Rafael Gregorio; Tory Oliveira
Publicado na edição 82, de dezembro de 2013
Desde a infância, David Cristian, 23 anos, sentia-se
diferente das demais meninas. O jovem, natural de Florianópolis (Santa
Catarina), começou a se vestir como um garoto aos 13 anos e há um ano e meio
iniciou tratamento psicológico e hormonal para adequar seu corpo ao gênero
masculino, com o qual se identifica. Cristian é um transgênero, como são
chamados homens e mulheres que sentem inadequação extrema com o sexo biológico
de nascimento. Identificado como transtorno de identidade de gênero pelos
médicos, o fenômeno, frequente e erroneamente confundido com a
homossexualidade, pode ser um atalho para depressão, discriminação e
isolamento, em especial no caso de crianças e adolescentes em idade escolar.
Para Cristian, que hoje vive em Curitiba, a maior parte das
lembranças da escola, quando ainda vivia como menina, são de ameaças de colegas
e funcionários. “Uma inspetora disse para eu ir embora, porque ninguém gostava
de mim lá”, conta ele. Além de lhe acarretar uma depressão, a hostilidade o fez
interromper os estudos duas vezes. Formado, Cristian hoje espera a mudança do
nome na carteira de identidade para começar uma faculdade.
Violência e preconceito explicam a incorreta associação
entre identidade de gênero e vontade pessoal. São também as razões da alta evasão
escolar identificada por profissionais da educação. “Muitos não conseguem
concluir nem o Ensino Fundamental, e 99% não chegam à universidade”, explica a
professora transgênero Marina Reidel, autora de dissertação de mestrado na
UFRGS sobre a trajetória de professores travestis e transexuais (que buscam
correção cirúrgica para o que veem como distorção anatômica). Sem acesso ao
estudo e, consequentemente, ao mercado de trabalho, a maioria cai na
prostituição.
Além das agressões físicas e verbais, discriminações
cotidianas, como a negativa de uso do nome social (denominação pela qual
preferem ser chamados no dia a dia) e a proibição de frequentar o banheiro
reservado ao gênero de identificação, são obstáculos adicionais. Para Marina,
em vez de disseminar valores de tolerância, a escola é, no mais das vezes, um
ambiente aterrorizante para os transgêneros.
Leonardo Tenório, 17 anos, nasceu Letícia. Na adolescência,
contudo, em nome de “ser quem eu era”, desistiu de agradar à mãe e abandonou as
roupas e a aparência femininas. “Todo mundo repara em mim. Como sou tímido,
tento me esconder ao máximo”, diz Tenório, hoje aluno do 3º ano do Ensino Médio
em uma escola pública de Ituitaba, Minas Gerais. Ele também diz ser recriminado
pela diretora da escola, que, ao pedido para ser chamado pelo nome social,
respondeu-lhe que não havia lei que a obrigasse e que ele “queria aparecer”. O
aluno mostra-se resignado: “Tento pensar que a escola já está acabando”.
Reminiscências amargas de apelidos e xingamentos também
predominam para Brendda Montilla, 17 anos, que diz sentir-se diferente dos
demais meninos desde as primeiras séries, em Almirante Tamandaré, no Paraná.
“Os casos de tolerância que encontrei foram por boa vontade dos professores,
porque nem eles nem os alunos foram preparados (para o tema)”, opina.
A falta de instruções é tida como a fonte principal da
disseminação do preconceito. “O problema começa em colocar fundamentalismo
religioso antes do saber pedagógico. (As pessoas) precisam compreender que a
escola não é seu quintal ou sua igreja”, opina Laysa Carolina Machado, 42 anos,
diretora do Colégio Estadual Chico Mendes, em São José dos Pinhais, na Grande
Curitiba – a primeira transexual a ser eleita para cargo semelhante no Brasil (
depoimento nesta página). “Há um déficit muito grande na formação do professor
e também um medo de abordar certas questões”, opina a professora Marina.
Episódios como as hostilidades contra transgêneros no último
Enem corroboram o cenário de despreparo. “Quando cheguei, a fiscal ficou
questionando em voz alta na entrada da sala por que meu documento trazia nome e
foto de homem”, relata Ana Luiza Cunha da Silva, 17 anos, aluna do 3º ano do
Ensino Médio em uma escola particular em Fortaleza. O RG dela ainda foi
conferido outras três vezes por funcionários diferentes até que um superior
solucionasse o caso, registrando-o em um formulário de perda de documento, ela
diz. Antes, porém, outra fiscal “ficou colocando a foto ao lado do meu rosto e
dizendo ironicamente que não podia ser a mesma pessoa”. A estudante foi
liberada após 30 minutos e só não perdeu tempo de prova porque chegou uma hora
antes do início do exame.
O relato é semelhante ao da paraense Beatriz Marques
Trindade Campos, 19 anos, que hoje cursa o 2º período de Direito na Unifemm, em
Sete Lagoas (MG). “Entreguei meus documentos e a fiscal não me reconheceu,
ficou perguntando se era eu mesma e gritou meu nome de batismo para me expor.
Ela realmente não estava preparada”, lamenta.
Apesar dos constrangimentos, Ana Luiza e Beatriz são pontos
fora da curva no que diz respeito ao apoio familiar. “Foi um choque, mas
procuramos dar todo o apoio em sua vida”, afirma Fábio Luiz Ferreira da Silva,
39 anos, médico veterinário e pai de Ana Luiza (depoimento à pág. 26). A
colaboração mais recente foi o pedido de mudança de nome na Justiça,
protocolado por ele. O segredo da compreensão, afirma, é simples: “A gente se
gosta muito lá em -casa e eu aprecio o debate de ideias. Focamos em tratar a
pessoa como você gostaria de ser tratado. Não tem nenhum ensinamento a não ser
o amor e o diálogo”. A maioria dos transgêneros, porém, não tem a mesma sorte:
“Uma amiga transexual de 18 anos foi há pouco expulsa de casa e teve de
trabalhar na prostituição”, relata Ana Luiza.
Inexiste consenso sobre o número de estudantes que
questionem o próprio gênero no Brasil, muito menos sobre as taxas de evasão
escolar desse público. Também faltam dados sobre o número de transexuais e
travestis adultos, em parte porque não há no formulário do Censo do ¬IBGE
questão específica sobre a identidade de gênero do declarante. “Estima-se que
haja atualmente 2 milhões de trans no Brasil”, afirma a professora Marina.
Professor da PUC-SP e coordenador do Ambulatório de
Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas
de São Paulo, o psiquiatra Alexandre Saadeh, 52 anos, dá outra estatística
sobre o número de pessoas que questionam o sexo anatômico na juventude. “Nos
países ocidentais, a média é de um a cada 100 mil homens e de uma para cada 400
mil mulheres.” Composto de, aproximadamente, 15 profissionais de saúde, o
núcleo que ele comanda provê, desde 2010, tratamento psicoterápico para
adolescentes – são hoje cerca de 30 pacientes, seis dos quais crianças – e,
neste ano, começou a praticar terapias hormonais.
Também falta consenso sobre a natureza do fenômeno, no que
especialistas e transgêneros alternam compreensões ligadas à psiquiatria, à
psicologia ou mesmo a nenhuma delas, em um movimento de “despatologização” da
transexualidade.
“Os transexuais têm pouco acesso aos serviços de saúde e,
por isso, vivem uma vulnerabilidade e uma situação de exclusão social”, afirma
Judit Lia Busanello, 48 anos, psicóloga e diretora-técnica do Ambulatório de
Saúde Integral para Travestis e Transexuais. Vinculado ao Centro de Referência
e Treinamento em DST/Aids da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, o núcleo
oferece fonoaudióloga, endocrinologista, clínico geral, urologista,
proctologista, psicólogo, psiquiatra e assistente social para um total de 1.860
pacientes cadastrados desde junho de 2009. Desses, 70% são mulheres transexuais
(nascidas no sexo anatômico masculino), cujo tempo de acompanhamento chega, em
média, a dois anos e meio. Sem contar a fila de três a seis meses: “hoje
trabalhamos acima de nossa capacidade”, diz Judit.
“Até os anos 1980, as teorias em voga eram psicológicas.
Hoje se correlaciona o transtorno de gênero ao desenvolvimento cerebral
intrauterino”, defende Saadeh. Com base nesse entendimento de “um processo
essencialmente biológico”, ele afasta a possibilidade de que crianças sejam
transexuais por influência de outras pessoas ou questões sociais. O médico
também rechaça a eventualidade de que transgêneros influenciem colegas. “Não
acredito de maneira alguma nisso. Se assim fosse, todo mundo se contaminaria
com a heterossexualidade, a orientação predominante”, afirma.
No Brasil, a cirurgia para mudança de sexo é feita pelo
Sistema Único de Saúde (SUS) e após os 21 anos, conforme parecer de 2010 do
Conselho Federal de Medicina (CFM). O tratamento hormonal é possível a partir
dos 18, mas, em 2013, outro parecer do CFM recomendou o bloqueio da puberdade
do gênero de nascimento (não desejado). A favor do retardo, os especialistas
apontam fatores como a prevenção a sofrimentos psicológicos comuns nesse
público, como depressão, anorexia e tendência a suicídio, além da oferta de
mais tempo para aprimorar o diagnóstico e da prevenção a cirurgias mais
invasivas no futuro. O parecer não tem força de lei e já enfrenta resistências.
Ainda assim, pode direcionar protocolos sobre o tratamento e ampliar a oferta
de acompanhamento médico.
O tempo é mesmo um obstáculo para quem questiona o gênero. A
maioria sente desconforto desde a primeira infância e assiste impotente ao
desenvolvimento, na anatomia, de sinais contraditórios com relação ao próprio
sentimento. “A identidade de gênero se manifesta por volta dos 3 ou 4 anos.
Deve-se ficar atento e buscar orientação de centros especializados”, diz o
psiquiatra Saadeh. Ele condiciona o diagnóstico à convicção “responsável,
duradoura e consistente” e defende que a criança use o nome e as roupas que
desejar. Também é importante, diz, que os pais orientem professores e assistam
os filhos em sua transformação na escola. “Todas as crianças que acompanhamos
estão bem adaptadas e vivem 24 horas assim. Se antes eram meninos deprimidos,
irritados, agressivos, agora são meninas doces, que interagem com os outros. O
ganho é o bem- estar psicológico de não mais sentir que se está fazendo algo
errado”, ele diz.
Leonardo Tenório, da Associação Brasileira de Homens Trans,
defende a criação de políticas específicas nas Secretarias de Educação. Para
ele, a descentralização da educação pública brasileira atrapalha. “Cada escola
tem seu próprio Plano Político Pedagógico. Dependemos da sensibilidade de cada
gestor”, explica.
A criação de leis para articular a inclusão escolar dos
transgêneros e proteger seus direitos nas escolas é um dos sonhos do estudante
Leonardo Carvalho. “Este é o meu último ano na escola, mas sei que os muitos
trans que virão depois vão sofrer também”, conta. “Penso que seria mais justo o
Enem disponibilizar a opção para transgêneros já na ficha de inscrição”,
defende Silva, o pai de Ana Luiza. Na visão dele, isso ajudaria a evitar
constrangimentos amplificados pelo fato de que as salas do exame são usualmente
divididas conforme o nome de candidatos e candidatas.
Para quem vive a causa ou a defende, a prioridade é combater
a invisibilidade a que a sociedade submete quem questiona o sexo biológico. A
demanda mais recorrente ouvida pela reportagem foi pela inserção da pergunta
específica de gênero no Censo. Segundo o IBGE, antes da realização do próximo
Censo, em 2020, o instituto vai, como de costume, consultar a sociedade para
avaliar a necessidade e a conveniência de “revisão dos tópicos tradicionalmente
investigados” e de “novas necessidades de dados, sempre observando as
recomendações internacionais”. A diretora paranaense Laysa, que também é atriz
e escritora, sintetiza esse sentimento comum: “Espero que em alguns anos
possamos nos ver em novelas e em outros papéis que não sejam os da palhaça
caricata ou da trans assexuada”.
Sempre soube da minha condição. Na infância era natural. Eu
nunca achei errado. Foram os outros que colocaram na minha cabeça que vestir
roupas femininas ou brincar de boneca era ruim.
Fui discriminada em todas as instituições em que estudei e
tentei sublimar minha essência. No dia 31 de dezembro de 1999, porém, iniciei
minha vida trans. Perdi empregos e busquei na estabilidade de um concurso público
a chance de viver plenamente minha identidade de gênero.
Iniciei minha carreira como professora de História,
Geografia e Teatro. Sou diretora desde 2009, quando fui eleita com meus dois
amigos Gisele Dalagnol e Ivan Araújo. Cuidamos de, aproximadamente, 1,6 mil
alunos dos Ensinos Médio e Fundamental. Minha relação com eles é ótima, e com
os pais também. Sou respeitada e me sinto querida, acolhida e amada.
Há três anos, Ana Luiza nos contou que se sentia uma mulher
em um corpo masculino. Já dava sinais, mas pensávamos que podia ser questão de
influência, de andar só com meninas.
Conversamos em uma reunião em família. Foi uma semana sem dormir.
Mas se para mim e minha esposa foi difícil, me coloco no lugar dela, alguém de
13, 14 anos que ensaia noites a fio como dizer algo tão difícil.
Nossa família é muito católica. Os mais próximos vão sabendo
aos poucos. É um processo. O nome, por exemplo. Chamávamos de Luiz Claudio,
depois de Lu. E meu filho mais novo me cobrava, mas achei melhor ser natural do
que agir com hipocrisia. Liberamos aos poucos roupa, maquiagem.
A aparência dela mudou muito no último ano. Tem psicóloga,
mas é duro achar psiquiatra e endocrinologista que atendam o caso.
Alguns nos criticam por sermos apoiadores. Acham que
desprezar ou botar pra fora de casa poderia resolver, como se fosse algo que a
pessoa escolhe. Mas ninguém decide passar por isso. A vida é um fenômeno que
acontece. Depois que você está instalado, aprende a viver.
Rejeição e intolerância
Uma das poucas aferições já realizadas no Brasil sobre a
transfobia (aversão a transexuais e transgêneros) revelou que 24% das pessoas
não gostariam de se encontrar com transexuais (10% disseram sentir repulsa/ódio
e 14%, antipatia) e 22% não gostariam de dividir espaço com travestis
(repulsa/ódio e antipatia foram citados por 9% e 13%, na ordem). Os dados são
da pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, da Fundação Perseu
Abramo. De acordo com o 2º Relatório sobre Violência Homofóbica, em 2012 foram
registradas 3.084 denúncias de violações à população LGBT, com 4.851 vítimas e
4.784 suspeitos – alta de 166% perante a 2011. No período, foram reportadas 27
violações homofóbicas de direitos humanos por dia. Em 2011, 10,6% das vítimas
foram travestis, enquanto mulheres trans foram 1,5% e homens trans, 0,6%. Já em
2012, o porcentual de travestis e transexuais agredidos caiu para 1,4% e 0,49%,
na ordem. Para a Secretaria de Direitos Humanos, contudo, a queda não denota
diminuição da violência, mas crescente “invisibilização” de uma população
vulnerável.
Serviço:
- Ambulatório
de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e
Treinamento DST/Aids-SP
Rua Santa Cruz, 81, Vila Mariana, São Paulo, SP. Tel (11) 5087-9833
- Ambulatório
de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) – Hospital
das Clínicas
Rua Dr. Ovídio
Pires de Campos, 785,
São Paulo, SP. Tel (11) 2661-8045
- Disque
Direitos Humanos
Disque 100 http://www.sdh.gov.br/
- Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais Avenida
Afonso Pena, 867, Sala 2.207, Belo Horizonte , MG. Tel. (31) 8817-1170.
www.abglt.org.br
- Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República. E-mail:
direitoshumanos@sdh.gov.br.Tel(61) 2025-9617
Disponível em
http://www.cartanaescola.com.br/single/show/262. Acesso em 07 jan 2014.