Helen Philips
fevereiro de 2007
Em uma das últimas vezes que vi minha avó, ela falou animada
sobre o filho que estava longe, estudando na universidade. Parecia
absolutamente convicta e muito orgulhosa, apesar de também reconhecer que seu
único filho, sentado ao nosso lado, já tinha idade para se aposentar. Sem
aparentar confusão ou angústia, seu relato era lúcido e complexo, como se uma
história perfeitamente plausível tivesse saltado de algum ponto do passado para
o vazio de sua memória recente.
Muitas pessoas idosas desenvolvem gradualmente amnésia para
acontecimentos recentes, ao passo que as lembranças da juventude se mantêm
ricas e detalhadas. Costumam inventar histórias para esconder seu
constrangimento em relação aos lapsos, e em geral têm noção de que sua memória
é confusa. Depois de uma série de derrames, o tipo de histórias que minha avó
contava era um pouco diferente - os neurologistas as chamam confabulação, uma
história ou memória fictícia da qual se tem certeza da veracidade. Não é
mentira, pois não há intenção de enganar, e as pessoas parecem acreditar no que
estão dizendo. Até recentemente isso era visto apenas como deficiência
neurológica, um sinal de que algo está errado. Atualmente, no entanto, sabe-se
que pessoas saudáveis também recorrem a essa prática.
"A confabulação é sem dúvida mais que o resultado de um
déficit na memória", afirma o neurologista e filósofo William Hirstein, da
Faculdade de Elmhurst, em Chicago, e autor do livro Brain fiction, de 2005.
Crianças e adultos confabulam quando pressionados a falar sobre algo de que não
têm nenhum conhecimento, ou após uma sessão de hipnose. Isso levanta dúvidas
sobre a precisão dos depoimentos de testemunhas. Na verdade, todos nós podemos
confabular de forma rotineira conforme tentamos racionalizar decisões ou
justificar opiniões. Por que você me ama? Por que comprou aquela roupa? Por que
escolheu determinada carreira? De forma mais extrema, alguns especialistas
defendem que nunca temos a certeza do que é realidade, então precisamos
confabular o tempo todo para tentar compreender o mundo à nossa volta.
A confabulação foi mencionada pela primeira vez na
literatura médica no final da década de 1880 pelo psiquiatra russo Sergei
Korsakoff (1853-1900). Ele descreveu um tipo distinto de déficit de memória
apresentado por pessoas que abusaram do álcool ao longo de muitos anos. Esses
indivíduos não tinham memória de eventos recentes, e preenchiam as lacunas
espontaneamente com histórias algumas vezes fantásticas e impossíveis.
Teste de realidade
O neurologista Oliver Sacks, da Faculdade de Medicina Albert
Einstein, em Nova York, escreveu sobre um homem com a síndrome de Korsakoff em
seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de 1985. O senhor
Thompson nunca lembrava onde estava e por que, ou quem era seu interlocutor,
mas inventava explicações elaboradas para as situações em que se encontrava. Se
uma pessoa entrava na sala, por exemplo, ele a cumprimentava como se fosse um
cliente de sua loja. Um médico de jaleco branco podia se tornar o açougueiro.
Para o senhor Thompson essas ficções eram plausíveis, e ele parecia não
perceber que elas se modificavam o tempo todo. Comportava-se como se seu mundo
improvisado fosse um lugar perfeitamente normal e estável.
Outros que também compartilham o hábito de contar histórias
- e acreditar nelas - são aqueles que sofreram aneurisma ou ruptura da artéria
comunicante anterior, um vaso sangüíneo cerebral que leva sangue para regiões
do lobo frontal. Essas pessoas têm amnésia profunda, mas não parecem notar o problema
e confabulam para preencher as lacunas. A mesma coisa pode acontecer com as que
têm a doença de Alzheimer e outras formas de demência, bem como com quem teve o
cérebro lesionado por um derrame.
O neurologista Armin Schnider, do Hospital da Universidade
Cantonal de Genebra, diz que a vasta maioria das confabulações que escutou de
seus pacientes até hoje se relacionava de forma direta ao início de sua vida.
Um deles, dentista aposentado há décadas, preocupava-se muito pelo fato de
deixar seus pacientes esperando. Uma mulher idosa falava do filho como se ele
ainda fosse bebê. A maioria desses pacientes tinha lesões nos lobos temporais,
especialmente no hipocampo, região estreitamente relacionada à memória. Parecia
provável que eles tivessem de alguma forma perdido a capacidade de criar novos
registros mnemônicos, por isso passaram a acessar os antigos. Era intrigante o
fato de não perceberem isso; estavam convencidos de suas histórias, alguns até
agiam com base nelas.
Estudando mais detalhadamente o funcionamento mental dessas
pessoas, Schnider observou que elas realmente se lembravam de muito pouca
coisa. Se lhes fosse pedido que decorassem uma lista de palavras, meia hora
mais tarde não recordavam de nenhuma. Mas o problema seria criar novas memórias
ou acessá-las mais tarde? Para responder a questão, Schnider mostrou a cada
pessoa uma série de imagens e pediu que apontasse sempre que alguma delas
aparecesse pela segunda vez.
Falharam na tarefa todos os amnésicos que não confabulavam e
apenas alguns que criavam ficções. A freqüência de acertos foi maior nos
confabuladores considerados "avançados".
O fato mais revelador do experimento surgiu quando Schnider
o repetiu uma hora mais tarde, usando as mesmas imagens, mas em ordem
diferente, alterando inclusive as que eram repetidas. O pesquisador pediu aos
participantes que apontassem as novas repetições, sem levar em conta a sessão
anterior. A pontuação dos amnésicos que não inventavam histórias foi idêntica à
da primeira sessão, mas desta vez os confabuladores tiveram desempenho muito
pior. Era comum dizerem que determinada imagem já havia aparecido antes na
segunda sessão, quando na verdade eles a tinham visto no teste anterior. Assim,
o problema dos confabuladores não é necessariamente não conseguir criar novas
memórias, mas confundir lembranças e instante presente. "Eles parecem ser
incapazes de suprimir recordações irrelevantes para a realidade em
andamento", diz Schnider.
O pesquisador acredita que todos temos um mecanismo
pré-consciente que distinguiria a realidade atual da fantasia, ou de uma
memória sem grande importância. "O cérebro decide muito antes de o
pensamento se tornar consciente", diz. Seus estudos usando
eletroencefalografia (EEG) indicam que, quando os indivíduos capazes de suprimir
memórias irrelevantes vêem as imagens na segunda sessão, um padrão de atividade
característico ocorre em 0,2 a 0,3 segundo. Entretanto, eles levam o dobro do
tempo para ter consciência do que está acontecendo. O processo de decisão,
rápido demais para a percepção, também se dá de forma inconsciente. "Nosso
cérebro distingue fato de ficção bem antes de termos acesso aos nossos
pensamentos", conclui Schnider. A confabulação pode resultar da
incapacidade de reconhecer quais memórias são relevantes, reais e atuais. "Mas
essa não é a única razão pela qual as pessoas inventam histórias", pondera
William Hirstein. Segundo ele, a maior parte dos confabuladores são pessoas que
têm ilusões ou falsas crenças sobre a própria doença (ver Mente&Cérebro, no
162, pág. 33.)
Embora surpreendente, é comum que, alguns dias após um
derrame, muitos pacientes se neguem a acreditar que algo de errado aconteceu,
mesmo quando estão com membros paralisados ou até cegos. Então inventam
histórias elaboradas para explicar seus problemas. Uma das pacientes de
Hirstein, por exemplo, tinha o braço esquerdo paralisado, mas acreditava que
ele funcionava normalmente. Dizia que o membro deitado ao lado dela não era de
fato o seu. No momento em que Hirstein apontou a aliança de casamento, ela
disse com horror que alguém a havia pegado. Quando o médico pediu que a
paciente provasse que nada havia de errado com seu braço esquerdo, ela disse
que estava passando por uma crise de artrite.
Trabalhando com pessoas na mesma situação, o neurocientista
Vilayanur Ramachandran, da Universidade da Califórnia em San Diego,
ofereceu-lhes uma quantia em dinheiro como recompensa por tarefas que eles
seguramente não podiam realizar, como bater palmas ou trocar uma lâmpada.
Tarefas para as quais eles eram capazes eram pagas com quantias menores. Os
pacientes sempre se ofereciam para as que pagavam mais, como se não tivessem a
menor idéia de que iriam falhar.
Uma condição rara pode fazer as pessoas confabularem de
forma ainda mais complexa. Depois de um derrame, algumas manifestam a síndrome
de Capgras, cuja principal característica é a de acreditar que seus parentes
próximos tenham sido substituídos por impostores disfarçados (ver "Invasão
dos sósias". Mente&Cérebro, no 143, dezembro de 2004.) Para se justificar,
inventam histórias de abdução por alienígenas e as mais estranhas conspirações.
Em casos extremos, deixam de se reconhecer no espelho, ou acreditam que todos
estão mortos. Para cada situação, confabulam para explicar os absurdos.
O que todos esses distúrbios têm em comum é uma discrepância
aparente entre percepção e sentimentos do paciente, e a informação que recebe.
"Em todos os casos a confabulação é um problema de conhecimento", diz
Hirstein. Quer seja uma lembrança, uma resposta emocional ou uma imagem
corporal perdida, se o conhecimento não está lá, algo preenche a lacuna.
Uma região do cérebro chamada córtex órbito-frontal (COF),
situada nos lobos frontais, pode ajudar a entender o fenômeno. Também conhecido
como parte do sistema de recompensa, o COF nos induz a fazer coisas prazerosas
ou buscar o que precisamos. Hirstein e Schnider sugerem, entretanto, que esse
sistema teria papel ainda mais básico. Essa e outras regiões frontais estariam
ocupadas monitorando as informações geradas por nossos sentidos, memória e
imaginação, suprimindo o que não é necessário e definindo o que é compatível
com a realidade e relevante.
Segundo o neurocientista Morten Kringelbach, da Universidade
de Oxford, esse rastreamento da realidade nos permite classificar tudo
objetivamente para que possamos definir nossas preferências e prioridades.
Pessoas que confabulam podem ter lesões no COF, o que
significa não receber toda a informação ou não a classificar corretamente.
Outra possibilidade é haver lesões em outras regiões que se comunicam com essa
área do cérebro. De qualquer forma, quando a informação recebida é incompleta
ou contraditória, há um esforço extra para fazer as coisas se encaixarem - e o
resultado disso é a ficção. Kringelbach suspeita, porém, que as pessoas não
confabulam apenas quando há algo errado.
Experimentos feitos pelo filósofo Lars Hall, da Universidade
de Lund, Suécia, desenvolveram ainda mais essa idéia. Foram mostrados aos
voluntários pares de cartas com retratos. Em seguida perguntou-se qual deles
era o mais atraente. Detalhe importante: o sujeito que apresentava o
experimento era um mágico profissional e trocava a carta escolhida pela
rejeitada, sem que o participante percebesse, claro. Depois o voluntário
deveria responder por que escolhera cada retrato. As pessoas usaram argumentos
elaborados sobre cor do cabelo, olhar ou personalidade presumida com base no
rosto substituído. Ficou claro que todos confabulam sempre que não sabem por
que fizeram uma opção em particular. A confabulação poderia ser uma rotina para
justificar as escolhas cotidianas? Quem sabe.
Há muitas evidências de que boa parte do que fazemos seja
resultado do processamento inconsciente. Em 1985, Benjamin Libet, da
Universidade da Califórnia em San Francisco, sugeriu que um sinal para mover um
dedo é "visualizado" no cérebro vários milésimos de segundo antes de
alguém estar ciente de que pretendia movê-lo. A idéia de livre-arbítrio pode,
portanto, ser mera ilusão. "Não temos acesso a todas as informações nas
quais baseamos nossas decisões, por isso criamos ficções para
racionalizá-las", diz Kringelbach. Segundo ele, isso deve ser bom, pois
talvez ficássemos paralisados se fôssemos cientes de como tomamos cada decisão.
Wilson concorda e fornece números: estudos indicam que nossos sentidos podem
captar mais de 11 milhões de fragmentos de informação por segundo, ao passo que
a estimativa mais otimista sugere que apenas 40 sejam percebidos
conscientemente. Talvez tudo que nossa mente faça seja imaginar histórias para
entender o mundo. "Fica em aberto a possibilidade de que, no extremo, todo
mundo confabule o tempo todo", diz Hall.
Lembranças confusas
A tendência de confabular pode causar preocupação quando o
assunto é a psicologia do testemunho. Com que facilidade histórias inventadas
se convertem em falsas memórias? A psicóloga Maria Zaragoza, da Universidade
Estadual Kent, em Ohio, mostrou um vídeo a um grupo e depois fez perguntas
individuais com a resposta sutilmente sugerida na própria pergunta. Quando os
indivíduos não conseguiam responder - porque a informação simplesmente não
estava na fita -, a pesquisadora os encorajava a inventá-la. As pessoas ficavam
constrangidas, diziam que não sabiam e estavam apenas inventando uma resposta.
Uma semana depois, porém, mais da metade confirmou suas declarações falsas como
se fossem verdadeiras.
Outro estudo revelou que crianças se comportam da mesma
maneira. Quando perguntaram a elas se o homem da manutenção, que elas viram
numa sala de espera, havia quebrado algo que na verdade nem havia tocado, todas
disseram que nada viram ou que o homem não tinha culpa de nada. Então se pediu
que elas inventassem uma história na qual ele havia quebrado coisa alguma. Na
semana seguinte, muitas crianças acreditavam em suas próprias mentiras. Assim
como nos adultos, o efeito foi mais evidente quando o pesquisador forneceu um
feedback positivo, dizendo à pessoa que a resposta inventada era a correta.
Para Zaragoza, esses resultados alertam para a forma como os
testemunhos judiciais são feitos e colocam em xeque sua credibilidade. Pelo
mesmo motivo o uso da hipnose como técnica forense foi muito criticado nos anos
80. Nessa época a psicóloga Jane Dywan, da Universidade de Brock, em Ontário,
conduziu um estudo no qual mostrou fotos a cada participante e depois testou
sua capacidade de recordar nos dias seguintes. Uma semana depois, hipnotizou os
mesmo sujeitos e perguntou o que conseguiam lembrar. Todos tiveram mais
recordações do que antes, mas quase todas eram falsas. Segundo Dywan, a hipnose
aumenta o foco de atenção e a facilidade com que as informações vem à tona, e
isso pode nos dar maior familiaridade em relação às memórias falsas, que
normalmente só teríamos com as verdadeiras. "Combine essa confiança a uma
maior capacidade de lembrar e teremos uma situação perigosa", diz a
psicóloga.
Representação do ...
As letras X, P, e Z fora dos quadrados indicam eventos, e as
de dentro representam traços de memória. Segundo o modelo proposto pelo
pesquisador A. Schnider, o tamanho de cada uma equivale a sua relevância. Em
pessoas saudáveis, novas informações adquirem alta relevância na representação
cortical (X) e geram associações mentais. Algumas perdem conexão com a
realidade corrente e tornam-se fantasias. As informações subseqüentes (P, Z)
tornam-se então altamente relevantes e suscitam novas associações. Já as
prévias, sem relação com a realidade corrente, são suprimidas ou desativadas.
Na amnésia clássica, um novo evento também provoca
associações, porém o dado assimilado não é retido ou consolidado. O
"agora" é representado no pensamento, mas as informações são logo
perdidas.
Na confabulação espontânea, as informações parecem provocar
associações mentais, mas quando as novas (P, Z) são processadas, aquelas
associações prévias não são desativadas. Qualquer traço de memória ativado,
pertinente ou não, pode guiar o pensamento e o comportamento.
Fonte: Spontaneous confabulations, disorientation and the
processing of "now". A. Schnider, em Neuropsychologia, vol. 38, págs.
175-185, 2000.
Para conhecer mais
O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. O. Sacks.
Companhia das Letras, 1997.
Brain fiction. William Hirstein. MIT Press, 2005.
One cause for all confabulations? A. Schnider, em Science,
vol. 27, pág. 1262, 2005.
Disponível em
http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/ficcees_da_mente.html. Acesso em
03 ago 2013.