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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"Eu queria ser menina desde o dia em que nasci"

Claudia Jordão
N° Edição:  2096 |  08.Jan - 21:00


Vinte e dois de novembro de 1963 entrou para a história como o dia em que o então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, foi assassinado. Mas, para a ginecologista e obstetra americana Marci Bowers, a data carrega um significado bem diferente. Marci ainda se chamava Mark, era um menino de 5 anos que morava em Oak Park, Illinois, com os pais e duas irmãs. “Minha mãe entrou em meu quarto chorando e gritando: “O presidente levou um tiro!”, lembra Marci. “E, então, no segundo seguinte, parou de chorar, respirou fundo e me perguntou: ‘O que você está fazendo com o vestido da sua ir mã?’” Foi nesse dia que o pequeno Mark soube que vivia a contradição de ser menina num corpo de menino. O sentimento o perseguiu por mais 32 anos. Mark se tornou especialista em omitir o que pensava e sentia, formou-se em medicina, se casou e teve três filhos – tudo isso para agra dar aos pais. Em 1995, aos 37 anos, finalmente se submeteu a uma cirurgia de troca de sexo.

Hoje, aos 51 anos, é médica e referência no mesmo procedimento que mudou sua vida. Radicada em Trinidad, no Colorado, “a capital da troca de sexo”, realiza essas cirurgias desde 2003. Já fez 800 reversões em homens e mulheres. Seus pacientes chegam a esperar um ano na fila. No ano passado, levou a técnica de reconstrução de clitóris para os EUA. Ela aprendeu o procedimento com o urologista francês Pierre Foldes, criador do procedimento, e realizou, sem cobrar, 12 cirurgias em mulheres vítimas de mutilação sexual.

ISTOÉ - Como era a vida da sra. antes da cirurgia?
MARCI BOWERS - Minha cirurgia de troca de sexo ocorreu no meio dos anos 90. Antes disso, minha vida era bem simples. Morava no centro de Seattle (Estados Unidos), era pai de três filhos e jogava golfe. Ou seja, uma rotina bem entediante. Eu carregava uma grande tristeza dentro de mim, pois queria ser menina desde o dia em que nasci. Eu era muito mais raivosa, conflituosa e imatura. E menos cuidadosa e interessada pelas coisas. Resumindo, mais infeliz. Depois da transição, a vida se tornou muito mais significativa e interessante. Eu tive a oportunidade de experimentar tudo de bom e ruim que a vida me reservava, mas como mulher. E a experiência pôde me mostrar muito claramente como a sociedade trata homens e mulheres de maneira diferente.

ISTOÉ - E a vida sexual nessa época?
MARCI BOWERS - Eu e minha ex-mulher fizemos sexo sem proteção três vezes e tivemos três filhos. Fazíamos tanto sexo quanto qualquer outro casal. Mas acredito que eu era um amante melhor do que a maioria dos homens. Eu só conseguia atingir o clímax na hora em que ela estivesse pronta. E só tinha orgasmos porque me imaginava no lugar dela. Minha vida sexual foi ok até eu começar a tomar hormônios (passo anterior à cirurgia de troca de sexo). A partir daí, permanecemos casados, mas nos tratávamos como irmãs, sem sexo.

ISTOÉ - O que sustentou o casamento?
MARCI BOWERS - Eu tive e continuei tendo um bom casamento, construído graças ao respeito mútuo e à amizade, mais do que àquela paixão ardente. A paixão acaba, mas o respeito e a amizade podem suportar até mesmo isso, uma troca de sexo. Graças à nossa honestidade e ao respeito um pelo outro, nossos três filhos sobreviveram e até prosperaram, o que me enche de orgulho. Minhas filhas têm 19 e 17 anos e planejam ser médicas, assim como eu. Meu filho tem 13 anos, é extremamente interessado, inteligente e feliz. Quem sabe para onde ele irá?

ISTOÉ - Seus pais também a apoiaram?
MARCI BOWERS - Depois que minha mãe me surpreendeu de vestido, aos 5 anos, me tornei especialista em esconder sentimentos. Por isso, conforme eu ia crescendo, minha autoestima ia diminuindo. Me sentia no lugar errado, como se estivesse na posição oposta no time da escola. Quando eu disse à minha família que iria trocar de sexo, eles não me apoiaram, principalmente por medo e ignorância. Mas, aos poucos, se aproximaram. Até mesmo meu pai, que era muito orgulhoso e faleceu em agosto do ano passado, passou a me chamar exclusivamente de Marci e a elogiar minha trajetória como médica.

ISTOÉ - Então, a sra. só contou aos seus pais adulto?
MARCI BOWERS - Sim. Quando eu era adolescente, odiava o meu corpo. Minhas mãos e braços pareciam de menina e eu sempre me imaginava como tal. Mas eu me esforçava para parecer macho, tentando (sem sucesso) ganhar peso e massa muscular. Tentei jogar beisebol e futebol americano. Não jogava muito bem, mas fiz amigos, compartilhei interesses e fui bem na escola. No nono ano, no entanto, fui vítima de bulling logo que eu e a minha família nos mudamos de Estado. Minha vida era triste grande parte do tempo. Nos bastidores, eu invejava a puberdade das minhas irmãs e, sempre que possível, vestia as roupas delas e das suas amigas. Eu me odiava por isso, mas meus sentimentos cresciam exponencialmente.

ISTOÉ - Quando pensou em mudar de sexo pela primeira vez?
MARCI BOWERS - Li uma reportagem na revista “Time” sobre transexuais quando eu tinha 15 anos e soube que se tratava do meu caso. Aos 19 anos, deixei a faculdade e peguei carona para San Diego, na Califórnia, mas não tive condições de passar pela transição para me tornar mulher. Faltava dinheiro para tudo, a situação não se resolvia apenas comprando roupas femininas. Voltei para a faculdade disposto a realizar o sonho dos meus pais de me tornar médico e seguir ignorando meu lado feminino. Quase 20 anos depois, não pude mais negar os meus sentimentos.

ISTOÉ - Quais mudanças de tratamento a sra. percebeu quando finalmente conseguiu fazer a cirurgia?
MARCI BOWERS - Os homens, e muitas mulheres também, passaram a prestar mais atenção em mim e em meus atributos físicos e se tornaram mais gentis. Ir às compras se tornou mais divertido, escolher e vestir roupas também. Resumindo, era muito mais legal acordar de manhã e simplesmente ser eu. O lado negativo foi descobrir que as minhas opiniões não são respeitadas, que o que digo não tem valor e notar que os homens olham para os meus seios para não se entediar com o que eu digo. Também fui vítima de estupro. Desde então, tenho medo de ir a certos lugares e me preocupo com a minha segurança.

ISTOÉ - Então, a vida é mais complicada para as mulheres?
MARCI BOWERS - Muito mais! Especialmente quando se passa por uma transformação tão grande quanto a minha... e quando a idade chega. Minha aparência física desce ladeira abaixo. Com os homens, isso costuma ser diferente. Eu também acho muito difícil pedir para que consertem meu carro ou algo em minha casa. Tudo que digo é interpretado como algo idiota ou sem sentido. O preconceito é grande.

ISTOÉ - Provavelmente é agravado pela sua história.
MARCI BOWERS - Pois é, existem muitos preconceitos que permanecem. Como a minha vida é aberta como um livro alguns sabem do meu passado, insistem em não me tratar como mulher e se referem a mim como se eu fosse algum tipo de atração circense. Mas isso é raro e prefiro pensar que todos me veem 100% mulher.

ISTOÉ - Alguns anos depois da cirurgia, a sra. se separou. Casou-se novamente?
MARCI BOWERS - Sim, tive a sorte de encontrar a pessoa dos meus sonhos há sete meses. No início da transição, me relacionei exclusivamente com homens (incluindo um homem que nasceu mulher e fez a cirurgia), mas depois me envolvi com uma mulher muito interessante e passei os últimos seis anos com ela. Nosso relacionamento era tumultuado e não nos completava totalmente. Quando Allien, minha atual mulher, entrou em minha vida, meu relacionamento com Carol, minha ex, estava terminando. Nos comprometemos como parceiras de vida em 29 de outubro de 2009, em uma cerimônia em Las Vegas, esperamos poder casar em breve e, quem sabe, formar uma família.

ISTOÉ - A sra. era uma próspera ginecologista em Seattle. O que a fez virar uma especialista em mudança de sexo em Trinidad, no Colorado?
MARCI BOWERS - Quem fez a minha cirurgia foi o dr. Stanley Biber, um dos maiores especialistas do mundo em cirurgias de troca de sexo e a maior autoridade em Trinidad. A partir da transição, comecei a me interessar pelo assunto e a estudar muito. Me mudei para Trinidad e fui treinada pelo próprio dr. Biber. Depois que ele se aposentou, assumi seu trabalho. 

ISTOÉ - A sra. também é especialista em reconstrução de clitóris. O que a levou para esse caminho?
MARCI BOWERS - Vitimar a mulher em nome de algo enraizado culturalmente não faz o menor sentido para mim. Se isso fosse feito com homens ou garotos pequenos, o mundo ficaria revoltado e guerras seriam travadas. Me envolvi ao notar a grande demanda por esse tipo de cirurgia. E, também, porque a restauração da sensibilidade da mulher traz mais benefícios para a identidade do que para a vida sexual dela. É exatamente o que acontece com a cirurgia de troca de sexo. Tem a ver com o meu universo. 

ISTOÉ - Que sonho ainda não realizou?
MARCI BOWERS - Minha vida e o lar dos sonhos continuam em Seattle, aonde vou com frequência. Infelizmente, tentei algumas vezes voltar para lá, mas fui ignorada ou dispensada por médicos e administradores de hospitais, apesar do meu currículo.

ISTOÉ - A sra. é considerada uma estrela pelos transexuais de seu país. A admiração traz muita responsabilidade?
MARCI BOWERS - Eu acredito que sim, que isso me dê certa responsabilidade, no sentido de informar e educar o público sobre o que diz respeito aos transexuais. Assim como outros transexuais, me sinto uma mulher como outra qualquer. Não compartilho de todas as questões do universo feminino, mas isso não acontece com nenhuma mulher do mundo. E, olha, que meus seios são verdadeiros!

Disponível em <http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/37419_EU+QUERIA+SER+MENINA+DESDE+O+DIA+EM+QUE+NASCI+>. Acesso em 11 jan 2010.