou menos. Comecei a me sentir mal por ser homem, passei a desprezar os homens. Uma espécie de preconceito que se voltava contra mim, de certa maneira. E em certo momento, percebi que gostaria realmente de ser uma mulher. Antes disso, eu tinha muitos problemas com o meu corpo, especialmente com as reações sexuais do corpo masculino, que eu achava que não condiziam com a maneira que eu pensava sobre o amor, o romance, as relações. Eu achava que era algo totalmente diferente, impulsivo, que não tinha nada a ver comigo. Depois que eu comecei a tomar hormônio, acabou.

Tinha muitos problemas com o meu corpo, com as reações sexuais do corpo masculino, que achava que não condiziam com a maneira que eu pensava sobre o amor, o romance, as relações. Percebi que queria ser mulher. Comecei a tomar hormônio e tudo isso passou.

iG: Quando tomou a decisão de mudar para o sexo com o qual você se identifica?
Beatriz:  Comecei a fazer tratamento psicológico com 17 anos, mas não por causa disso. Eu falava sobre essas questões com a minha psicóloga da época, mas ela não achava que eu era trans, achava que era alguma fantasia. Depois passei por outros profissionais até encontrar uma especializada em sexologia, que me diagnosticou transexual e escreveu um laudo sobre a minha situação, me encaminhando para o SUS. No ano passado, consegui começar a tomar hormônio. E, a partir do momento em que comecei o tratamento, comecei a contar para as pessoas que sou transexual.

iG: Você estava no meio do primeiro ano de faculdade quando tomou a decisão. Como foi contar para os colegas?
Beatriz: Durante as férias, eu contei para os meus colegas de classe e para algumas pessoas de outros cursos. As minhas amigas, então, me ajudaram a comprar roupa e me ensinaram a me maquiar. No primeiro dia de aula, todo mundo comentou e o pessoal ficava perguntando se eu tinha dado uma de Laerte. Mas, em geral, eles entenderam bem.

iG: E como os seus amigos de infância estão lidando com a sua transição?
Beatriz: Eles ainda têm problema para me chamar de Beatriz e me dar beijo no rosto. Preferem apertar a minha mão e me chamar pelo que eu era. Não se tornaram pessoas agressivas, não me tratam de maneira diferente, nem pro bem e nem para o mal.

iG: Seus pais desconfiavam que você é trans?
Beatriz: Não. Eu não lembro de já ter falado alguma coisa para minha mãe que desse indícios, mas ela achou que eu era gay. Ela chegou a me perguntar diretamente e disse que, se eu fosse homossexual, ela não teria problema nenhum e me apoiaria. Eu disse que não era, porque eu gosto de mulher. E é verdade. Agora, eu sou uma mulher gay, mas não no sentido que ela estava pensando na época.

iG: Você percebe que mesmo os gays demoram a entender a sua orientação sexual?
Beatriz: Totalmente. Eu fiz uma conta no Leskut, o Orkut de lésbicas, e tudo bem. Disfarçava, não falava que sou trans. Daí uma menina perguntou, no chat geral, se eu era T. Todo mundo reagiu de maneira muito estranha. Algumas pessoas disseram que tudo bem, mas outras acharam engraçado, estranho. Eu já tinha perguntado em outro momento se elas sairiam com uma menina transexual e a reposta foi: “Não, eu não saio com homem”. As pessoas veem o que eu era antes e não o que sou agora.

iG: Você pensa em fazer cirurgia de mudança de sexo?
Beatriz: Eu quero tirar o pênis porque para mim ele não serve para nada (risos). É uma coisa muito inútil, de que não vou sentir absolutamente nenhuma falta. Mas algumas pessoas resolvem fazer cirurgia, outras não. Não é porque quer manter o pênis que ela vai deixar de ser, de pensar e de se vestir como mulher.

Quero tirar o pênis porque para mim ele não serve para nada. É uma coisa inútil, de que não vou sentir a menor falta. Algumas pessoas resolvem fazer a cirurgia e outras não. Não é porque vai manter o pênis que vai deixar de ser, de pensar e se vestir como mulher.

iG: No que o pênis te atrapalha?
Beatriz:  Estou há 9 meses sem manifestar nada. Tipo: “Por favor, saia daí, que eu preciso viver a minha vida sexual de uma maneira normal”. As pessoas que querem sair com trans que não é operada quase sempre é por causa da ideia da mulher com um pênis. Então é uma coisa fetichista.

iG: Você já teve algum relacionamento anterior?
Beatriz: Não. Já tive um rolo uma vez, quando ainda não tinha começado o meu tratamento, com uma travesti. Eu não tenho problema em sair com uma menina trans. Eu a vejo apenas como uma garota. Nem lembro o que aconteceu depois. Acho que não deu certo, né? (risos).

iG: Que outra mudança física você espera?
Beatriz: Estou procurando uma fonoaudióloga que me ajude na transição de voz porque eu quero poder cantar. Se for profissionalmente, melhor. É mais uma opção para mim como musicista. Não me identifico mais com o violão, que é o instrumento que eu toco. E o canto é super versátil, posso fazer qualquer tipo de música. Me interesso muito pela voz em geral, até porque ela está ligada com a minha transição.

iG: Você sonha em se casar?
Beatriz: Eu penso a respeito. Já pensei que teria filhos, queria poder engravidar, se fosse possível. Mas, por enquanto, é fora da realidade. Estão fazendo testes na Rússia de transplante de útero, mas não sei se é com transexuais ou apenas com mulheres. De qualquer forma, também penso em adotar.

iG: Você quer ser ativista?
Beatriz: Não tenho estilo de ativista. Se posso falar alguma coisa, falo. Acho legal poder dividir minha experiência, mas não sou o tipo de pessoa que vai em passeata, que milita mesmo. Me importo com a causa, me importo quando vejo um pastor Marco Feliciano lá na Comissão de Direitos Humanos. Tem coisas que me preocupam e algumas que não são tão relacionadas a mim. Por exemplo, em alguns movimentos transfeministas, enfatizam muito a quebra da separação de gêneros, o que eu acho muito positivo, mas não me encaixo nessa questão. Não me vejo como uma pessoa que está no meio dos dois sexos, me vejo como mulher mesmo.  Eu sou mulher e é isso aí.

Ainda não tenho RG com esse nome, mas consegui fazer o bilhete único como Bia e a minha foto. Fico mostrando para todo mundo.

iG: Como você escolheu o nome Beatriz?
Beatriz: O primeiro critério foi que eu não queria um nome que tivesse correspondente masculino. Não existe Beatriz masculino. Então sobraram algumas opções e eu escolhi o mais bonito. Eu ainda não tenho RG com esse nome, mas consegui fazer o bilhete único como Bia, com uma foto minha. Eu fico mostrando para todo mundo (risos).


Disponível em http://igay.ig.com.br/2013-03-28/beatriz-22-transexual-eu-gosto-e-sempre-gostei-de-meninas.html. Acesso em 14 out 2013.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Seminário aborda fragilidade do atendimento de saúde à população trans

Conselho Federal de Psicologia
15/03/2013

O seminário “Identidades Trans e Políticas Públicas de Saúde: Contribuições da Psicologia”, realizado na quinta-feira (14/3), em São Paulo, traçou um panorama importante sobre o nível do atendimento psicológico às travestis, transexuais e transgêneros na rede pública de saúde. A necessidade de mudanças por meio do acolhimento adequado, com orientação e um olhar voltado para a despatologização da transexualidade foi unanimidade entre os representantes das entidades que compuseram a mesa de abertura e a maioria dos participantes.

A transmissão do debate rendeu aproximadamente 700 pontos de acesso de internautas. Cerca de 50 pessoas foram ao auditório do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-06) conferir o evento. A iniciativa foi uma parceria entre o Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-06) e do Espírito Santo (CRP-16), a partir de uma deliberação da última reunião de presidentes de Conselhos Regionais, realizada em dezembro de 2012.

Na abertura, o presidente do CFP, Humberto Verona, ressaltou que a Psicologia tem o desafio de garantir à população trans o respeito à dignidade e o acesso aos serviços públicos de saúde. “Faz parte da nossa obrigação combater todas as formas de discriminação e retrocesso no reconhecimento de todas as sexualidades. Precisamos retirar o estigma de que essa orientação configura uma doença”, observa.

De acordo com a vice-presidente Trans da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Keila Simpson, em relação a identidade trans, o Brasil é semelhante a outros locais da Europa, como Estocolmo e Barcelona. “A realidade deles é a mesma nossa. Não existe inserção trans, parece que é uma população invisível”, destaca. “É um tema que precisa de visibilidade por parte da sociedade, e a Psicologia pode auxiliar nisso”, completa a secretária executiva do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (Fenapsi), Fernanda Magano.

Durante a cerimônia de abertura, o presidente da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), Leonardo Tenório, entregou ao presidente do CFP um ofício solicitando uma regulamentação técnica recomendando que o profissional de Psicologia preserve o direito e a autonomia dos transgêneros. “Não é papel do psicólogo (a) opinar sobre mudança de sexo. Os homens trans não vão à psicoterapia, porque a terapia compulsória é absurda nesses casos. Não vamos representar um gênero que não concordamos”, argumenta.

A ausência da representante do Ministério da Saúde, que estava prevista no debate, foi repudiada pelos palestrantes e pelo público presente. O foco das reclamações foi a reformulação da Portaria n.  457/2008, que estabelece diretrizes para o processo transexualizador, elaborada sem a contribuição da Psicologia e dos movimentos sociais envolvidos com o tema.

Atendimento

O debate sobre a forma como a população trans está sendo atendida pelos psicólogos nas unidade de saúde também foi pontuada no debate. Segundo a psicóloga e professora do curso de Psicologia da Fundação Educacional de Penápolis, Sandra Spósito, as concepções médicas que regem o Sistema Único de Saúde não respeitam a diversidade de gênero, apenas como uma situação patológica, ao invés de proporcionar uma ação voltada para saúde mental  dessas pessoas.

Na opinião da a psicóloga doutora Tatiana Lionço, que pesquisa questões relacionadas aos direitos humanos e sexuais, a avaliação psicodiagnóstica atual viola a autonomia do sujeito ao considerá-lo de forma patologizante. “É uma identidade adquirida, onde a pessoa tem autonomia para se identificar como homem ou mulher, sem obedecer a ordem binária”, esclarece. “Para uma avaliação correta, seria preciso avançar na capacitação dos profissionais, especialmente aqueles que atuam nos Centros de Referência”, completa.

A despatologização da identidade trans é um procedimento que consta em documentos internacionais, como o Guia de Boas Práticas para a Atenção Sanitária a Pessoas TRANS, da Espanha. A expectativa, segundo Lionço, é que, em 2015, na revisão da classificação internacional de doenças, a Organização Mundial de Saúde também adote este mesmo conceito em relação ao tema.

Procedimento cirúrgico

Os critérios de entrada e indicação de pessoas para a cirurgia de mudança de sexo são discutidos por equipes multiprofissionais formadas por psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. O processo de avaliação psicológica leva, em média, dois anos para ser concluído. É um período difícil, onde muitos chegam sem querer fazer o atendimento e outros desistem no meio do processo. Os motivos vão da abordagem dos profissionais até a demora para a realização do procedimento cirúrgico, cuja fila de espera é enorme na rede pública.

No ambulatório do Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo, cerca de 600 pessoas aguardam para realizar a avaliação com intuito da redefinição de sexo. “Aproximadamente 70% do público é composto por mulheres trans”, conta a psicóloga Judit Busanello, psicóloga e diretora do ambulatório do Centro de Referencia e Treinamento em DST/AIDS. O centro clínico realiza 12 cirurgias por ano.

Além do tempo de espera, o tratamento dos profissionais é um fator negativo para aqueles vão às unidades de saúde em busca de atendimento. Foi o caso do enfermeiro Edu*, nome social escolhido por ele, que é homem trans. “Foi um choque. Fui destratado e a assistente social marcou uma consulta com uma psiquiatra quatro meses depois da minha visita. Quando fui atendido, a médica me deconsiderou e fazia perguntas grosseiras acerca da minha sexualidade. Parecia um alistamento, e não acolhimento”, indigna-se.

Limites da Psicologia

Conforme a psicóloga Daniela Murta, doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), a atividade psicológica precisa de uma uniformidade na prática. “Não temos que fazer diagnóstico nem avaliação, temos que acolher e orientar. Nosso dever é promover a saúde e a atenção àqueles que procuram auxílio nos centros de referência”, analisa.

Nesse sentido, o psicólogo do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, Ricardo Barbosa, acredita que entender a questão da transexualidade requer o reconhecimento de um sujeito de grupo. “A autenticidade das pessoas trans não têm lugar na sociedade. Assistimos um acúmulo dessas relações psiquicamente politraumáticas na recontrução de estigmas”, frisa. Se a gente, enquanto psicólogo (a), não reconhece os danos em termos de proposta e prática, acaba por produzir um trabalho que aliena o sujeito, insinuando que o gênero é diagnosticável.

Em relação aos limites e possibilidades da Psicologia em sobre a identidade trans, a psicóloga, psicanalista e doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Patrícia Porchat,  ressaltou que, em um primeiro momento, a psicanálise deve ser posta em contato com a realidade trans e ser questionada sobre a construção de gênero em geral.

“O primeiro limite de atuação do psicanalista é a concepção do que significa o outro. É importante essa noção de sujeito para despir os preconceitos, as crenças”, diz Porchat. “Acreditar apenas no masculino e feminino engessa o pensamento para trabalhar com identidades trans. A Psicologia deve construir uma forma de desmontar isso na cabeça das pessoas, o que simboliza um novo e contínuo trabalho”, finaliza a psicóloga.

Nota técnica

O seminário fornecerá subsídios para uma nota técnica que será coordenada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), com a participação dos Conselheiros Regionais de Psicologia,  consultores ah doc e movimento social. O objetivo é construir diretrizes éticas e técnicas à categoria sobre o processo transexualizador e sobre as questões da transexualidade. “É importante que o CFP e os CRPs saibam orientar sobre esse procedimento nas identidades trans no exercício da profissão”, constata o presidente Humberto Verona.

Além do seminário e da nota técnica, outras iniciativas virão, como a  construção  de um série de vídeos sobre a Psicologia e as sexualidades. O objetivo é potencializar a reflexão da profissão com as questões que envolvem as sexualidades na perspectiva dos Direitos Humanos.


Disponível em http://site.cfp.org.br/seminario-aborda-fragilidade-do-atendimento-de-saude-a-populacao-trans/. Acesso em 07 out 2013.

domingo, 29 de setembro de 2013

Fantasia e desejo nas redes sociais

Luiz Fernando Dias Duarte
02/11/2012

O vocabulário sobre as emoções na cultura ocidental contém muitas áreas de imprecisão e ambiguidade, o que enseja a impressão comum de não corresponder a representações sociais sistemáticas, recorrentes e obrigatórias. Desejo e fantasia são algumas dessas categorias que deslizam com frequência em nossa linguagem, como se expressassem apenas volúveis devaneios da vida individual de cada um de nós.

Tanto as psicologias quanto as ciências sociais enfrentam o desafio de compreender os modos pelos quais se estruturam essas dimensões da experiência humana – e como emergem e intervêm nas tramas da vida social.

Já nos primeiros tempos das ciências sociais, temas como os do ‘ideal’, da ‘imitação’, da ‘influência’, da ‘autoridade’, do ‘transe’ se impunham nessa área sutil da constituição coletiva da vida dita ‘subjetiva’ dos sujeitos. Dimensões que, sob a forma das ‘paixões’ e da ‘imaginação’, já haviam motivado os filósofos sociais desde o século 17, devido à sua crucialidade nas esferas da família, da religião, da política e da prática econômica.

A capacidade de imaginação e de projeção futura de imagens ideais, desejáveis, é uma dimensão essencial da construção dos sentidos do mundo em qualquer sociedade. Entre nós, essa capacidade é sobrevalorizada como chave da ideologia do progresso e da mudança, sob a forma da ‘criatividade’ e da ‘invenção’. Tanto nossas ciências como nossas artes e nossos meios de comunicação são lugares regulares do cultivo e fomento da imaginação ideal.

Graças ao extraordinário desenvolvimento da criatividade científica, produziram-se recentemente novos recursos públicos de compartilhamento da fantasia e do ideal, concentrados na comunicação digital e na possibilidade de sua circulação em ‘mundos virtuais’.

A esfera da internet, com suas múltiplas possibilidades de invenção e comunicação, abriga hoje formas cada vez mais complexas de troca social

A esfera da internet, com suas múltiplas possibilidades de invenção e comunicação, abriga hoje formas cada vez mais complexas de troca social, a partir de posições máximas de individualidade, intimidade e exclusividade. Cada sujeito social exercita sua vontade e obedece ao seu desejo de forma singular, ao acessar o espaço virtual e encaminhar na tela suas opções de navegação. Esse espaço é, no entanto, apenas uma nova versão dos espaços sociais reais, essenciais para o estabelecimento de uma identidade humana.

Imperiosa condição

Acabo de participar, no 36º Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), de um Grupo de Trabalho sobre ‘sexualidade e gênero’, em que diversas comunicações puseram em cena os mundos virtuais, do ponto de vista das fantasias sexuais ou eróticas para ali transpostas e ali retrabalhadas e vivenciadas.

Do ponto de vista dos organizadores do grupo, trata-se de uma coincidência imprevista; do ponto de vista da experiência social que cabe aos antropólogos interpretar, trata-se de uma imperiosa condição: os desejos e as fantasias eróticas, tão essenciais para a vida humana, encontram no espaço virtual uma arena privilegiada para se desenvolver, já que podem circular em uma esfera de trocas muito ampliada, em um gigantesco mercado de opções, com altas garantias de anonimato e baixas exigências de dispêndio econômico.

Ana Paula Vencato tratou das mulheres que se relacionam com crossdressers masculinos na vida real e que têm suas ambivalentes experiências compartilhadas em redes virtuais; Laura Lowenkron explorou “a construção dos marcadores corporais da menoridade em investigações policiais de pornografia infantil na internet”; Débora Leitão apresentou sua pesquisa sobre “sexualidade e mercado erótico no mundo virtual Second Life”; Carolina Parreiras tratou da produção de pornografia alternativa na internet; e Weslei Lopes da Silva discutiu as “representações e vivências do corpo feminino em interações sexuais pagas no ciberespaço”.

Outros trabalhos não focados na internet, como o de Amaro Braga Júnior sobre a ‘homoafetividade’ em quadrinhos japoneses, permitiram uma comparação frutífera entre diferentes conjugações da fantasia erótica contemporânea no Brasil. 

Virtualidade e realidade

Muito se pode discutir as condições da pesquisa em tais contextos: o acesso às redes e grupos; a ética da relação com os interlocutores; a fluidez e impermanência dos círculos de interação; a dificuldade de proceder a correlações entre as condições ‘reais’ dos sujeitos plugados e as que são encenadas por seus avatares on-line.

Em outro nível de preocupações, o próprio estatuto da ‘virtualidade’ é muito discutível, já que as experiências desencadeadas nesse meio são também ‘reais’ ao seu modo; no registro da relativização a que se dedica a antropologia sobre a concepção de realidade característica de nossa cultura.

Afinal de contas, a leitura de um romance, a realização de uma viagem, a fruição de um concerto musical, a experiência de um ritual religioso ou de absorção de um alucinógeno são todas elas experiências fantásticas de efeitos imediatamente concretos, de máxima implicação para a vida ‘real’ de cada um de nós.

A internet corresponde a uma nova dimensão de reverberação de todos os desejos e de todas as fantasias formuláveis em nosso código cultural

A internet corresponde, assim, a uma nova dimensão de reverberação de todos os desejos e de todas as fantasias formuláveis em nosso código cultural, com potenciais de realização em escala de massa e com algumas propriedades singulares, que os estudos tentam discernir.

Novos horizontes de relação entre o público e o privado são evidentes – e afetam particularmente as experiências eróticas. Também se apresenta aí uma nova fronteira entre a sensibilidade corporal imediata e as mediações intelectuais e cognitivas, o que desafia as convenções tradicionais da satisfação do desejo e da atualização da fantasia.

E a própria fronteira entre a fantasia e a realidade pode se refundir, como na criminalização da posse de imagens de pornografia infantil num computador pessoal, estudada por Laura Lowenkron: um crime de fantasia numa fervilhante galáxia de desejos.

Sugestões de leitura:
Leitão, Débora Krischke. Entre primitivos e malhas poligonais: modos de fazer, saber e aprender no mundo virtual Second Life. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n.38, jul/dez 2012.
Bell, Mark. Toward a definition of virtual worlds. Journal of Virtual Worlds Research, vol.1, n.1, 2008.
Butler, Judith. The force of fantasy: feminism, mapplethorpe and discursive excess. In: Cornell, D. (org.). Feminism and pornography. Nova Iorque: Oxford University Press, 2000, p. 487-508.
Foucault, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
Miller, Daniel e Slater, Don. Etnografia on e off-line: cybercafés em Trinidad.Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n.21, p.41-65, jan/jun 2004.
Parreiras, Carolina. Altporn, corpos, categorias e cliques: notas etnográficas sobre pornografia online. Cadernos Pagu, n.38, jan/jun 2012.


Disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo/fantasia-e-desejo-nas-redes-sociais. Acesso em 24 set 2013.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Homofobia e homofobia interiorizada: produções subjetivas de controle heteronormativo?

Márcio Alessandro Neman do Nascimento
Athenea Digital - núm. 17: 227-239 (marzo 2010)

Resumo: O artigo problematizará, teoricamente, algumas questões emblemáticas que circunscrevem as homossexualidades na história, partindo de um posicionamento teórico-metodológico marcado pelos estudos culturais e de gênero realizados por autores pós-estruturalistas. Na atualidade, há muitos avanços e conquistas, no âmbito sócio-político, relacionadas à diversidade sexual. Entretanto, essa mesma visibilidade tem produzido disparadores para práticas sociais violentas demonstradas em crimes e discursos de ódio, intolerância e interdições veladas contra homossexuais. Assim, pretende-se apresentar a construção social da homofobia e, subseqüentemente, da homofobia interiorizada, uma vez que seus pilares formadores se sustentam por processos de subjetivação heteronormativa pulverizados em contextos sociais cotidianos.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

História da ciência e a diversidade de orientações sexuais: natureza, cultura e determinismo

Valter Forastieri
Candombá - Revista Virtual, v. 1, n. 1, p. 1 – 15, jan – jun 2005

Resumo: Este artigo é uma revisão de como a ciência vem tratando a questão da existência de uma variedade de tipos de orientações sexuais. A orientação sexual, um padrão peculiarmente humano, é caracterizada pelo comportamento sexual mais aspectos cognitivos referentes à atração, fantasias e desejos sexuais. A tentativa de explicação desse fenômeno criou disputas entre biólogos e psicólogos, a controvérsia natureza versus cultura. No início do século XX, o determinismo cultural da psicanálise foi a base de explicação da orientação sexual, mas, com o passar das décadas, foi perdendo espaço para o determinismo biológico, impulsionado pela revolução biotecnológica.


sábado, 20 de julho de 2013

Alemanha: autoridades apoiam tratamento forçado de jovem transexual

Transfofa
3 Abril 2012

Uma criança alemã que tem vivido como rapariga desde que iniciou o percurso escolar há meia dúzia de anos, está para ser internada no hospital Charité University, em Berlim - onde será “curada” da sua transexualidade ao ser encorajada a tomar “atitudes de rapaz”.

Isto segue-se à sentença ditada pelo Berlin Court of Appeal que sentencia que a jovem poderá ser separada da mãe, com quem vive actualmente, e forçada a internamento na ala psiquiátrica do hospital.

O tribunal concordou com a visão de uma enfermeira do Berlin Youth Office e de Klaus Beier, director da ala do hospital, que suportam que, apesar de viver como rapariga há anos, a sua transexualidade é somente induzida pela mãe.

A seguir ao tratamento no hospital, onde comportamentos que se coadunem mais com o sexo biológico da jovem serão encorajados, será então transferida para uma família de acolhimento.

Como o Portugalgay já tinha descrito em fevereiro (www.portugalgay.pt/news/Y030212A/alemanha:_crianca_transexual_de_11_anos_em_risco_de_ser_institucionalizada), a situação foi despoletada pela separação dos pais há algum tempo, e decisões chave sobre o seu desenvolvimento caíram sob a alçada do Berlin Youth Office.

Apesar do facto de já viver como rapariga desde a escola primária, o pai fez recentemente alegações junto ao Youth Office argumentando que a sua identificação como mulher é totalmente induzida pela mãe.

Esta visão foi corroborada por uma enfermeira do Youth Office e que levou à sua primeira institucionalização quando a jovem recusou que o seu género fosse questionado e por supostamente ter expressado que preferia morrer a crescer como rapaz.

Durante as audições, ela e a sua mãe, apoiadas pela sexóloga Hertha Richter-Appelt, de Hamburgo, requereram que um diagnóstico psiquiátrico fosse elaborado, o que foi rejeitado por ser um “antiquado ponto de vista”.

A decisão do tribunal foi violentamente criticada pelo advogado da rapariga, que considerou a decisão “apavorante”, acrescentando que em lado nenhum se encontra suporte de que a transexualidade possa ser “induzida”, acrescentando que “é uma invenção da enfermeira que só falou com a jovem uma vez durante uma hora, e cujas opiniões foram completamente ignoradas”.

O advogado e a família planeiam um recurso ao Federal Constitutional Court, que pode decidir rapidamente em matérias de custódia.

Este caso tem recebido atenção tanto localmente como internacionalmente. Uma marcha de uns 250 elementos do “Action Alliance Alex” teve lugar em frente ao Departamento do Senado de Berlim para a Juventude com o mote “Stop the forced institutionalisation of Alex” now!.

Um porta-voz do grupo afirmou que “Esta história não é única. Instituições como o Youth Office e o hospital têm usado a coerção e a pressão psicológica para imporem a sua visão! A raça e a identidade de género são direitos, não doenças.”

Durante esta acção, uma delegação foi recebida pelo secretário de estado responsável pelo Youth Department, parecendo reconhecer pela primeira vez a seriedade do assunto e, embora o departamento não possa interferir directamente nestas matérias no Berlin Youth Office, concordou em ser mediador neste caso. Espera-se agora uma reunião envolvendo todas as partes.

Uma petição também se encontra a recolher assinaturas em (www.change.org/petitions/mayor-of-berlin-stop-the-institutionalization-of-a-11-year-old-transexual) que já conta com mais de 25.000 assinaturas. Dirigida ao Mayor de Berlin, Klaus Wowereit, afirma que “A esta rapariga vai ser ensinado que o que sente é errado, e vai ser empurrada para a negação que já custou a vida de tantas pessoas trans, graças a decisões baseadas em preconceitos pelo Youth Welfare office, e a vida desta jovem poderá ficar irremediavelmente arruinada.”

Reuniões de pelo menos umas 15 diferentes organizações preocupadas com este caso acontecem de 15 em 15 dias, tendo acontecido a última a 1 de Abril no espaço do TransInterQueer de Berlim.


Disponível em http://portugalgay.pt/news/Y030412A/alemanha:_autoridades_apoiam_tratamento_forcado_de_jovem_transexual. Acesso em 09 jul 2013.

domingo, 2 de junho de 2013

Para psicólogos, transexualismo não é doença

Carolina de Andrade 
20/11/2012

A visão do transexualismo como doença é controversa. Uma ação mundial tenta retirá-lo dos manuais de doenças da OMS e da Associação Americana de Psiquiatria.

Transtorno de identidade sexual na infância divide especialistas A campanha "Stop Trans Patologization" ["Parem de patologizar os trans"] tem o apoio, aqui, do Conselho Federal de Psicologia.

Segundo a psicóloga Ana Ferri de Barros, que coordena a comissão de sexualidade e gênero do conselho paulista, o acesso à cirurgia de mudança de sexo pelo SUS não deveria depender do diagnóstico.

"Defendemos a despatologização das identidades 'trans' e também o acesso universal à saúde", diz.

É também a posição da cientista social Berenice Bento, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. "Não há exame que ateste a transexualidade [termo usado por quem é contra a patologização]."

Para Bento, gênero é construção social e o diagnóstico do transtorno na infância, absurdo: "Quem precisa de tratamento são os pais".

Já na visão do psicanalista Roberto Graña, o transtorno deve ser tratado como uma perturbação no desenvolvimento. Ele considera o transexualismo uma recusa em aceitar o real, o sexo biológico e, portanto, uma doença. Diz ainda que tratamentos hormonais são inúteis e perigosos na juventude.

A psicanalista e colunista da Folha Anna Veronica Mautner afirma ser "muito difícil" estabelecer limites entre as origens do distúrbio, hormonais, comportamentais ou de outra ordem. "Cada caso é um caso."

Disponível em http://noticias.bol.uol.com.br/ciencia/2012/11/20/para-psicologos-transexualismo-nao-e-doenca.jhtm. Acesso em 29 nov 2012.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Pensamentos perigosos

Arnd Florack; Martin Scarabis

Há um teste simples, concebido pelos psicólogos sociais Andreas Klink e Ulrich Wagner. Na calçada, uma jovem pergunta qual o caminho até a rodoviária. A maioria dos passantes lhe dá a informação; somente uns poucos mal-educados ou apressados seguem adiante, ignorando-a. Um pouco mais tarde, ela retorna ao local para fazer a mesma pergunta. Com uma diferença: a jovem agora veste roupas orientais e um véu lhe recobre a cabeça. Os professores querem verificar se ela será tratada de forma diferente. 

Infelizmente, o resultado dessa pesquisa de campo dos professores das universidades Jena e Marburg, na Alemanha, comprova com todas as letras: o número de pessoas que agora ignoram a suposta estrangeira mais que duplica. Em outros experimentos, os dois psicólogos solicitaram a pessoas com nomes estrangeiros que respondessem a anúncios imobiliários e de emprego, e observaram nos concidadãos o mesmo comportamento de repulsa. A causa, evidente, é uma só: preconceito.

A psicologia atual caracteriza o preconceito como a presença, profundamente arraigada na memória, de associações negativas vinculadas a pessoas de culturas estrangeiras. Estudos realizados em muitos países evidenciam que todo ser humano nutre semelhantes reservas e age em consonância com elas. Nesse contexto, a violência praticada contra estrangeiros, que não exclui sequer assassinatos, é apenas a ponta do iceberg. Como mostra o teste de Klink e Wagner, o comportamento discriminatório se manifesta sobretudo em situações cotidianas. Os estereótipos, entretanto, não dificultam a vida apenas dos grupos estigmatizados. 

Com razão, os psicólogos sociais americanos Robert A. Baron e Donn Byrne observam que pessoas com atitudes preconceituosas vivem em ambiente social carregado de conflitos e medos desnecessários. Sentem constante temor, por exemplo, de ser atacadas ou molestadas por estrangeiros supostamente hostis. Ou seja, essa postura redunda em considerável queda da qualidade de vida - argumento suficiente para atuar no combate a hábitos socialmente nocivos do cérebro. Mas como fazer isso? Começando a debater o tema? Reeducando os portadores de preconceitos, ou seja, todos nós? Infelizmente, não é tão fácil assim. Se abordado de forma equivocada, o combate aos estereótipos pode, na melhor das hipóteses, ser inócuo. Na pior, levar a uma rejeição ainda maior. Quem deseja de fato acabar com os preconceitos deve compreender que papel eles desempenham em nosso pensamento.

John Dovidio e colegas da Universidade Colgate, nos Estados Unidos, estudam a interação de grupos sociais. Em um de seus experimentos constataram que os preconceitos atuam no plano inconsciente. A associação entre grupos de pessoas e características negativas é estabelecida numa esfera sobre a qual não temos controle.

Como descobrimos juntamente com Herbert Bless, esse fenômeno não se restringe à questão de brancos e negros nos Estados Unidos. Em experiências semelhantes, estudantes alemães também revelaram associações negativas vinculadas a grupos estrangeiros - nesse caso, voltando sua desconfiança contra turcos e poloneses.

Todos os estudos relevantes indicam que o poder dos preconceitos se assenta primordialmente no modo como nossa memória funciona. Tão logo deparamos com um representante de um grupo étnico estranho, a memória põe de imediato à nossa disposição valorações e convicções estereotípicas. A elas podemos recorrer com reduzido esforço cognitivo, e sua influência se faz sentir em nosso juízo e comportamento. Não obstante, processos inconscientes não servem como explicação ou, menos ainda, como desculpa para o comportamento hostil em relação a estrangeiros. Afinal, para que uma postura automatizada se transforme em opinião expressa ou até mesmo em ação direcionada, é necessário que os preconceitos passem pelo crivo da consciência. É o que se verifica com freqüência quando questionamos universitários sobre sua opinião em relação ao tema. Em geral, eles manifestam postura neutra ou positiva no tocante a grupos estrangeiros. A razão é evidente: eles têm controle consciente sobre uma eventual opinião negativa.

Na maioria das vezes, podemos decidir a que informação dar peso maior, se às associações evocadas de forma automática ou aos fatos reais - como, por exemplo, quando um estrangeiro nos devolve a carteira que tínhamos perdido. Mas há uma limitação: se somos pressionados pelo tempo curto, estamos cansados ou por alguma outra razão nosso julgamento não resulta de reflexão, em geral os preconceitos se impõem. Ao que tudo indica, a categorização automática atua como uma espécie de mecanismo poupador de energia com o auxílio do qual nosso cérebro processa informações com maior eficiência.

É o que demonstra um experimento de Galen von Bodenhausen, da Universidade Noroeste, de Chicago. O psicólogo, que investiga as bases cognitivas dos estereótipos, pediu a estudantes que avaliassem casos fictícios de colegas que teriam supostamente cometido um ato ilícito, isto é, colado na prova final, traficado drogas ou agredido alguém fisicamente. Os participantes deveriam indicar a probabilidade de cada colega ter cometido um desses atos. As infrações em questão foram escolhidas com base no estereótipo vinculado a certos grupos étnicos. A venda de drogas associava-se à imagem do negro americano; a trapaça no exame, ao tipo esportivo, de baixo desempenho acadêmico; e a agressividade, aos latinos.

Singular nesse experimento foi o fato de que os estudantes foram chamados a participar em horários específicos: às 9 da manhã, às 3 da tarde e às 8 da noite. Paralelamente, Von Bodenhausen depreendeu, por meio de um questionário, o ritmo diário de cada participante, identificando tanto os madrugadores quanto os de péssimo humor matinal. O resultado foi claro. Estudantes com dificuldade para acordar deixaram-se levar por seus preconceitos sobretudo de manhã. Nesse horário, mostraram o maior grau de certeza de que os inculpados haviam de fato cometido o ato ilícito. Mais tarde, ao longo do dia, revelaram juízo mais claro, baseando-se predominantemente nos fatos descritos. O oposto se verificou em relação aos madrugadores, que, em especial no período da noite, tatearam rumo à armadilha das próprias idéias preconcebidas.

A isso se soma o fato irônico de que, com o tempo, o preconceito reprimido pressiona cada vez mais por expressão. Você já tentou conter uma observação desagradável em relação a seu parceiro ou parceira? E não aconteceu de, no fim, o comentário escapar assim mesmo, talvez no momento menos apropriado? Esses acidentes cognitivos acontecem em breves momentos de desmotivação ou quando estamos menos alertas. A esse respeito, Neil Macrae, do Dartmouth College, em Hanover, Estados Unidos, conduziu uma pesquisa juntamente com Alan Milne, da Universidade de Aberdeen, e com Von Bodenhausen. 

Macrae e colegas investigaram a influência exercida por estereótipos sobre o pensamento e, em particular, de que maneira inibimos pensamentos impróprios. Em seu experimento, os participantes foram convocados a julgar uma pessoa. A fim de motivá-los a reprimir seus preconceitos, os voluntários foram acomodados diante de uma câmera de vídeo e podiam contemplar a própria imagem numa tela de televisão. De fato, esse truque induziu ao menos alguns deles a encobrir seus preconceitos, até o momento em que a câmera foi desligada. Então, sob a alegação de que um defeito técnico havia ocorrido, a experiência foi repetida. Justamente pessoas que antes haviam conseguido controlar seus preconceitos passaram a dar vazão entusiasmada a estereótipos. O contragolpe da repetição as pegou desprevenidas.

Mas de onde vem essa nossa estranha predileção por padrões de pensamento inexatos e, amiúde, até mesmo danosos? Uma das vantagens, nós já vimos aqui: os estereótipos nos poupam do esforço da reflexão, por simplificar o processamento da informação. Em certas situações, servem também de escudo para a preservação da auto-estima, como já demonstraram Steven Fein, do Williams College, em Massachusetts, e Steven Spencer, da Universidade de Waterloo, no Canadá. E estudos sociopsicológicos do passado já revelaram indícios de que pessoas com postura positiva em relação a si mesmas externam menos preconceitos a grupos estrangeiros.

Convém, no entanto, evitar conclusões precipitadas. Os meios de comunicação têm por prática demasiado freqüente partir do pressuposto de que frustrações pessoais conduziriam à discriminação de minorias: "Quanto maior o desemprego, tanto maior a hostilidade aos estrangeiros". Essa tese, no entanto, é refutada por estudos conduzidos por Jennifer Crocker, da Universidade de Michigan, bastante dedicada ao estudo de estigmas sociais. Segundo a psicóloga, a elevação da auto-estima pela via do preconceito funciona, paradoxalmente, apenas para as pessoas que já possuem auto-imagem positiva. As que se têm em baixa conta pouco lançam mão desse recurso. Para elas, desemprego ou insucesso costumam redundar em depressões ou auto-agressões.

Por outro lado, é inconteste o fato de que a integração a um grupo pode fortalecer a auto-estima. Como deixam claro numerosos estudos, nós nos definimos acima de tudo com base nessas unidades sociais, destacadas positivamente de outras. Isso por vezes leva o indivíduo a dar preferência a pessoas de seu próprio meio e a desvalorizar as demais. O significado fundamental desse mecanismo revela-se até na linguagem verbal. Palavras que caracterizam o próprio grupo ("nós", por exemplo) revestem-se comprovadamente de carga positiva maior que aquelas vinculadas a outro grupo (como "vocês"). No passado, pensava-se que apenas o conflito por bens materiais desencadeasse esse antagonismo entre grupos - ou seja, a tão propalada pilhagem da previdência social ou a disputa por postos de trabalho, percebida como intensa. Pesquisas comprovam que isso de fato ocorre, uma vez que estrangeiros sempre levam a pior nessa situação. 

Mas o que se revelou com o tempo foi que tamanha pressão externa não é sequer necessária. Participantes de um estudo divididos por psicólogos em grupos aleatórios revelaram imediata preferência pelos componentes do próprio grupo, embora de início não compartilhassem nenhuma experiência comum. O mero estabelecimento de um grupo basta para lançar as bases do preconceito.

Desde que começaram a estudar a interação entre grupos, os psicólogos sociais repetem a mesma pergunta: o que leva seres humanos a praticar crueldades incompreensíveis contra semelhantes - como a opressão brutal imposta às minorias, as "faxinas étnicas", as torturas e os estupros sistemáticos? Isso está de alguma forma relacionado aos preconceitos e à auto-estima dos perpetradores? Os pesquisadores americanos Sheldon Solomon, Jeff Greenberg e Tom Pyszczynski propõem uma explicação com sua Terror Management Theory (teoria do gereciamento do terror). O cerne dessa teoria é o medo que os humanos têm da própria morte - aquilo que é chamado de terror. A fim de se proteger disso, o homem esboça, no âmbito de sua cultura, um sistema de regras de comportamento e de escalas de valores. Viver em conformidade com essas regras lhe dá segurança e o faz sentir-se valoroso. Além disso, muitas culturas prometem aos obedientes uma existência após a morte.

Assim, se estranhos põem em questão a veracidade desse sistema de valores, como propõem os três pesquisadores, isso mexerá com o medo arcaico da própria finitude. Para estabilizar seu mundo, o homem, agora inseguro, reagirá com preconceitos e comportamento discriminatório.

Ainda que soe algo mística à primeira vista, essa teoria tem sido confirmada por numerosas pesquisas. Um ramo delas concentrou-se em examinar de que forma a auto-estima reduz o medo. Num experimento realizado pelo grupo de Greenberg, os participantes foram convocados a assistir a um filme sobre autópsias. Testes psicológicos revelaram que o filme lhes despertou medo. Havia, porém, uma possibilidade de neutralizar tal efeito, com o fortalecimento prévio da auto-estima, usando feedback positivo direcionado para cada personalidade.

Outro ramo da pesquisa voltou-se para as conseqüências do medo existencial. Quando nos sentimos inseguros, vemos com outros olhos pessoas em posições políticas ou religiosas diferentes da nossa? A resposta é sim. Ao se chamar a atenção de cristãos, por exemplo, para sua mortalidade, sua reação foi desvalorizar os judeus em relação aos demais cristãos - algo que, sem o componente da insegurança, não haviam feito. Os pesquisadores também chegaram a interrogar voluntários na calçada em frente a uma funerária e a provocar medo em torcedores holandeses às vésperas de um jogo contra a seleção alemã, para, depois, solicitar seu palpite quanto ao resultado.

Mas o que dizer do estupro, da tortura e do assassinato? Crimes dessa natureza, afirmam Solomon, Greenberg e Pyszczynski com toda a clareza, não se explicam apenas pela teoria do gerenciamento do terror. A maioria das culturas demanda que estranhos sejam tratados de forma humana e justa, razão pela qual criminosos de guerra desrespeitam, na verdade, seus próprios valores. Nesse caso fica evidente a ação de outro mecanismo: a chamada exclusão moral. A pessoa percebe os membros do grupo estrangeiro como seres desprovidos de humanidade, aos quais já não se aplica o preceito do tratamento humanitário. Tal mentalidade se reflete em concepções como a do ser "subumano" ou da "pureza étnica".

Se examinados à luz de critérios objetivos, os preconceitos logo se reduzem àquilo que de fato são: conclusões atabalhoadas e simplificadoras. Ainda assim, somos ao menos capazes de refreá-los mediante o controle e a análise crítica de nossos posicionamentos. Sabemos, porém, que isso com freqüência resulta numa luta árdua, que não exclui a possibilidade de reveses ou contragolpes.

O melhor é acabar com padrões de pensamento como esse de uma vez por todas, mas isso é mais fácil falar que fazer. Psicólogos sociais, entretanto, identificaram uma série de mecanismos responsáveis pelo preconceito:
  • para justificar nosso preconceito, recorremos a uma amostra distorcida;
  • contemplamos o grupo a que pertencemos como diferenciado; os demais, como massa homogênea;
  • o que contraria o estereótipo é visto como exceção;
  • buscamos informações que corroborem nosso juízo e desconsideramos aquelas que o questionam;
  • uma mesma ação é interpretada de maneiras diferentes, dependendo de quem a pratica;
  • portadores e vítimas de preconceitos comportam-se de modo a confirmar os estereótipos.

Examinemos esses pontos um a um. Em primeiro lugar, o fato de que os seres humanos são péssimos estatísticos. Um exemplo simples. Num pequeno país, vivem dois grupos de pessoas. Um deles, de mil habitantes, compõe a maioria da população, ao passo que o outro é constituído de apenas cem pessoas. Supondo que cem membros da maioria e dez da minoria sejam condenados por delitos, você decerto dirá que a criminalidade é idêntica nos dois grupos afinal, o número de criminosos perfaz 10% em ambos os casos. No dia-a-dia, porém, não dispomos de cifras tão elucidativas. Em vez disso, percebemos esses acontecimentos isoladamente, seja pelo jornal, seja pelo que ouvimos dizer - e aí falha nossa lógica: como demonstram inúmeros estudos, mesmo em casos bastante simples, geralmente não somos capazes de, a partir de dados isolados, inferir a freqüência real e atribuímos à minoria uma taxa de criminalidade maior. Caso ela de fato infrinja a lei com maior assiduidade, esse dado costuma ser superestimado. 

Psicólogos sociais denominam essa distorção perceptiva de correlação ilusória. Tanto as minorias como os delitos atraem sobremaneira nossa atenção. Armazenamos melhor na memória fatos assim, o que significa evocá-los com maior facilidade - terreno ideal para que o preconceito viceje.

Esse efeito é ainda reforçado por nossa tendência acentuada a, em se tratando de outros grupos, tirar conclusões gerais baseadas em observações isoladas. A crença é de que "nós somos diferentes um do outro, mas eles são todos iguais". É possível que isso se deva ao fato de conhecermos melhor o grupo a que pertencemos e suas diferenças, enquanto o grupo estranho nos parece um bloco monolítico. Paradoxal é que não generalizemos num único caso: quando a experiência que temos vai de encontro a nossos preconceitos. Vivências positivas são logo interpretadas como exceções - o negro que integra nosso círculo de amizades é "negro de alma branca", a mulher que estacionou o carro muito bem teve "sorte" e o professor dedicado é "excêntrico". Esse mecanismo funciona tanto melhor quanto mais os outros nos surpreendem. E, por fim, essa dialética da exceção acaba por preservar todos nossos preconceitos. O ser humano precisa de tanto tempo para rever sua opinião preconcebida porque almeja sobretudo confirmá-la. Ele busca informações que corroborem sua opinião e suprime as experiências que a refutam - ou então as avalia de modo a preservar o estereótipo.

Preconceitos têm a tendência traiçoeira de se confirmar. Isso pode ocorrer sob a forma da "profecia que se cumpre a si mesma", quando nossa postura influencia imperceptivelmente o próprio comportamento - e o daquele com quem interagimos. Além disso, os estigmatizados contribuem também para o juízo negativo que fazemos deles, e justamente porque temem ser reduzidos a um estereótipo. Essa relação foi demonstrada por um grande número de experimentos conduzidos por Claude Steele, psicólogo da Universidade Stanford.

Ao que parece, nosso aparato cognitivo faz de tudo para preservar os preconceitos. Temos, portanto, de nos arranjar com eles, fadados a nos vigiar constantemente? A conclusão soa pessimista demais. Mais eficaz seria não permitir sequer o surgimento de estereótipos. Os psicólogos sociais Baron e Byrne vão direto ao ponto quando dizem que crianças não nascem preconceituosas: o preconceito é, portanto, aprendido. É por essa razão que ambos os pesquisadores incentivam pais, pedagogos e professores a deixar de transmitir opiniões estereotipadas. Mas há um problema aí: cada um de nós considera suas opiniões corretas e livres de preconceito. Algo semelhante, portanto, funcionará somente se pais e demais envolvidos forem sensibilizados para as próprias opiniões preconcebidas.

Muitos psicólogos defendem o ponto de vista de que o contato com os discriminados diminui os preconceitos pouco a pouco. Com o intuito de investigar essa idéia, os psicólogos sociais de Marburg, Wagner e sua equipe, se valeram de estatísticas de criminalidade e de dados provenientes de amplos levantamentos. Verificou-se que precisamente os moradores de regiões com alta porcentagem de estrangeiros são as que menos nutrem opiniões estereotipadas. Violência contra estrangeiros ou slogans xenófobos, por outro lado, aparecem sobretudo onde a possibilidade de intercâmbio é quase inexistente. Esses dados, contudo, não constituem prova definitiva de que o contato realmente contribui para a eliminação dos preconceitos. Talvez fosse possível concluir, antes disso, que lugares com grande variedade cultural tendem a atrair pessoas simpáticas às culturas estrangeiras.

Provas mais contundentes são oferecidas por estudos realizados em salas de aula. Nelas, pode-se ensinar as crianças de forma direcionada, em conjunto com minorias ou separadamente delas. Todavia, como se verificou nos Estados Unidos e em outros países, esse contato nem sempre obtém o êxito desejado. Por vezes, ele apenas intensifica o conflito, piorando a situação dos grupos estigmatizados. Somente sob certas condições a luta contra os preconceitos é bem-sucedida - às vezes com resultados surpreendentes. Por um lado, é indispensável que as autoridades, a direção da escola e sua política apóiem esse modelo educacional. É necessário, por exemplo, que recursos sejam disponibilizados em quantidade suficiente ou, pelo menos, que se dê total respaldo aos pedagogos envolvidos em projetos dessa natureza.

Além disso, a interação entre grupos de alunos precisa ser bastante intensa: intercâmbios superficiais não bastam. Ajuda muito, por exemplo, se membros dos diferentes círculos já tiverem relação de amizade. Na aula em si, trata-se de propor aos alunos um objetivo comum ou tarefas a serem realizadas em grupos mistos. Do contrário, os alunos de uma classe tenderão a se compor outra vez de acordo com sua origem. Por fim, desempenha papel decisivo o modo como os grupos se vêem no início de um projeto pedagógico como esse. É imperativo não vigorar entre eles nenhuma diferença de status - condição, aliás, que raras vezes se verifica. Se algum domínio é exercido por um grupo de alunos, isso resultará em conflitos que apenas fortalecerão medos e reservas preexistentes. Havendo hostilidade prévia entre os grupos, é quase certo que o projeto fracassará.

No entanto, na presença dos pressupostos necessários, o que se verifica entre as classes ou os grupos de trabalho mistos é um fenômeno que lança no esquecimento todas as diferenças e visões preconcebidas: a chamada recategorização. Os estudantes passam a se ver não mais como "nativos" e estrangeiros, mas apenas como membros de uma mesma equipe. E, fora da sala de aula, esse mecanismo funciona da mesma maneira. Assim é que um torcedor de determinado time de futebol pode torcer também por um jogador de outro time quando esse jogador está atuando na seleção nacional. Da mesma forma, os habitantes de um bairro com características multiculturais se identificam com todos os demais grupos étnicos moradores da "sua" rua.

Mas e o próprio indivíduo, o que pode fazer? A ele cabe exercitar sua autocrítica com tenacidade e lutar por juízos objetivos. Importante é como se comporta nosso ambiente social, pois apenas quando os meios de comunicação e a experiência cotidiana nos esfregam na cara que nossas idéias preconcebidas não se aplicam, e nós mesmos enfim o percebemos, tornamo-nos capazes de modificá-las. Somente assim é possível combater a discriminação.

Disponível em <http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/pensamentos_perigosos.html>. Acesso em 15 nov 2012.