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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Orientação sexual na CID-11

CLAM
21/10/2014

A homossexualidade deixou de ser considerada transtorno mental em 1973 quando a Associação Americana de Psiquiatria decidiu retirá-la do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM). No entanto, continuou na lista de doenças mentais até 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a versão 10 da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). 

Embora isoladamente deixasse de ser definida como doença, esta orientação sexual permaneceu conectada a uma linguagem patologizante por meio de categorias que a associam a distúrbios mentais. Diante desse cenário, um grupo de trabalho, comandado pela psicóloga e epidemiologista Susan Cochran (UCLA) e o psiquiatra Jack Drescher (NY Medical College) - do qual faz parte Alain Giami (INSERM, França), pesquisador convidado no Programa da Cátedra Francesa da UERJ -, está propondo a eliminação de qualquer vínculo entre orientação sexual e doença para a edição 11 da CID.

Na CID-10, o capítulo 5 (Doenças Mentais e Comportamentais) define, através das categorias F66, três transtornos ligados à orientação sexual: “sexual maturation disorder”, que situa a orientação sexual (homo, hetero ou bissexual) como causa de ansiedade ou depressão em razão da incerteza do indivíduo quanto ao seu desejo; “ego-dystonic sexual orientation”, quando o indivíduo, embora seguro de sua orientação, deseja mudá-la; e “sexual relationship disorder”, manifesta nos casos em que a orientação é responsável pela dificuldade em formar ou manter um relacionamento com um parceiro sexual.

“A proposta do grupo de trabalho é eliminar tais categorias, considerando que orientação sexual não é uma causa de transtorno mental, do ponto de vista biomédico, mas uma questão de variabilidade social que não pode ser definida como patológica. É uma variação normal das diferenças do comportamento. Assim, a proposta é não usar a homossexualidade como transtorno ou como causa de doença”, destaca Alain Giami, integrante do grupo de trabalho designado especificamente para revisar o tema da orientação sexual – há outros três grupos que revisam o capítulo 5, no tocante a temas como identidade de gênero, parafilias e disfunções sexuais.

No artigo em que sintetizam a proposta do grupo, os autores argumentam que as causas da orientação sexual são desconhecidas, mas afirmam que provavelmente reflete um conjunto de fatores genéticos, de exposição pré-natal a hormônios, experiência de vida e contexto social. A partir disso, destacam que a variação de orientação sexual é ubíqua, em distintas sociedades.

Entretanto, o estigma social é um traço comum em diversas sociedades, afetando as pessoas que não se enquadram no modelo hetenormativo – que situa homem e mulher como seres distintos e complementares com papéis naturalmente determinados – e também aquelas que estão em situação de discriminação por raça, etnia, classe social, religião e portadores de deficiência.

Assim, vivendo em contextos de exclusão, discriminação e violência, indivíduos homossexuais estão expostos a significativo nível de estresse. “Evidências mostram que gays, lésbicas e bissexuais demonstram com frequência graus de estresse maior que os heterossexuais”, afirmam os autores no artigo. Nesse sentido, a proposta do grupo é eliminar as categorias F66 de maneira que a perspectiva biomédica não seja a fundamentação para doenças e sofrimentos relacionados à homossexualidade. A intenção é vincular os transtornos – como ansiedade e depressão (que acometem pessoas gays ou bissexuais) – ao ambiente em que vivem, geralmente hostil, designando-os como problemas psicossociais: para isso, são indicadas as categorias Z, que estabelecem protocolos de atendimento para os indivíduos que precisam de aconselhamento em matéria de sexualidade, sem a presença necessária de uma doença mental. Com essas categorias, a possibilidade de se acessar o sistema público de saúde seria mantida, na medida em que a despatologização não representaria uma desmedicalização das dificuldades, problemas e sofrimento que podem afetar os indivíduos.

Do outro lado, alguns profissionais de saúde pesquisados alegam, por sua vez, que as categorias F66 podem ser úteis para melhorar a precisão do diagnóstico, ao servirem como pistas para o trabalho médico, inclusive como sinalização de outras doenças. Por essa lógica, “sexual maturation disorder” ou “sexual relationship disorder” poderiam ser mantidos como diagnósticos alternativos para o transtorno de gênero – utilizado para enquadrar indivíduos transexuais. Também nesse sentido, profissionais de saúde afirmam que o estresse em um/uma pessoa homossexual pode ser evidência de “ego-dystonic sexual orientation”, isto é, quando o indivíduo quer mudar de orientação sexual.

Porém, de acordo com os integrantes do grupo de trabalho, isso não permite afirmar que as categorias F66 melhoram a precisão de diagnóstico e, assim, sejam clinicamente úteis. “Uma situação de estresse, por exemplo, pode ser uma resposta adaptada a um acontecimento, sem ser clinicamente relevante. Por isso, não parece haver evidência que justifique intervenções específicas para orientação sexual, distintas daquelas utilizadas para doenças como depressão e ansiedade. Isso pode levar, inclusive, a um tratamento inapropriado para o paciente. Um estresse ligado a relações sociais ou psicossociais não pode ser considerado transtorno”, pondera Alain Giami.

A associação entre orientação sexual e doença não é recente. Na CID-6 (publicada em 1948), a homossexualidade foi pela primeira vez tratada como patologia, sendo classificada como um desvio sexual ligado a um distúrbio de personalidade. Contudo, pesquisas desenvolvidas ao longo da segunda metade do século XX não corroboraram com a tese. Conforme destacam os autores do artigo do grupo de trabalho da OMS, revisões realizadas em publicações científicas importantes mostraram que a última citação de “ego-dystonic-homossexuality” foi em 1995. Nem mesmo periódicos sobre desenvolvimento psicossexual têm discutido doenças no campo. Além disso, não obstante a CID ser um marco de referência mundial para o monitoramento em saúde pública, as categorias F66 pouco contribuem para esse fim.

Apesar da falta de evidências científicas que sustentem o caráter patológico da orientação sexual, tem sido comum no Brasil e em alguns países africanos a prática da chamada “terapia de reorientação sexual” ou “terapia de conversão”. Formulada e oferecida sobretudo por profissionais da saúde ligados a grupos religiosos dogmáticos, tal terapia consiste em um conjunto de métodos destinados a eliminar a homossexualidade do indivíduo, “restaurando” o desejo por pessoas do outro sexo de modo que as relações sexuais e afetivas sejam heterossexuais. Esse tipo de prática tem sido amplamente criticado e rejeitado por profissionais de saúde, pesquisadores, autoridades e ativistas ao redor do mundo.

No Brasil, inclusive, desde 1999 uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio ou perversão" e que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade”.

A questão dos direitos humanos

Para o grupo de trabalho da OMS, terapias que buscam modificar a orientação sexual de uma pessoa estão à margem dos padrões éticos. Princípios de direitos humanos, especialmente no âmbito dos direitos sexuais, constituem ferramentas importantes para a proposta de eliminação das categorias F66, porque garantem, entre outras prerrogativas, autonomia, liberdade, integridade e escolha livre e responsável para o exercício e manifestação das práticas e desejos sexuais de forma segura. Essas ideias têm sido defendidas e promovidas por órgãos internacionais como forma de combater a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, do que são exemplos a aprovação no final de setembro de resolução pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Declaração dos Direitos Sexuais da Associação Mundial de Direitos Sexuais (WAS, sigla em inglês), que reafirma o respeito e a proteção à orientação sexual.

Não apenas uma questão científica, mas também – e talvez principalmente – política. As lutas travadas em torno da homossexualidade são antigas, envolvendo diversos tipos de linguagens e discursos. Em 1973, quando a Associação Americana de Psiquiatria (APA) retirou-a do rol de doenças definidas pelo seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) , a medida refletiu não apenas argumentos científicos, mas também uma série de mudanças ocorridas após os anos 1960 e o movimento de liberação sexual, momento em que ideias mais inclusivas ganharam densidade em meio às tensões morais que envolvem questões de sexualidade. Por isso, os grupos de trabalho que trabalham na revisão da CID-11 sabem que suas recomendações podem não ser necessariamente aprovadas. As propostas são primeiramente analisadas pelo Comitê Central do capítulo sobre transtornos mentais e comportamentais, seguindo para o Comitê Geral da CID e, por fim, sendo votadas na Assembleia Geral da OMS, com previsão de publicação para 2017.

Um argumento favorável à manutenção das categorias F66 é a proteção que elas oferecem a indivíduos de países que punem, com legislação criminal, relações entre pessoas do mesmo sexo, inclusive com pena de morte. Por essa lógica, a doença os isentaria da execução. No entanto, o estudo do grupo não conseguiu identificar o uso desse tipo de defesa. A realidade de cada país é um desafio difícil de conciliar na proposta de revisão da CID, cuja apreciação é feita em um fórum global, com visões de mundo muito amplas e distintas.

Apesar das dificuldades e dos aspectos tanto científicos quanto políticos, Alain Giami acredita que o grupo de revisão apresenta uma postura relevante. “Nossa recomendação não é oficial, é apenas um documento de trabalho. Mas penso que é um progresso, tendo em vista a possibilidade de se eliminar oficialmente uma linguagem estigmatizante”, conclui Alain Giami, que atua como investigador convidado da Cátedra Francesa da UERJ, no Instituto de Medicina Social (IMS), até o mês de dezembro.


Disponível em http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=11863. Acesso em 22 out 2014.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Ele tentou provar que o gênero é uma construção social. E fracassou

Dale O’Leary
03 Jun 2013

Em 21 de dezembro de 2013, o Papa Bento XVI falou sobre os perigos de novas teorias de gênero. Enquanto a mídia focava em sua condenação da redefinição do casamento, a crítica de Bento XVI era mais abrangente, com foco na teoria de gênero em geral. Contrastando abordagens filosóficas cristãs com a teoria de gênero, ele assinalou:

"De acordo com tal filosofia, o sexo já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente."

Além disso, afirmou que quem promove teorias de gênero "nega a sua própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um fato pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria". Em uma época que se orgulha da preocupação com a natureza, a natureza humana está sob ataque.
             
A redefinição de gênero começou na década de 50. No passado, a palavra "sexo", em inglês, se referia à totalidade do que significa ser um homem ou uma mulher, enquanto "gênero" era um termo gramatical. Algumas palavras têm gênero – masculino, feminino ou neutro. O inglês é uma língua extremamente "sem-gênero". Apenas os pronomes da terceira pessoa do singular e alguns substantivos têm gênero específico. Comparando isso com o italiano ou o hebraico, vemos que todos os substantivos, adjetivos, artigos e verbos na segunda e terceira pessoa do singular e plural são masculinos ou femininos.

Hoje, nos Estados Unidos, o governo e as formas comerciais, que costumavam perguntar o nosso sexo, agora perguntam qual é o nosso gênero. Ao ver isso, muitas pessoas assumiram que "gênero" é apenas um sinônimo de "sexo", e que "gênero" era uma maneira mais educada de dizer, já que "sexo" tem um significado secundário, ou seja, é uma forma abreviada de se referir à relação sexual. As pessoas não viram um problema nisso.

Mas aqueles que defendem o uso da palavra "gênero" não o fazem devido a um senso escrupuloso de decoro; para eles, "gênero" e "sexo" não são sinônimos. "Sexo" refere-se apenas à biologia, e "gênero" é o sexo com o qual uma pessoa se identifica, que pode ser o mesmo, ou diferente do seu sexo biológico.

A redefinição do "gênero" foi concebida por John Money, que estava na equipe da prestigiada Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, Maryland. Money não era um cientista objetivo, mas um "agente provocador da revolução sexual" que sentia prazer em chocar as pessoas pelo uso da vulgaridade e de fotografias obscenas. Ofereceu apoio ao movimento para normalizar as relações sexuais entre homens adultos e meninos. Ele desprezava a religião. E promoveu a ideia de que a identidade sexual pode ser dividida em suas partes constituintes – DNA, hormônios, órgãos sexuais internos e externos, características sexuais secundárias e identidade de gênero – o sexo com o qual a pessoa se identifica.

Não há nada de errado com perceber as partes que compõem o todo da nossa identidade sexual, mas Money estava interessado nas pessoas para as quais as partes pareciam estar em conflito: os que eram biologicamente de um sexo, mas se identificavam com o outro. Embora seja verdade que algumas pessoas queiram ser de outro sexo, e possam até acreditar que deveriam ter nascido com outro sexo, essas crenças não podem ser concebidas como sendo iguais à realidade de seu sexo biológico, mas reconhecidas como sintomas de um subjacente distúrbio psicológico.

Money centrou sua atenção em bebês nascidos com distúrbios do desenvolvimento sexual, por vezes referido como hermafroditas ou intersexuais. Em casos raros, o bebê nasce com uma condição congênita ou hereditária que faz com que seja difícil identificar seu verdadeiro sexo, ou com órgãos sexuais deformados. Os interessados em uma discussão sobre este problema podem ler um documento do Comitê Nacional de Bioética italiano, intitulado "Minor’s Sexual Differentation Disorders: Bioethical Aspects", que descreve os diversos distúrbios e opções de tratamento.

Money afirma que a identidade de gênero de uma criança foi formada não pela biologia, mas pela socialização, e que os geneticamente meninos com pênis deformados poderiam ser alterados cirurgicamente para se parecer com meninas e ser educados como meninas. Ele insistiu em que um menino aceitaria que ele era uma menina e, como adulto, seria capaz de se envolver em relações sexuais como uma mulher (uma grande prioridade para Money). Este protocolo foi amplamente aceito.

Em 1967, surgiu o caso perfeito para provar a teoria de Money de que a identidade de gênero é uma criação social. O pênis de um menino foi acidentalmente destruído durante uma circuncisão mal feita. Seus pais viram Money ser entrevistado na televisão, falando sobre crianças com distúrbios do desenvolvimento sexual, e pediram sua ajuda. Ele propôs que o menino fosse castrado e educado como uma menina. Money garantiu aos pais que o menino aceitaria plenamente esta transição, se os pais fossem consistentes em sua educação como menina. Como o menino tinha um irmão gêmeo idêntico, que serviria como um controle, o caso seria uma prova conclusiva da teoria de Money de que a identidade de gênero é construída socialmente. Money falou sobre isso e publicou relatórios do caso, garantindo a todos que o experimento foi um sucesso total.

Conforme os anos foram passando, aqueles que estavam interessados no caso se perguntaram como as coisas tinham evoluído. Será que este menino criado como menina amadureceu normalmente? Money foi evasivo e disse que, embora a criança tinha sido totalmente ajustada para ser uma menina, ele tinha perdido o contato com a família. O Dr. Milton Diamond, que estudou o efeito dos hormônios pré-natais sobre o cérebro em animais, não estava satisfeito. Depois de alguns anos, ele rastreou a família e descobriu que Money tinha distorcido totalmente os resultados de seu experimento.

O menino nunca aceitou que era uma menina. Ele só não sabia o que estava errado com ele. Ele e seu irmão foram forçados a fazer visitas anuais ao Dr. Money, durante as quais eram submetidos ao que seria considerado como abuso psicológico. Money insistiu em que o menino se submetesse a uma cirurgia para criar uma vagina, mas o menino se recusou e ameaçou suicídio se fosse levado de volta para ver Money. Finalmente, um terapeuta local, trabalhando com o garoto que hoje tem 14 anos de idade, incentivou a família para que contasse a verdade ao rapaz. No minuto em que soube que nasceu menino, ele quis viver de acordo com sua identidade real. Money não tinha perdido o contato com a família: ele sabia que sua experiência tinha falhado, mas não quis reconhecer isso.

Em 2006, um livro escrito por John Colapinto ("As Nature Made Him") expôs Money como uma fraude. Além disso, muitas das crianças que nasceram com distúrbios do desenvolvimento sexual e que foram cirurgicamente alteradas de acordo com protocolos de Money agora são adultos e protestam contra o que foi feito com elas. Muitos fizeram uma cirurgia de reversão para o seu sexo de nascimento. E exigiram que essa cirurgia seja proibida, para que as crianças com esses problemas possam descobrir sua própria identidade sexual.

Money também incentivou Johns Hopkins a oferecer cirurgias chamadas de "mudança de sexo", nas quais os homens que acreditavam que tinham o cérebro de uma mulher poderiam ser alterados cirurgicamente para se parecer com as mulheres. Quando o Dr. Paul McHugh assumiu o departamento de psiquiatria na Universidade Johns Hopkins, encomendou um estudo sobre o resultado destas supostas "mudança de sexo". Constatando que este tratamento radical não abordou a psicopatologia subjacente dos clientes, ele interrompeu a prática. E a classificou como "colaborar com a loucura". Infelizmente, outros hospitais continuaram realizando esta cirurgia mutiladora.


Disponível em http://www.aleteia.org/pt/saude/q&a/ele-tentou-provar-que-o-genero-e-uma-construcao-social-e-fracassou-1776002. Acesso em 10 jun 2013.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Vida sem sexo

Adriana Giachini 
14/11/2012
          
O sexo faz parte da vida humana. Já na bíblia (que acredita-se ter sido escrita entre 1445 e 450 a.C) consta que, um dia, homem e mulher tornarão-se uma só carne. Outrora um tabu, o assunto hoje é tratado a exaustão e, às vezes, chega a ser banalizado.

Está na televisão, no cinema, na literatura e, claro, na vida real. Fala-se em iniciação sexual, em orgasmo, traição, doenças sexualmente transmissíveis, remédios estimuladores, taras e kamasutra ... o silêncio só impera quando o assunto é quem não gosta de sexo e nem pretende praticar.

Para muitos, não gostar é impossível. Para o Manual Estatístico e Diagnóstico de Distúrbios Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria, a ausência do desejo sexual é distúrbio (existem vários). No entanto, os assexuais estão aí para comprovar que a vida sem sexo é uma realidade (e não uma doença) na qual o “problema” não está na cama – nem naquilo que não se faz entre quatro paredes. O maior obstáculo é o preconceito.

“Viver sem sexo numa sociedade que considera que o desejo sexual é universal e que a atividade sexual é indispensável para a saúde e felicidade não é nada fácil”, diz a pedagoga e socióloga Elisabete Regina Baptista de Oliveira.

Mestre em sociologia da educação, e doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), ela estuda há um ano a assexualidade para sua tese de doutorado. “Busco conhecer as trajetórias de pessoas assexuais no processo de auto-identificação”, explica.

A pesquisa de Elisabete está sendo feita na Faculdade de Educação da USP e a tese será defendida em 2014. “Meu interesse surgiu a partir da constatação de que, apesar de haver comunidades de assexuais no Brasil, não havia pesquisas acadêmicas sobre o tema no País. 

Nos Estados Unidos, e em outros países, os assexuais estão se organizando em movimentos para ter visibilidade nos meios de comunicação. No Brasil, as interações entre os assexuais restringem-se às poucas comunidades existentes no Orkut e na Comunidade Assexual A2 (www.assexualidade.com.br) ”, justifica.

Uma pesquisa recente feita no Reino Unido, com mais de 18 mil pessoas, e analisada por cientistas da Universidade de Brock, no Canadá, estima que 1% da população seja assexual. Um número que, em termos mundiais, representa 70 milhões de pessoas. Gente que apesar de perfeitamente capaz defende o direito de não transar. E é feliz assim.

Quarto sexo

A informação primordial sob o tema é entender a luta dos assexuais. São homens e mulheres, de idades variadas, que levantam a bandeira da abstinência – sem que ela seja uma imposição como ocorre, por exemplo, com os celibatários. Para eles, a assexualidade é uma quarta orientação sexual – assim como ser heterossexual, homossexual ou bissexual.

“Eu vejo que a assexualidade é uma interpretação da falta de desejo, antes sempre considerada um distúrbio. Na verdade, ainda não existe uma definição totalmente acabada da assexualidade. Mas em linhas gerais, ser assexual significa não ter nenhum – ou pouquíssimo – interesse pela atividade sexual. E esse comportamento, não traz infelicidade, angústia ou desconforto”, explica Elisabete.

Pelo direito de não transar, os assexuais começam a ser organizar, especialmente em comunidades na internet.

O site mais conhecido é o da Aven (Asezual Visibility and Education Network) – que tem realizado passeatas mundo a fora sob o slogan “It´s o.k. To be A” (algo como “tudo bem ser assexual”). 

No Brasil, o grupo de assexuados ganha força em páginas como www.assexualidade.com.br (primeiro do País a discutir o tema) e o www.redeassexual.com (lançado no começo de setembro).

São espaços para discussão e também desabafos. Ali, muitos assexuais lamentam não serem compreendidos sequer pelos familiares. E compartilham histórias de vida tendo como elo comum o desejo de serem aceitos como são. A maioria, entretanto, confessa manter a opção sexual em segredo, com medo de represálias, seja no ambiente familiar, entre amigos ou mesmo no trabalho. “Os assexuais não se identificam com a forma com que a sexualidade está colocada na sociedade. E esse processo pode até levar a pessoa ao isolamento”, diz Elisabete.

A pesquisadora tem a aprovação de quem vive a assexualidade diariamente. “A falta de informação é que gera o preconceito. Acredito que se as escolas falassem sobre a diversidade sexual, ajudaria bastante. Mas, e infelizmente, no momento nem psicólogos e médicos tem conhecimento da assexualidade”, acredita a web designer Shanna Capell, criadora do site www.redeassexual.com, que está no ar desde 1º de setembro.

Segundo ela, que é assexual, a página na internet tem como objetivo “informar, debater e dar mais visibilidade ao tema”. Aos 28 anos, Shanna confidencia que, apesar do desejo de aceitação e da esperança em encontrar um parceiro, mantém sua assexualidade escondida da família e da maioria dos amigos. “Acho que cada um deve avaliar bem se vai contar e quando.

Nos EUA há um projeto (asexualawarenessweek.com) para, entre outras coisas, incentivar os assexuais a falarem, aumentando a visibilidade do tema. Eu vejo que o ser humano é complexo e diverso. E é importante dizer que o assexual sofre pela discriminação e não pela falta de sexo.”

Aliás, é bom explicar que a ausência do desejo sexual não significa que os assexuais não queiram relacionamentos amorosos – nem que não tenham prazer, por exemplo, como a masturbação.

Nas comunidades dedicadas ao tema, a explicação é que eles podem ser divididos entre os gostariam de manter relacionamentos, desde que não envolvam atividade sexual (são os chamados de românticos); os que aceitam transar para satisfazer seus parceiros e os que não têm interesse algum no tema. Para alguns, especialmente deste último grupo, até mesmo o beijo causa repulsa.

Nadando contra a maré

Não seria exagero afirmar que, para a sociedade moderna, o sexo é quase uma exigência – e especialmente no mundo ocidental. Como exemplo dessa “sexomania”, pode-se destacar que o maior best seller da literatura atual – a trilogia “50 tons de Cinza” – nada mais é do que um romance erotizado. Os livros, da escritora britânica Erica Leonard James, já venderam mais de 40 milhões de cópia no mundo e virarão filme.

Até a indústria farmacêutica – que recentemente lançou a versão do viagra para mulheres – se dedica ao tema com especial “carinho”, de olho em seu potencial lucrativo. Não à toa. Para muita gente, o sexo é tão importante como comer e dormir. E dá-lhe argumentos para comprovar a afirmação que faz bem para o corpo. Dirão: faz bem saúde e para ego.

Sem contar que é fundamental para a perpetuação da espécie. “O desejo sexual foi construído historicamente (sobretudo pelas ciências médicas) como universal, ou seja, todas as pessoas, independentemente da época, da cultura, do meio social devem sentir desejo sexual, de preferência desejo heterossexual. 

Mas já sabemos que a sexualidade não está somente no corpo biológico. Ela se constrói nas relações sociais, que são permeadas por determinadas culturas. Hoje os assexuais contestam este postulado histórico. Essas pessoas têm nos mostrado, nos últimos 10 anos, que existe muita coisa que ainda não sabemos sobre a sexualidade humana.”

Para a pesquisadora, os assexuais são a prova viva de que a necessidade sexual não pode ser equiparada a outras necessidades biológicas, como alimento ou água. “Isso é o que a mídia propaga; isso é o que as ciências biológicas propagam, isso é o que a indústria do consumo propaga. A sexualidade não está somente no corpo biológico, como eu já disse. Se a pessoa acredita que o sexo é fundamental, ela vai construir sua vida em torno dessa crença, e pode se sentir infeliz quando estiver impossibilitada de fazer sexo, ou de ter um relacionamento amoroso. Se a pessoa acredita que para ela o sexo não é importante – ou totalmente dispensável – ela vai viver sua vida bem e ajustada em torno dessa crença, ou sentir-se infeliz se for obrigada a fazer sexo.”

Os desafios dos assexuais

_ Viver numa sociedade que considera que o desejo sexual é universal e que a atividade sexual é indispensável para a saúde e felicidade.
_ Viver numa sociedade que apregoe que não fazer sexo – ou não desejar o sexo – não é normal
_ Viver numa sociedade que ensina que não é possível ter relacionamentos amorosos prazerosos que não envolvam a atividade sexual.
_ Viver numa sociedade que apregoe que o sexo é necessariamente consequência do amor.
_ Viver numa sociedade que considera que não é possível ser feliz sozinho.
_ Viver numa sociedade que priorize a atividade sexual, quando existem tantos outros aspectos importantes na vida.
_ Viver numa sociedade que não acredite na diversidade humana
_ Viver numa sociedade que não respeita o direito individual de tomar decisões em relação ao uso de seu corpo.

Assexual ou assexuado

Nas comunidades virtuais brasileiras, as duas denominações são encontradas, porém, defende-se que o termo mais correto é assexual uma vez a perspectiva trabalhada é a de orientação sexual. A palavra assexual segue a mesma formação de outras palavras que nomeiam outras orientações sexuais, como heterossexual, homossexual e bissexual.

Pesquisa

A socióloga Elisabete Regina Baptista de Oliveira mantém um blog na internet sobre a assexualidade e no qual divulga pesquisas recentes que estejam relacionadas ao tema. Entre os tópicos, está um artigo produzido na área de biologia e escrito pelos cientistas Wendy Portillo e Raul Paredes, do Instituto de Neurobiologia da Universidade Autônoma do México.

Nele, os autores relatam que em diversas espécies de mamíferos, a ciência observa a existência de machos aparentemente normais, mas que não seguem o padrão de conduta sexual da maioria – mesmo quando estimulados por fêmeas sexualmente receptivas. Esses animais, conhecidos como não copuladores (NC), de acordo com os autores do artigo, poderiam ser equivalentes aos assexuais humanos – ainda que o ser humano seja portador de uma estrutura psicológica diferente.

As espécies de animais nos quais foram identificados machos não copuladores são as ovelhas e algumas espécies de roedores, como ratos, cobaias, camundongos e hamsters. Os machos não copuladores correspondem entre 1% e 5% - porcentagem próxima à estimativa de alguns cientistas para humanos que não têm interesse pela atividade sexual.

Segundo os estudiosos, estas deficiências podem ser causadas por alterações no sistema nervoso central. O conjunto de pesquisas estudadas sugere que a falta de interesse por sexo no mundo animal tem um componente biológico importante que pode modificar o sistema nervoso central e, consequentemente, sua função. Ainda segundo os pesquisadores não existem estudos sobre interesse sexual em fêmeas mamíferas.

Disponível em http://metropole.rac.com.br/_conteudo/2012/11/capa/10568-vida-sem-sexo.html. Acesso em 29 nov 2012.