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quarta-feira, 6 de junho de 2012

A fonoaudióloga das travestis

Fernanda Aranda
26/11/2011

Denise encara o espelho, passa as mãos nas bochechas e reflete em voz alta. “Preciso começar a passar mais blush”. Suas pacientes, sempre que chegam ao consultório, estão com maquiagem impecável e têm mostrado a esta fonoaudióloga uma beleza que ela não cansa de admirar (e até copiar alguns truques). “Elas são tão sofridas, já foram tão machucadas pela vida e, ainda assim, estão sempre belas, produzidas.”

Se as pacientes indicam estratégias para disfarçar imperfeições e realçar os pontos fortes do rosto, a especialista as ensina como ter uma voz feminina que combina com todos aqueles traços de mulher.

Denise Mallet, 60 anos, é fonoaudióloga das travestis e transexuais de São Paulo. E, com ajuda dos versos de Manuel Bandeira, recorre à poesia para ajudar a modular o timbre de um grupo da população excluída.

O som, lembra ela, é revelador. E as últimas notícias alardeiam que caso os intolerantes percebam que a voz que sai de suas pacientes é típica de alguém que nasceu homem - mas se sente mais confortável em vestidos e salto alto - o resultado pode ser um espancamento ou até a morte. Um relatório feito pelo Grupo Gay da Bahia – que monitora os crimes de intolerância contra homossexuais no Brasil – evidencia que as travestis são maioria entre as vítimas fatais deste tipo de agressão.

“Sei também que voz é mais do que disfarce. É mecanismo de inserção social. Por isso tanto empenho. Meu e das pacientes”, acrescenta Denise que trabalha em um ambulatório público da capital paulista, o primeiro do Brasil especializado em travestis e transexuais. Nele é oferecido tratamento global para estas pacientes, inclusive na área da saúde vocal maltratada pelo uso de hormônios indiscriminados e também pelos “recursos” para tentar “adocicar” a voz.

“Percebo em todas as pacientes que elas usam alguns truques, como anasalar as palavras e forçar o timbre, carregando em consoantes. Tudo isso prejudica as cordas vocais. Muitas chegam até mim com sequelas importantes, como calos e sobrecarga”, completa Denise que faz o atendimento duas vezes por semana no Centro de Treinamento e Referência em DST e Aids, local onde o Ambulatório das Travestis foi instalado.

Simultaneamente às sessões de fonoaudiologia, as pacientes também recebem os cuidados clínicos por conta das intoxicações severas provocadas pelo uso de silicone industrial. Também chegam vitimadas por automutilações em decorrência da falta de atendimento médico. Algumas são portadoras de doenças dos mais variados tipos (em especial as sexualmente transmissíveis) e outras carecem de apoio psicológico para depressão e outros transtornos psíquicos.

Este cenário todo faz com que a desconfiança e a falta de vínculo com os profissionais de saúde sejam constantes nas primeiras consultas. Além disso, lembra Denise, não há literatura científica para definir quais os exercícios fonoaudiológicos mais indicados para travestis. Nas poesias, ela encontrou uma vacina para estes dois entraves. Mas isso é quase o último capítulo de sua história com a voz, que começa lá na adolescência.

O início, o meio e a aids

Falante pelos cotovelos em casa, mas quase muda na escola, a menina Denise um dia foi questionada pela mãe quais eram as razões para aquele tipo de relacionamento com a voz. “Você não gosta de falar?”, perguntou. “Adoro”, pensou a menina. Como uma pulga, aquela indagação ficou atrás da orelha da garota, na época com 14 anos.

Estudante do colégio Mackenzie, Denise deparou-se novamente com a pergunta da mãe quando precisou escolher qual carreira prestar no vestibular. Resolveu então pesquisar a ciência da voz e logo aproximou-se da fonoaudiologia. Até então, o único familiar que havia escolhido a área da saúde como profissão havia sido o avô Emílio Mallet (nome de rua paulistana), um dos primeiros dentistas brasileiros, que teve o diploma assinado pelo Imperador Pedro II.

Denise ficou encantada pela carreira que desvendava os mecanismos vocais e resolveu trilhar este caminho. Ingressou na PUC de São Paulo e, logo depois, resolveu fazer especialização em saúde pública na USP. O primeiro emprego foi em um posto de saúde em Taboão da Serra, local que ficou por quase 10 anos, tratando dos problemas de fala da população. “Até que no ano 2000 apareceu o desafio profissional mais importante da minha carreira”, lembra.

A aids, doença que colecionava vítimas desde a década de 1980, manifestava-se - no início de 2000 - na cara das pessoas. As técnicas ainda eram ineficientes para amenizar um dos efeitos colaterais dos medicamentos, chamado lipodistrofia, uma distribuição irregular de gordura no corpo. O rosto dos soropositivos ficava muito fino, com os ossos saltados, um indício do HIV no organismo. Com este panorama, a fonoaudióloga Denise Mallet foi aprovada no concurso público e ingressou no CRT/Aids.

“Desenvolvi uma técnica de ginástica facial que conseguia amenizar estes sintomas. É um dos marcos da minha trajetória que tenho mais orgulho”, diz ao emendar que os exercícios trouxeram o que ela exemplifica como “satisfação plena”. 

“Depois de meses praticando os exercícios da face duas horas por dia, as crianças e jovens soropositivos, a maioria que já nasce com a doença, se olham no espelho e dizem, da forma mais espontânea possível, como eu to bonito”, diz emocionada.

As novas pacientes

Entre os inúmeros que receberam as orientações para a ginástica facial, também estavam as travestis que convivem com o diagnóstico do HIV. E, em 2009, o CRT percebendo a complexidade exigida por estas pacientes, atrelada à decisão do Ministério da Saúde de incluir a cirurgia de mudança de sexo para as transexuais como um procedimento feito no Sistema Único de Saúde (SUS), decidiu abrir um ambulatório só para elas. “Fui convidada a atender lá e pensei: outro desafio bom de topar. Abracei a causa na hora.”

Nos primeiros dias de atendimento, ela reforçou a memória auditiva e lembrou como escutava poesia. Quando eram lidos por homens, os versos eram retos, ditos de forma direta, quase que em linha reta. Já proclamados por mulheres, os poemas soavam cheios de modulações, uma sílaba mais forte do que a outra. Pronto. “Falar feminino não é falar fino. É falar com malemolência”, exemplifica. De quebra, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e outros também quebram o gelo dos primeiros contatos entre especialista e paciente. “Trazem um pouco de conforto para quem é tão maltratado, quem carrega histórias cheias de ferida”, diz Denise.

A fono sabe que, no início, as pacientes de maquiagem impecável copiam seu jeito de falar. “Depois, a personalidade de cada uma se destaca e elas encontram mais o tom próprio, em uma modulação personalizada”, diz. Daí, podem falar ao telefone sem medo de serem chamadas de “senhor”. Podem procurar emprego como secretárias, enfermeiras e professoras, se assim desejarem. Um pequeno remédio contra o preconceito tão presentes em suas vidas. “A voz combina com o físico que elas tanto sofreram para ter.”

Disponível em <http://saude.ig.com.br/minhasaude/a-fonoaudiologa-das-travestis/n1597357432633.html>. Acesso em 06 jun 2012.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A cada 16 dias, uma pessoa troca de sexo no Brasil

Fernanda Aranda,
13/09/2010 11:45


Quando ela passa, os homens esticam os olhos para tentar acompanhar por mais tempo o andar cheio de gingado, que tenta equilibrar a cintura fina, o quadril largo e os seios fartos. O corpo feminino de Carla Amaral não desperta só interesse. A mesma “gatona” também já escutou que é uma “aberração”, só um dos exemplos de violência que enfrentou. Carla não nasceu Carla, mas sempre soube que era mulher, apesar do registro indicar “sexo masculino”. O último resquício que carrega da identidade que nunca assumiu é o pênis, que garante ser usado, de forma desconfortável, só para urinar. “Hoje está até atrofiado”, diz. Ela, há 13 anos, espera que o bisturi torne mais adequada a anatomia que reconhece como errada desde a maternidade.

A cada 16 dias, o procedimento cirúrgico tão aguardado por Carla é realizado em um paciente do Sistema Único de Saúde (SUS). A chamada cirurgia de mudança de sexo foi um dos últimos atos cirúrgicos reconhecidos pelo governo brasileiro e entrou para a lista de procedimentos gratuitos só em 2008. De lá para cá, 57 cirurgias foram realizadas, sendo 10 no primeiro ano, 31 em 2009 e 16 até junho de 2010. A estatística é crescente, mas ainda irrisória perto da fila de espera formada por pessoas que, assim como Carla Amaral, sentem ter nascido  no corpo errado. 

Mulheres na alma

Eles não são travestis, homossexuais, drag queens ou transformistas. O nome é transexual, condição reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um transtorno de gênero. Não há nenhuma doença psíquica associada. Os que fazem parte deste grupo nascem com um órgão sexual que não condiz com a sua personalidade, explica o psiquiatra da PUC de São Paulo Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade, de Gênero e Orientação Sexual.

São “mulheres na alma” (dizem todas), mas que têm pênis. “Homens na cabeça” que nascem com vagina, tentam explicar assim. Desde que o mundo é mundo, eles tentam corrigir o equívoco de nascença com técnicas arriscadas, que envolvem automutilação, silicone industrial, hormônios proibidos e isolamento social. Carla Amaral foi vítima de todos estes perigos nos anos 80, 90 e 2000.

Carrinhos, bonecas e princesa

Era a segunda gravidez da mãe que já tinha um primogênito. A vontade de um “casalzinho” fez Maria Amaral desejar uma menina durante os nove meses da gestação. O nascimento, em 1973, trouxe ao mundo mais um varão aos Amaral. Mas daquela vez parecia ser diferente. A confirmação das diferenças veio com a chegada do terceiro filho, mais um menino. As semelhanças só surgiram após o nascimento da quarta filha, desta vez uma garota. “Eu era diferente dos meus dois irmãos e muito parecida com a minha irmã", conta hoje Carla. "Usava modelos de roupa unissex, cabelos na altura dos ombros e quando ouvia a pergunta 'o que você quer ser quando crescer/?', imaginava sempre uma mulher alta, com seios grandes, feminina e poderosa.”

Se quando criança, o problema maior era ter de brincar com carrinhos e bola quando a vontade era ninar bonecas e vestir-se como princesa, na adolescência a vida ficou ainda mais complicada. O nome de batismo – que Carla se nega até hoje a pronunciar – foi virando ofensa. O relacionamento com o pai já havia “subido no telhado”. Ele não aceitava ter um filho tão parecido como uma filha. A mãe já não assistia à postura feminina do seu segundo garoto com naturalidade, mas a vontade de ser mulher parecia aflorar em Carla. A entrega sexual precoce aos 13 anos para um vizinho só reforçou que a homossexualidade não era explicação suficiente para aquela condição. 

“Mais do que gostar do sexo masculino, eu queria morar num corpo parecido com a minha mente.” Sem dinheiro e sem apoio, Carla procurou o silicone industrial e passou a tomar doses de hormônio por conta própria. “Sabia dos riscos, sabia que podia morrer por causa daquilo, mas juro que tudo parecia menos ofensivo do que continuar com o corpo de homem.”

Menos mistério na medicina, mais tormentos pessoais

Nas duas últimas décadas, a medicina passou a prestar mais atenção aos pacientes com transtornos de gênero e a cirurgia de troca de sexo deixou de ser feita só na clandestinidade. Os estudos também evoluíram. “Até a metade dos anos 70 e início dos anos 80 só existiam pesquisas sobre a transexualidade que abordavam a influência psicológica e do meio externo”, afirma o psiquiatra especializado Alexandre Saadeh. “Hoje, as pesquisas mensuram os fatores químicos existentes no processo. Já existem evidências de que não só a genética, mas componentes químicos interferem no desenvolvimento do cérebro (enquanto o bebê ainda está na barriga da mãe) e culminam nesta condição. É claro que não existe causa única, mas não é só o meio que interfere.” 

Naquela época a ciência, aos poucos, começava a desvendar as razões para os cérebros incompatíveis com os corpos. As pesquisas faziam com que as técnicas, inclusive cirúrgicas, evoluíssem. Mas, no Paraná, Carla Amaral ainda era vista como um erro da natureza, uma afronta aos bons costumes. Perto dos seus 15 anos, os pais cortaram – à força – os seus cabelos. A mãe gritava o nome de batismo aos quatro cantos para agredi-la e, na escola, colegas de classe e professores reforçavam que ali não era lugar para aquela “coisa” indefinida. “Aos trancos e barrancos terminei a 8ª série, mas não consegui mais voltar para o colégio. Ao mesmo tempo, sabia que sem o apoio da minha família, tinha que contar só comigo. Sem estudo, fui procurar emprego.”

Ônibus, prostituição e cobaia

Primeiro Carla foi atendente de farmácia, depois cobradora de ônibus – local em que, além de ser hostilizada, sofria assédio sexual diário – e, enfim, auxiliar de escritório. “O preconceito sempre permeou a minha vida profissional. Era mandada embora sem justificativa, assim como não me contratavam quando, após a entrevista cheia de entusiasmos e expectativas, eu mostrava meu RG e lá aparecia o gênero masculino na informação sobre o sexo.”

No final dos anos 90, o Conselho Federal de Medicina (CFM) classificou a cirurgia de mudança de sexo como um procedimento médico reconhecido no País. Carla, nestes tempos, se candidatou para passar pela cirurgia ainda que de forma experimental e vivia um período de desemprego absoluto. “Foi aí que me tornei profissional do sexo”, lembra. A prostituição como um meio de sobrevivência fazia com que os dias terminassem com banhos longos. Carla sentia-se tão suja após se entregar por dinheiro que passava a bucha e sabão até machucar a pele. “Mas a vontade de fazer a cirurgia (de mudança de sexo) era tão forte que superava qualquer coisa.Precisava de dinheiro, precisava pagar as contas, precisava ser operada.”

A operação

A cirurgia de adequação do sexo masculino para o feminino consiste, em linhas gerais, na retirada do pênis, na construção de uma cavidade parecida com a da vagina com capacidade de substituir o trato urinário, em uma operação que supera 12 horas de duração. Já a “criação do pênis” é mais complicada, ainda tida como experimental e com riscos mais altos de complicação. Os movimentos de defesa dos transexuais do Brasil estimam que menos de cinco cirurgias do tipo foram feitas no País. Para cada caso, são em média 15 microcirurgias para o procedimento ser completo. Hoje, de forma legalizada, apenas quatro centros universitários estão autorizados a fazer estas cirurgias, sendo um em São Paulo, um em Porto Alegre, um em Goiás e o último no Rio de Janeiro. Uma norma recente do CFM – datada da semana passada – deu margem para que, a partir de agora, as clínicas particulares também realizem o procedimento.

Dedos cruzados

A expectativa é com a nova resolução do CFM mais unidades fiquem aptas a absorver a demanda de pacientes que cresce a cada dia. Ainda assim, a comemoração vem com um tom de preocupação. “É uma luta nossa ampliar o número de unidades capacitadas (para a cirurgia de mudança de sexo), mas o meu receio é que ao perder o caráter experimental, clínicas sem condição e sem gabarito passem a atrair as meninas, que são tão agredidas pela vida que topam qualquer tratamento”, diz Cristyane Oliveira, uma das pioneiras a ser submetida a cirurgia de mudança de sexo no País há nove anos.

Hoje, para a pessoa conquistar vaga em um destes 4 centros cirúrgicos, é preciso ter mais de 21 anos e um laudo médico que comprove a necessidade da cirurgia. Por isso, ao menos dois anos de acompanhamento terapêutico são exigidos. Já com este documento em mãos, a estimativa é que 200 pessoas estejam na fila de espera. Uma delas é Carla Amaral. No dia seguinte do anúncio de que a cirurgia chegara aos hospitais públicos, ela já estava na fila para o cadastro . “É uma violência diária viver em um corpo que não é seu”, conta.

A possibilidade de ser operada faz com que Carla Amaral cruze os dedos todos os dias. “É a última vitória”, diz ao contabilizar suas conquistas recentes. “Via justiça, pedi para mudar meu nome e o gênero no RG. Minha mãe foi testemunha jurídica a meu favor. Este ano, consegui a mudança oficial no documento e a relação familiar voltou a ser ótima.” O engajamento no “movimento trans” permitiu que Carla arrumasse emprego e deixasse de ser profissional do sexo. A cirurgia, considera ela, é o toque final para que a gata borralheira, finalmente, vire a tão sonhada cinderela.


Disponível em <http://delas.ig.com.br/saudedamulher/a+cada+16+dias+uma+pessoa+troca+de+sexo+no+brasil/n1237772514607.html#8>. Acesso em 14 set 2010.