Debora Diniz
06 de abril de 2014
No dia 26 de março, o estudante Leonardo Uller foi impedido
de doar sangue no Hospital 9 de Julho, sob a justificativa de ser gay. Ele
insistiu, dizendo que não apresentava comportamento de risco, e conseguiu fazer
a doação. O hospital pediu desculpas, mas descartou o sangue.
Gays são promíscuos e têm sangue ruim. Pessoas assim não
doam sangue. Leonardo Uller sentiu-se ultrajado com o diagnóstico da médica que
o atendia em um centro de doação de sangue. "Você está insinuando que eu
sou promíscuo?", desafiou o rapaz. A pergunta era um espanto irônico ao
critério nada científico adotado pela médica para rejeitar seu sangue:
"Você não vai querer sangue ruim no seu corpo. Não vai querer sangue de
gente promíscua", respondeu a médica. Leonardo é um representante do bando
promíscuo, aqueles homens de sangue ruim, descritos de uma maneira inventiva
pelas resoluções e pelos documentos da Anvisa e do Ministério da Saúde sobre a
doação de sangue: são "homens que fazem sexo com homens". Há até uma
sigla para eles, os HSHs.
Os HSHs habitam nosso planeta, são da espécie Homo sapiens,
têm família, alguns estudam, outros trabalham. Estão por todos os cantos -
alguns gostam de frequentar locais típicos para HSHs, outros nem se anunciam
como membros do bando. Muitos têm filhos e rezam aos domingos. Leonardo estuda
jornalismo e é um tipo altruísta. Costuma doar sangue. Nunca teve que descrever
seu relacionamento estável com outro homem como um caso de HSH até ter tentado
doar sangue no Hospital 9 de Julho, em São Paulo. Foi lá que aprendeu que os
HSHs não podem doar sangue. Não adianta um HSH insistir. Leonardo soube que seu
sangue foi do corpo direto para o lixo. É isso que se faz com o sangue ruim de
gente promíscua como são os HSHs! É, preciso ser honesta, não sei bem se foi exatamente
com esses modos que a médica se expressou - não há testemunhas, mas eu me
permito assim resumir a ousadia altruística de Leonardo.
Se "sangue ruim" foi um resquício medieval de quem
acredita em sangue azul, a verdade é que os HSHs são, sim, descritos como
"inaptos temporários" à doação de sangue. Para a política do sangue,
um HSH é um ser temporário, mas com prazo de validade: 12 meses desde a última
relação sexual com outro homem. Mas o que há no sexo dos HSHs para torná-los
ruins ou inaptos? A Portaria 2.712, de 2013, da Anvisa é o documento que
regulamenta a política de sangue no Brasil - 83 páginas de regras, normas,
determinações e classificações.
A primeira definição que interessa é saber o
que seria uma relação sexual para a política do sangue (a classificação vale
para todos os representantes da espécie Homo sapiens) - "sexo anal:
contato entre pênis e ânus; sexo oral: contato entre boca ou língua com vagina,
pênis ou ânus de outro/outra; sexo vaginal: contato entre pênis e vagina".
Sei que há uma tendência, na política baseada em evidências, de recuperar
fontes bibliográficas recentes de periódicos científicos de língua inglesa, o
que deve ter facilitado o esquecimento dos ensinamentos milenares do Kama Sutra
sobre os usos da anatomia humana.
Mesmo sem Vatsyayana nas referências bibliográficas,
aprendemos como os Homo sapiens se relacionam sexualmente. A dúvida é como os
HSHs se diferenciam dos indivíduos sem sigla para serem classificados como
tipos de sangue ruim. Homens e mulheres são dados de realidade para o
documento, outro sinal da pouca inventividade. Como ficam os transexuais? Mas
vamos lá: uma mulher, esse ser portador de vagina, pode fazer sexo anal, oral
ou vaginal. Ela pode ou não ter usado camisinha nessas poucas opções anatômicas.
Ela descreve seu parceiro fixo como um marido para o questionário do centro de
doação de sangue. O marido até pode ser um HSH, mas ela não sabe disso.
Ou pode ser só um desses homens sem sigla, com múltiplas
parceiras, mas ela também não sabe. Porém, como a pergunta não é sobre como ela
se protege nas relações sexuais com o marido, e sim sobre com quem ela se
relaciona sexualmente, ou melhor, com que partes da anatomia ela se relaciona
sexualmente, essa mulher é uma de nossas doadoras consideradas aptas pela
política do sangue. Ela rapidamente escapa ao questionário inquisitorial sobre
os orifícios dos homens, pois é alguém dentro da norma das práticas sexuais não
promíscuas.
Leonardo é um homem gay. Vive em um relacionamento estável
há 12 meses. A pergunta que importa para as políticas de saúde é como ele se
protege de doenças sexualmente transmissíveis antes de considerá-lo um homem
apto à doação de sangue. A pergunta sobre proteções e cuidados sexuais deve ser
feita a todas as pessoas que se apresentem como doadoras - suas posições,
frequências e preferências sexuais serão monitoradas pela metodologia da janela
imunológica que exige espera antes de transferir o sangue de um doador para um
receptor. O inquietante é saber por que uma pergunta tão simples e óbvia para a
prática científica é substituída por rodeios de linguagem. Porque a homofobia
teme anunciar-se nos seus próprios termos, por isso traveste-se de cuidados de
saúde pública. Não há risco inerente ao sangue de homens gays.
Mas há risco permanente na homofobia, que rejeita os corpos
fora da norma sexual. Leonardo foi humilhado pelo sangue que oferecia como uma
dádiva. Seu sangue salvador foi reduzido a lixo por ele ser um HSH.
Disponível em
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,promiscuos-por-decreto,1150003,0.htm.
Acesso em 07 abr 2014.