Ádima Domingues da Rosa
O trecho da famosa música Pais e Filhos, da banda de rock
Legião Urbana, sintetiza, em uma ótica estética, muitas das transformações
sociais pelas quais a instituição familiar contemporânea tem atravessado.
"Eu moro na rua, não tenho ninguém, eu moro em qualquer lugar, já morei em
tanta casa que nem me lembro mais, eu moro com meus pais". Essa mensagem
demonstra com sutileza e claridade o sofrimento dos filhos que são muito
afetados pela separação dos pais, fato que tem se tornado cada vez mais comum,
conforme apontam os dados do IBGE .
No entanto, esse rearranjo da família atual não pode ser
negado e deve, inclusive, ser celebrado como uma transformação positiva nos
padrões e nas relações afetivas, rumo às vivências mais plurais e democráticas.
A sua aceitação é fonte destacada de reflexão social e implica ainda a
necessidade de se repensar a elaboração de políticas públicas.
Com as grandes transformações observadas nas últimas décadas
no campo da sexualidade, da afetividade e das dinâmicas sociais, a família
nuclear, heterossexual, não deve ser mais tida como o modelo único, ou mesmo o
padrão referencial, mas apenas como mais uma forma de arranjo familiar. Afinal
de contas, o número de mulheres e homens que coordenam sozinhos seus lares
junto com os seus filhos é altíssimo. Além disso, cresce a percepção social de
que é fundamental reconhecer o direito de casais homossexuais de constituírem
uma família e terem filhos.
Neste quesito, as políticas públicas brasileiras são
avançadas, pois refletem a família a partir de sua função, levando em
consideração a solidariedade entre seus membros, o desencadeamento das relações
entre eles e a importância no desenvolvimento que cada indivíduo exerce sobre o
outro. Não há e não deve haver qualquer juízo de valor acerca de qual a
orientação sexual "ideal" dos cônjuges. Ao contrário, deve existir
apenas um reforço no papel da família como instituição central para a proteção
social.
É fundamental reconhecer o direito de casais homossexuais de
constituírem uma família e terem filhos
Essa visão de família não unilinear está substanciada tanto
na realidade quanto em diversos documentos governamentais, principalmente
aqueles voltados à assistência social, onde o apoio, a orientação e a
manutenção da família constituem a prioridade. Mas não é aquela família
"quadradinha", que muitas vezes imaginamos à luz de preconceitos e
visões heteronormativas do mundo.
As políticas públicas atuais levam em consideração modelos
diferenciados de famílias, partindo do pressuposto de que as mulheres ganharam
não apenas a sua independência financeira, mas também a de seus destinos,
passando a coordenar as suas famílias, sem receios de fracasso, porém muitas
vezes enfrentando o preconceito da sociedade - situação comum também aos casais
homossexuais.
Neste caso em particular, nos parece que, muitas vezes, as
concepções das políticas públicas compreendem um nível avançado até de absorção
de novos padrões comportamentais. Mas, no âmbito das dinâmicas cotidianas, as
relações caminham a passos lentos e nem sempre percorrem o mesmo caminho das
legislações. Em alguns casos, porém, a legislação parece bastante retrógrada,
principalmente quando observamos a dificuldade de adoção de filhos por parte
de casais homossexuais.
Quando isso ocorre, se transforma em notícia nacional, num
acontecimento que "está para além desta sociedade", pois parece
ofender os valores de setores conservadores da sociedade, sobretudo os
religiosos. É utilizando esse tipo de exemplo que podemos perceber com mais
clareza o quanto a sociedade como um todo é preconceituosa, o quanto
idealizamos um tipo de família heterossexual, em que o pai exerce o papel de
coordenador do lar. O enfrentamento a essa dominação masculina e heterossexual
da instituição familiar serve de bandeira para diversos movimentos sociais,
tais como o feminista e o GLBTT. Como bem podemos notar, a realidade social
está mil anos à frente de alguns valores que ainda persistem.
O que insiste em permanecer é a sombra do preconceito que,
no decorrer de nossa formação, enquadra o sexo feminino e masculino em
caixinhas de titânio, vinculadas à identidade sexual heterossexual, que são
quase impossíveis de serem quebradas. A formação das crianças ainda é dividida
em meninos e meninas, a dominação de gênero ainda está impressa em cada
brinquedo infantil, que irá, de certa forma, determinar as habilidades a serem
desenvolvidas em cada um de nós. Assim, a divisão social do trabalho é naturalizada,
como se homens já nascessem conhecendo matemática e a estrutura completa de um
computador, enquanto as meninas nascem sabendo fazer uma deliciosa feijoada,
aprendendo bem as técnicas de manejo com o fogão e com a lavadora de roupas.
É preciso, porém, compreender que a diversidade sexual, com
sua pluralidade afetiva e de experiências, constitui, sobretudo, um positivo
elemento de integração dos laços sociais e de vivência civilizada. A orientação
sexual do indivíduo não influencia de forma negativa o seu caráter. Pelo
contrário, só traz benefícios à sociedade, pois um indivíduo satisfeito no seu
relacionamento afetivo-sexual será uma pessoa feliz e tranquila em todos os
ambientes sociais, seja de trabalho, escola ou família. A comprovação do bem-estar
social causado pela aceitação das diferentes orientações sexuais é a própria
verificação do que ocorre quando ela não existe.
As pessoas podem se isolar, se destruir, ficar atormentadas.
Outras podem até se suicidar por não aguentarem a pressão da sociedade, que
neste caso tende a sufocar os indivíduos, fazendo que eles, muitas vezes, vivam
se escondendo do grupo social. O isolamento é comum entre os indivíduos
homossexuais que tentam evitar o preconceito. No entanto, os movimentos sociais
já lutam de todas as formas para que os homossexuais não tenham de se isolar e
possam viver sua afetividade e sexualidade como os heterossexuais, já que a
ideia é sufocar o preconceito e não o indivíduo.
OBS. 1 - Ver Programa Brasil sem Homofobia, em: www.sedh.gov.br. OBS. 2 - Utiliza-se, no âmbito das políticas públicas e dos movimentos sociais, para
se referir a diversos movimentos a sigla GLBTT (gays, lésbicas, bissexuais,
transexuais e travestis).
Disponível em
http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/23/artigo133462-1.asp.
Acesso em 10 set 2013.