Mostrando postagens com marcador psicanálise. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador psicanálise. Mostrar todas as postagens

sábado, 17 de janeiro de 2015

Travestismo, transexualismo, transgêneros: identificação e imitação

Simona Argentieri
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 42(77): 167-185, dez. 2009. 


Resumo: No decorrer de algumas décadas, tem havido uma dramática mudança, tanto psicológica quanto nos direitos civis, na convulsiva arena social e cultural em que os assim chamados “transexualismos” vivem, são definidos e se definem. Até a linguagem técnica mudou. No passado, diagnósticos de transexualismo e travestismo eram muito diferentes uns dos outros; enquanto falamos hoje de “disforia de gênero” ou usamos o termo abrangente “transgênero”, que muda o acento da pulsão sexual para a identidade de gênero. Em nosso trabalho clínico, os fenômenos do assim chamado “vestir-se como o outro sexo” infantil aumentaram, e há muito mais casos de perversões femininas – ou, ao menos, sua existência não é mais negada, ainda que possam ter nomes diferentes. Penso que a psicanálise deve se esforçar para recuperar seu espaço teórico e método específico de trabalho clínico, de modo a se afastar dos escândalos confusos da mídia, da sedução falsamente liberal e do conluio da reatribuição médico-cirúrgica de gênero sexual (atualmente permitida nas instituições públicas de muitos países) que, na verdade, remete o problema de volta ao nível biológico. Não podemos nos limitar a intervir, como acontece frequentemente, quando o dano já ocorreu.




quinta-feira, 10 de abril de 2014

Para a psicanálise, a inveja surge até nos bebês

Mente Cérebro
abril de 2014

Nem os recém-nascidos estão livres dela. Em certa ocasião, um homem extremamente invejoso de outro que morava na casa ao lado recebeu a visita de uma fada, que lhe ofereceu a chance de realizar um único desejo. “Você pode pedir o que quiser, desde que seu vizinho receba o mesmo e em dobro”, disse ela. O invejoso respondeu, então, que queria que ela lhe arrancasse um olho. Moral da história: o prazer de ver o outro se prejudicar prevaleceu sobre qualquer anseio de benefício pessoal. A fábula foi usada pela psicanalista Melanie Klein (1882-1960) em sua obra Inveja e gratidão (1947), um dos principais trabalhos sobre o tema, para ilustrar o funcionamento psíquico de quem vive intensamente esse sentimento.

“Cheguei à conclusão de que a inveja é um fator muito poderoso no solapamento das raízes do sentimento de amor e gratidão, pois ela afeta a relação mais antiga de todas, a relação com a mãe”, escreveu. De acordo com esse olhar, a inveja é a mais radical das manifestações do impulso destrutivo, pois leva a atacar e destruir o objeto bom, aquele cuja introjeção é a base da saúde psíquica. Esse afeto, nem sempre consciente, dificulta a apropriação de experiências boas e, portanto, a integração psíquica.

Segundo a autora, esse afeto não é fruto da decepção ou frustração, faz parte de nossa vida mental desde que somos bebês e independe das atitudes maternas e do ambiente. Pelo contrário, provém do próprio sujeito, é endógena. Propor que seja um aspecto constitucional significa salientar o fator interno. A proposta de uma inveja primária é uma das mais polêmicas da teoria kleiniana. De acordo com essa tese, ainda bem pequenos invejamos o seio materno, capaz de nos alimentar e confortar. A ideia de que o alimento bom e reconfortante não nos pertence aparece associado ao sentimento de impotência. Já os psicanalistas Donald Winnicott, William R. D. Fairbaim e Michael Ballint postulam que a inveja é sempre secundária, resultante de uma falha do ambiente.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/para_a_psicanalise_a_inveja_surge_ate_nos_bebes.html. Acesso em 07 abr 2014.

sábado, 12 de outubro de 2013

Construção de emoções

Anderson Fernandes de Oliveira

Viajante e estudioso de culturas, o sociólogo francês David Le Breton é um apreciador assumido das terras brasileiras. Já esteve no Brasil diversas vezes e ama, em especial, a cidade do Rio de Janeiro, que diz ser possuidora de uma beleza singular. Sobre São Paulo, ele é incisivo em mostrar seu desgosto. A selva de pedra lembra-o muito algumas cidades nos Estados Unidos, como Nova York, por exemplo. Ele prefere a natureza às paisagens urbanas. Por essa razão adora viajar. Segundo ele, ficar na França é muito enfadonho, devido ao clima muito frio e soturno.

Breton é doutor em Antropologia e professor na Universidade de Estrasburgo II. Tornou-se referência no estudo da corporeidade. Dentre suas obras publicadas no Brasil está a Sociologia do corpo (Ed. Vozes), em que o francês argumenta que o fenômeno de existência corporal está "incorporado" no nosso contexto social e cultural, ou seja, a linguagem corporal está inserida no canal pelo qual as relações sociais são elaboradas e vivenciadas. Para o professor, a Antropologia social e a Sociologia possuem inúmeras possibilidades de pesquisas, dentre elas, as investigativas. No âmbito individual e coletivo, elas podem ajudar nos estudos sobre as representações que construímos acerca do corpo e até mesmo na compreensão de certas culturas.

Neste e em muitos de seus trabalhos (ainda sem tradução para o português) Breton se preocupa com as investigações sociais e culturais do corpo como, por exemplo, os simbolismos, as expressões e percepções construídas na dinâmica social.

Suas análises envoltas da Sociologia da corporeidade ganham uma extensão com novos ares na obra As paixões ordinárias - Antropologia das emoções (Ed. Vozes). Em uma visita rápida por São Paulo, David Le Breton cedeu gentilmente uma entrevista à revista Sociologia Ciência & Vida, para falar um pouco sobre seu último livro, suas aventuras ao redor do mundo, Antropologia, cultura e a situação atual da sociedade contemporânea.

Para a construção do livro, você teve como base a Antropologia e a Sociologia. Você estudou algumas outras áreas da ciência e qual a importância dela no estudo antropológico?
Le Breton - A Antropologia é a disciplina dos indisciplinados [risos], daqueles que se recusam a limitar a sua curiosidade. O antropólogo é aquele que sai, que quer conhecer tudo de maneira mais ampla e dando a ele mesmo todos os meios para chegar a isso. Quando trabalho sobre qualquer assunto, seja ele emocional ou não, busco não só Antropologia e Sociologia, mas também a Psicanálise e a Etnologia. Acho que estou em uma herança da Antropologia cultural americana. Sua outra definição é que "nada que me é humano me é estranho". É necessário tudo para se construir o mundo.

"A Antropologia é a disciplina dos indisciplinados, daqueles que se recusam a limitar a sua curiosidade "


Você disse que está mais baseado na Antropologia americana. Existe outra Antropologia? Qual é a diferença?
Le Breton - Não sou estruturalista. A Antropologia que sigo é a social e cultural. Não está na herança de Claude Lévi-Strauss [antropólogo, professor e filósofo francês, considerado o fundador da Antropologia Estruturalista], mas, sobretudo, de George Balandier [etnólogo e sociólogo francês] e de Margareth Mead [antropóloga cultural norte-americana]. Eu me sinto muito mais próximo da Antropologia britânica, americana e anglo-saxônica. Existe também uma tradição na França que perdeu um pouco de importância que é do Marcel Mauss [sociólogo e antropólogo francês, sobrinho de Émile Durkheim, e considerado como o "pai" da etnologia francesa]. Eu me reconheço nesta tradição. Uma Antropologia do mundo contemporâneo que faz que a Sociologia também se imponha no momento da análise [Mauss apontava que as sociedades se formam basicamente pela troca, doação e reciprocidade de culturas].

Por que optou pelo nome As paixões ordinárias, em seu último livro?
Le Breton - O termo paixão é forte. Entendo-o de acordo com Descartes, que escreveu o Tratado das paixões, em que mostra que paixões ordinárias são aquelas com as quais vivemos todos os dias. Que são socialmente construídas e que também levam em conta a nossa individualidade dentro da cultura, da nossa história e nossa educação dentro da família.

"Falar de emoções positivas e negativas já é fazer um julgamento de valor. Jogar com essas emoções faz vender jornal "

Por que você escolheu o caminho das emoções? Qual o interesse?
Le Breton - Desde o meu primeiro livro A antropologia do corpo (Ed. Vozes) resolvi trabalhar com o corpo e as emoções. A ideia é construir uma Antropologia do corpo bem ampla. Trabalhei sobre a história do corpo, anatomia, não só do ponto de vista médico, mas antropológico. Comecei pelo ponto de vista da atitude em relação ao cadáver, por exemplo, as dissecções, de como elas se tornaram possíveis na história, as lutas culturais ao redor do cadáver, dentre outros rituais. Para mim, a história da medicina é também a história com a relação do corpo. Os anatomistas constroem o corpo com o qual a gente chega do hospital e que é curado, ou seja, chegamos com fraturas e eles têm o trabalho de reconstruir-nos. Procuro entender a invenção médica do corpo na modernidade. Construí também a Antropologia do rosto. Por que a importância do rosto existe em algumas sociedades e em outras não? Por que a desfiguração é uma tragédia na nossa sociedade? No livro abordei pela primeira vez a construção da emoção no rosto, as mímicas e o sorriso, para mostrar que o sorriso é uma coisa muito mais complicada. É uma joia e surge de uma espontaneidade diferente entre as culturas. Depois trabalhei na Antropologia da dor. É uma edição completamente renovada. Também trabalhei na construção social das percepções sensoriais, o sabor do mundo e ainda sobre as carnificações e mutilações corporais.

Esse trabalho das emoções é inédito e pioneiro ou você está sendo influenciado por outros pensadores?
Le Breton - Acredito que estou fazendo um estudo bem particular, bem singular que não existe ainda na tradição francesa, embora seja possível encontrá-lo na tradição americana e na britânica. De qualquer maneira, é um estudo que aborda outras perspectivas, algo que não existe, como por exemplo, nas análises realizadas nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, onde alguns etnólogos trabalhavam sobre afetividade, emoções.

Quando você falou sobre a aparência em que a nossa sociedade é muito influenciada e outras não, você se referia à sociedade ocidental?
Le Breton - Sim.

Portanto, a cultura oriental adota outro tipo de abordagem?
Le Breton - Existem nuances. Do mesmo jeito que a França não é os Estados Unidos, o Canadá não é a Finlândia, mas existem pontos culturais em comum. Mesmo em relação ao corpo, existem semelhanças e diferenças. Se você pensar no Japão, no Brasil ou na América Latina, os imaginários sociais são bem diferentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, sobrevive em alguns lugares o imaginário social do puritanismo, que determina ao indivíduo, e a todo o coletivo, a recusa ao corpo. Essas são tendências de acabar e liquidar o corpo, como forma de respeito e veneração a um ser superior. Esse imaginário de recusa do corpo está muito menos presente na Europa, Brasil e América Latina. Existem pontos em comum, assim como existem as diferenças. Piercings e tatuagens, que são muito corriqueiros nos países europeus, até mesmo no Brasil, não são em outros lugares, por exemplo.

Você acredita que sociólogos clássicos, como Émile Durkheim, apesar de não terem uma ligação direta com os estudos das emoções, a adotavam, indiretamente, em suas obras? Se sim, de qual maneira?
Le Breton - Acredito que haja uma ligação próxima aos pensadores George Simon e Max Weber. Simon escreveu sobre as percepções sensoriais e também sobre as percepções do corpo. São textos bem antigos, do início do século XX. Marcel Mauss também escreveu sobre as emoções sensoriais, em que mostra que são ligadas às simbologias sociais. É o que me recordo dos sociólogos mais clássicos e eu sempre os cito em meus estudos.

A condição humana não vive sem a emoção, seja ela positiva ou negativa. Qual a sua opinião sobre o uso que a mídia faz dos sentimentos negativos, dos programas sensacionalistas que usam de tragédia para conseguir ibope?
Le Breton - Falar de emoções positivas e negativas já é fazer um julgamento de valor. Jogar com essas emoções, com a pena e com o medo faz vender jornal, revista, programa de TV, etc. Veja o exemplo da publicidade, que tira vantagem em função do seu poder de sedução sobre nossos sentidos sensoriais, especialmente a visão. Nós estamos em uma emoção "positiva", mas as coisas podem ser viradas ao contrário.

Por que é que esses programas ou páginas sensacionalistas fazem sucesso? Acha que as pessoas sentem atração pelo negativo?
Le Breton - Freud já mostrou que esse mundo das emoções existe dentro de nós. Cada um tem essa parte de sombra no seu inconsciente. Se formos analisar, hoje, todos os livros e filmes tratam dessas emoções e também as usam negativamente. Basta olhar para a história do cinema e da literatura para confirmar o que estou dizendo. Nós somos também grandes personagens de ficção e nos identificamos com eles [os personagens fantasiosos que vemos em filmes e livros] e ao mesmo tempo não somos eles. O trabalho do imaginário é tornar possível todos os homens e todas as mulheres que nós poderíamos ter sido.

"A noção de traição está no ponto de vista de quem a faz e de quem a recebe, e por qual objetivo e motivo "

Ações culturais que lidam com a emoção como casamento e divórcio sofreram grandes transformações na sociedade contemporânea. Há estudos na cultura ocidental, por exemplo, que relatam que genes desencadeiam atos de traição. Como analisar essa afirmação dentro do estudo das emoções? A traição pode ser considerada uma coisa natural ou está mesmo ligada à genética?
Le Breton - Essa tradução genética não faz nenhum sentido porque é preciso primeiramente definir o que é traição. A noção de traição está no ponto de vista de quem a faz e de quem a recebe, e por qual objetivo e motivo. E essa noção de traição parece um pouco ocidental. A gente não a encontra em uma sociedade tradicional, em sociedades ameríndias, indígenas. É uma noção que vem de um tipo de sociedade individualista. Os indivíduos se situam em relação uns aos outros, no sentido de construir seu próprio sentido e não serem herdeiros de uma tradição, construindo seu próprio sentido. Essa noção de traição implica no individualismo, implica a um julgamento de valor, mas ela não é universal. O que implica aí é a noção de combate, de luta. Da mesma forma como os animais lutam entre si, um guerreiro vai lutar contra o outro. Essa noção de traição que conhecemos entre os jovens hoje é uma maneira de naturalizar esse combate, um tipo de relação social neoliberalista. É importante desconstruir essa noção de traição original do ocidente para que possamos entender que, independentemente dos genes que tenhamos, não haverá essa influência direta, uma vez que estamos organizados culturalmente e não geneticamente.

Hoje há um senso comum muito forte, em que os homens são mais razão e as mulheres emoção. No mundo globalizado, essa ideia ainda persiste? Hoje vemos muitas mulheres em cargos de liderança em que a exigência maior é de tomar decisões pela razão. Isso é mesmo válido ou é apenas mais uma crença cultural?
Le Breton - No primeiro momento isso é um julgamento de valor e também tem a ver com a educação que meninos e meninas recebem desde pequenos. Recuso essa ideia porque existe o fato de que há homens mais emocionais e mulheres mais racionais. Isso não quer dizer nada. Para algumas ações, somos emocionais e para outras, racionais. Mas temos de levar em conta que é verdade que a educação que mulheres e homens recebem é diferente. As meninas são educadas pelo lado do amor, do carinho e da emoção; já os homens são educados pelo lado do desafio, sempre no intuito de serem mais fortes que os outros. Para os profissionais que trabalham com jovens [professores, psicanalistas, etc.] é muito perceptível esta tendência. No caso das mulheres, elas interiorizam mais os seus sofrimentos, e, portanto, são elas que têm maior vulnerabilidade a contrair doenças psicossomáticas, bulimia, anorexia e tentativas de suicídio. Agora, na realidade masculina, os homens que sofrem conseguem exteriorizar mais seus sentimentos. Daí que os vemos partindo para a delinquência, violência, desafios [como os rachas em alta velocidade nas ruas], álcool, drogas e até suicídio.

Falando em suicídio, qual é a sua opinião sobre as pessoas que tiram a própria vida em nome do patriotismo ou em nome de uma religião? Será que esse tipo de paixão, de emoção, pode mesmo desencadear ações dessa proporção?
Le Breton - Depende da história de vida de cada um de nós e da cultura. Existem algumas culturas em que a religião é mais forte, como o Islã, por exemplo. Ele decide todos os momentos da vida cotidiana. Mas não é o caso de outras muitas religiões. Há as que dão uma margem de liberdade bem maior, quando comparadas à doutrina islâmica, a começar pelo fato de se ter a liberdade de discutir o texto religioso e não concordar com as interpretações. Uma pessoa que não esteja bem com sua vida pode escolher uma maneira de se integrar com a religião, como uma forma de buscar uma orientação de valor e também de encontrar outras pessoas para servir como a figura de um mestre. Da mesma forma, um jovem pode escolher o patriotismo buscando o exército como valor e sentido para sua vida. Encontrando pessoas fortes que estejam no controle, que lhe transmitam segurança e que sirvam como meta de vida.

Esta busca de personagens fortes para simbolizar um mestre, que menciona, é uma atitude social antiga. Você acredita que a sociedade contemporânea, em geral, esteja carente de mitos?
Le Breton - As sociedades humanas funcionam ao redor dos imaginários que são poderosos, os imaginários religiosos, políticos. Já vivemos em um mundo em que os imaginários foram todos destruídos, o que o Jean François Lyotard chamou de "o fim do grande discurso". Não era possível pensar sobre o comunismo, socialismo e humanismo ou dispersar esses imaginários entre todos. A nossa sociedade sofreu por não encontrar o mundo propício diante de si. Para exemplificar em um contexto bem contemporâneo, a força do novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, por exemplo, é reconstruir esses imaginários, contra o neoliberalismo americano, de reintroduzir os valores de amizade, solidariedade, humanismo e igualdade. Estamos em uma época em que o capitalismo está passando por uma fortíssima crise social, econômica e política. Trata-se, então, de uma globalização que destrói a vida e que a torna difícil para milhares de pessoas. Obama representa o surgimento de uma utopia, de uma esperança, de um capitalismo com uma aparência humana.

Antropologia das emoções
David Le Breton fez no livro As paixões ordinárias um estudo sobre a orquestra de emoções subjetivas do sujeito. Ele explica - e exemplifica - como esse processo emocional, as percepções sensoriais, ou a experiência e a expressão das emoções se dão, obviamente, da intimidade mais profunda do indivíduo e, mais que isso, se formam também graças às relações sociais e culturais em que o sujeito está inserido. Anos de estudo são somados às inúmeras referências, como Darwin, Proust, Sartre, Freud, dentre outros, para formar esta pesquisa antropológica que analisa nuances culturais que diferenciam nossas emoções.

Em um dos exemplos práticos que ele insere no livro, o beijo é um dos mais interessantes. Três modalidades do beijo se demarcam socialmente, abrindo-o a formas e significações muito diversas: sinal de afeição, rito de entrada ou de saída de uma troca e forma de congratulação. O autor explica que o beijo dado em solo, por exemplo, exprime a afeição de um indivíduo pelo país natal.

De joelhos sobre o solo, o indivíduo saúda simbolicamente um período de tempo que lhe é caro. O beijo no rosto entre meninos e meninas aqui no Brasil é corriqueiro, sendo normal trocar facilmente dois ou mais beijos nas bochechas. O número difere, com efeito, de uma região pra outra. Na Alsácia, eles são reduzidos, mas no Oeste e Centro da França podem passar de quatro.

Desta forma, o livro resgata a ideia de que as emoções não são espontâneas, mas ritualmente organizadas e que, portanto, o fundo biológico universal se declina social e culturalmente de um lugar a outro do mundo.

Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/23/artigo133356-1.asp. Acesso em 07 out 2013.

sábado, 14 de setembro de 2013

O silêncio na psicanálise

Alessandra Fernandes Carreira
10/09/2013

É tão vasto o silêncio da noite na montanha.
É tão despovoado.
Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, 
pensar depressa para disfarçá-lo.
“Silêncio”, Clarice Lispector

A descoberta do inconsciente e a invenção da psicanálise, entre o final do século XIX e o início do século XX, deveu-se em grande parte a uma atitude fundamentalmente simples de seu fundador, Sigmund Freud: ele se dispôs a ouvir o que suas pacientes histéricas, até então silenciadas pela religião e pela ciência, tinham a dizer sobre seu próprio adoecimento.

Nessa escuta, a princípio, Freud lançou mão da hipnose, que serviu para retirar suas pacientes desse silenciamento, colocando-as a falar. Essa “limpeza da chaminé”, como foi nomeado esse trabalho por uma das pacientes de Josef Breuer, parceiro de Freud, recuperava cenas que, após serem recordadas no estado hipnótico, proporcionavam um notável alívio sintomático. Mas, por outro lado, esse método revelou-se inapropriado porque trazia dois efeitos indesejados ao tratamento: 1. existiam pacientes que não se conseguia hipnotizar e 2. os sintomas histéricos ou retornavam depois de um tempo, ou ganhavam novos formatos (Freud, 1909).

Tendo obtido, através da utilização da hipnose, a prova de que era preciso sair do silêncio para que o tratamento pudesse acontecer, Freud iniciou uma busca por um método de trabalho que permitisse ultrapassar essa barreira sem, no entanto, alterar o estado de consciência do paciente. Vemos que ele se deu conta da importância de o paciente poder ouvir o que dizia, enquanto dizia. Isso significava deixá-lo exposto à surpresa, ao enigma e, principalmente, ao silêncio.

Nessa busca, que podemos qualificar como ética, Freud criou, após alguns ensaios, o método da “associação livre”, utilizado até hoje. Trata-se de o paciente dizer tudo o que lhe vier ao pensamento, inclusive, e sobretudo, aquilo que ele julgar absurdo ou irrelevante. Vemos aí que Freud fez uma aposta: a de que o paciente sabe algo que sua consciência afirma desconhecer, pois há algo silenciado ou, em termos freudianos, recalcado. Com isso, ele também reconheceu uma insistência do recalcado em retornar, mas de forma disfarçada, distorcida.

Porém, a aplicação desse método fez Freud deparar-se, em seu trabalho clínico, com barreiras que ele chamou de resistências, ou seja, impedimentos para a associação livre, destacando-se dentre elas o silêncio do paciente. Esse silêncio aparece na sessão sob vários formatos: não ter nada a dizer, não poder dizer o que pensou ou experimentar uma espécie de “branco”, um esquecimento.

Essas lacunas, que emergem na associação livre, logo revelaram-se extremamente importantes no trabalho da análise, já que Freud reconheceu nelas um apontamento da proximidade do recalcado, isto é, daquilo que estava silenciado por ser, justamente, o cerne do sofrimento atual do paciente, sendo sua recordação direta, por isso, severamente evitada pelo aparelho psíquico (Freud, 1914).

Vemos que não só o silêncio, mas a própria possibilidade de silenciar durante uma sessão, tornou-se muito importante para o trabalho psicanalítico, na medida em que se fez índice daquilo que não consegue passar à palavra e que, por isso, traumatiza. É claro que o esforço de uma psicanálise vai na direção dessa passagem à palavra, mas esse trabalho não pode ser forçado. Ele precisa ser realizado pelo próprio paciente, que se autoriza, em seu tempo e em uma relação transferencial com seu psicanalista, a ultrapassar essa barreira de silêncio, dissolvendo através da ética do bem-dizer alguns sintomas que serviam, até então, para trazerem de forma mascarada o que estava silenciado.

Diferentemente da hipnose, que fornece um comando para que o paciente fale, Freud introduziu uma nova forma de trabalhar, na qual o paciente fica exposto ao próprio movimento do inconsciente, caracterizado por uma espécie de pulsação, que se alterna em abertura e fechamento (Lacan, 1964), bem como por apresentar caminhos próprios e tortuosos, exigindo um trabalho de escuta e interpretação. Esse é o meio para o analisante iniciar uma pesquisa que é fundamental para que uma psicanálise, de fato, aconteça.

Realizada essa demarcação do silêncio como mola propulsora do tratamento e índice do recalcado, que marcam a própria invenção da psicanálise, é preciso que agora abordemos uma espécie de duplo estatuto que o caracteriza. O próprio Freud já o vislumbrou, uma vez que, ao lado desse silêncio que pode e precisa passar à palavra na cadeia associativa, ele também encontrou um outro: aquilo que ele chamou de “rochedo da castração”, intransponível e que confere uma dimensão interminável à uma psicanálise (Freud, 1937). Dito de outro modo: trata-se de um impossível, que diz respeito ao vazio e que nunca passa à palavra.

É interessante notar que essa duplicidade é reconhecida também por Roland Barthes (1978), em referência à língua clássica, sendo que ele utiliza dois termos em latim para abordá-la. Um deles é sileo, que remete a uma ausência de movimento e de ruído, uma espécie de virgindade intemporal das coisas que existe antes de elas nascerem ou depois de elas desaparecerem. É aí que encontramos a origem de silentes, que pode ser traduzido para o português, em uma de suas acepções, como “mortos”. Já o outro termo utilizado por Barthes é taceo, que diz respeito a um calar-se enquanto deixar de falar, isto é, um silêncio verbal.

Jacques Lacan (1964-1965) também remete a duas formas do silêncio, utilizando esses mesmos termos em latim. Define taceo como a dimensão do silêncio que é aquela da palavra não-dita, enquanto sileo é, para ele, um silêncio fundante, estruturante, que aponta para uma ausência essencial da palavra, isto é, um buraco de significação, uma impossibilidade de simbolização (Lacan, 1967) que é, em última instância, a própria morte.

Para abordar as origens desse silêncio estruturante, Lacan (1964-1965) refere ao grito, expressão primitiva e indiferenciada da necessidade no recém-nascido que, por estar fora do sentido, convoca o outro a um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Tal ato tem por efeito a transmutação do próprio grito em demanda, ou seja, a mera descarga fisiológica, animada por um desconforto, é tomada como um pedido de um sujeito.

Freud já apontava que a primeira e mítica experiência de satisfação depende dessa ação do outro. Entretanto, acreditava que, por ela ser inédita, é também irrecuperável enquanto tal. Ela estabelece, com isso, tanto uma expectativa e procura por satisfação nos mesmos moldes da experiência inaugural, quanto uma impossibilidade de reencontro do objeto, ou seja, um vazio contínuo e constante para o sujeito, que nenhum objeto substituto pode preencher.

Isso mostra que, para além da demanda, que toma o lugar da necessidade através de um ato interpretativo do outro, surge também o desejo, pois há sempre uma insatisfação em toda e qualquer satisfação, há sempre falta. Dito de outro modo: o significante não dá conta do real, nem tudo passa à palavra, há sempre um resto. Em virtude dessa impossibilidade, podemos tomar o desejo, então, como oriundo do próprio silêncio que surge junto com o significante.

Assim, o grito não se perfila sobre um fundo de silêncio, pelo contrário: ele o faz surgir como silêncio (Lacan, 1964). Referindo ao quadro O grito (1893), de Eduard Munch, Lacan chama a nossa atenção para esse ser de aspecto estranho, que tapa as orelhas e escancara a boca em um grito que, literalmente, parece provocar e sustentar o silêncio. “O grito faz o abismo onde o silêncio se aloja.” (Lacan, 1964-1965, p. 217).

Esse abismo obriga o sujeito a uma retomada que Lacan chama de fantasia: uma construção significante que procura escamotear esse vazio ou, como nos diz Freud (1908), que procura concertar a realidade insatisfatória e realizar, sem realizar, o desejo. Assim, Lacan define a fantasia como algo que se interpõe à verdade, tal qual uma tela colocada no caixilho de uma janela. Isso é incrivelmente bem ilustrado em uma série de quadros de René Magritte, que trazem janelas justamente nessa condição de anteparo, especialmente um deles, intitulado A condição humana, de 1935. Para Lacan, “Seja qual for o encanto do que está pintado na tela, trata-se de não ver o que se vê pela janela.” (Lacan, 1962-1963, p. 85). E o que se vê pela janela? Nada.

Vale ressaltar que, embora inconfessável (Freud, 1908), por estar na lógica significante, a fantasia pode passar à palavra, isto é, ao saber. Mas, para isso, é preciso ultrapassar uma barreira: a da vergonha e da culpa. Essa travessia, embora realizada na cadeia associativa, conduz ao encontro derradeiro com o inominável, com a verdade que só pode ser meio-dita (Lacan, 1969-1970), o que estabelece a seguinte direção para uma psicanálise: é preciso atravessar taceo para atingir, embora não dizer, sileo.

Destarte, uma psicanálise trabalha nessas duas formas do silêncio, buscando trazer à palavra o que deixou de ser dito, por um lado, e cernindo aquilo que não pode ser dito, ou seja, apontando para essa impossibilidade estrutural e estruturante de sileo. Embora isso tenha uma dimensão trágica, tem também uma dimensão fecunda, à medida que libera o sujeito de uma esperança de completude que o mantém alienado ao desejo do Outro, desejo esse que se revela, afinal, sem nenhuma substância, mas sim como pura falta.

Referências bibliográficas
Barthes, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Freud, S. (1908). "Escritores criativos e devaneio". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, pp. 149-161.
Freud, S. (1909). "Cinco lições de psicanálise". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XI, pp. 13-57.
Freud, S. (1914). "Recordar, repetir e elaborar". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XII, pp. 193-206.
Freud, S. (1937)." Análise terminável e interminável". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXIII, pp. 247-288.
Lacan, J. (1962-1963). O Seminário de Jacques Lacan, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964). O seminário de Jacques Lacan, livro 11: Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964-1965). Problemas cruciais para a psicanálise. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife. (publicação para circulação interna)
Lacan, J. (1966-1967). La logique du fantasme. Seminário inédito. (mimeo)
Lacan, J. (1969-1970). O seminário de Jacques Lacan, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lispector, C. (1998). "Silêncio". In Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco.


Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=91&id=1125. Acesso em 10 set 2013.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

História da ciência e a diversidade de orientações sexuais: natureza, cultura e determinismo

Valter Forastieri
Candombá - Revista Virtual, v. 1, n. 1, p. 1 – 15, jan – jun 2005

Resumo: Este artigo é uma revisão de como a ciência vem tratando a questão da existência de uma variedade de tipos de orientações sexuais. A orientação sexual, um padrão peculiarmente humano, é caracterizada pelo comportamento sexual mais aspectos cognitivos referentes à atração, fantasias e desejos sexuais. A tentativa de explicação desse fenômeno criou disputas entre biólogos e psicólogos, a controvérsia natureza versus cultura. No início do século XX, o determinismo cultural da psicanálise foi a base de explicação da orientação sexual, mas, com o passar das décadas, foi perdendo espaço para o determinismo biológico, impulsionado pela revolução biotecnológica.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O sexo inventado

Maysa Rodrigues

Dentre os quarenta e seis cromossomos do mapa genético humano, apenas um diferencia biologicamente as mulheres dos homens. Entretanto, esse detalhe microscópico foi o suficiente para dividir quase toda humanidade em dois grupos que se interpenetram sem nunca perderem sua distinção básica. Muitos irão concordar que homens e mulheres são diferentes do ponto de vista de seus corpos, de sua constituição psicológica e do papel que ocupam na sociedade. Porém, na contramão da diferença, a Antropologia teceu ao longo do século passado uma tradição que desmonta muitas de nossas percepções mais fundamentais sobre os sexos.

Um cromossomo é formado de diversos genes, de forma que o que separa homens de mulheres é a combinação de alguns bocados dessas partes minúsculas. Ainda assim, para a Biologia, esses detalhes são responsáveis pela constituição de corpos diferenciados, compostos de uma maioria de órgãos em comum e de outros que seriam exclusivos a cada um dos sexos. Além da caracterização genética e anatômica, há também uma diferenciação hormonal - as mesmas substâncias, mas em quantidades diferentes nos homens e nas mulheres.

Se a Biologia propõe uma diferença física, a interpretação do senso comum se apoia em uma diferença de comportamento e de papéis. Acima de tudo, mulheres são possíveis mães - após serem fecundadas, nutrem, carregam e dão à luz a um novo indivíduo, que deverá receber atenção por boa parte de sua vida. A poesia e a literatura descrevem com adoração e reserva esses seres fantásticos que transitam entre a sensualidade e a maternidade. Já os homens também tiveram historicamente seu papel: fecundar e prover o sustento para a mulher e para seus descendentes.

É verdade que as funções para os dois sexos mudaram ao longo da história. Atualmente, principalmente na sociedade ocidental, boa parte das mulheres integra o mercado de trabalho, e muitos dos homens realizam funções domésticas e participam da criação dos filhos. Ainda assim, algumas expectativas parecem manter-se fixas. Mulheres que abrem mão da maternidade ainda são vistas com certo estranhamento. Da mesma forma, um homem sustentado por sua companheira dificilmente não causará algum constrangimento.

Negando os papéis sociais

Em um primeiro momento, negar a ideia de que homens e mulheres são essencialmente diferentes parece algo absurdo, justamente por essa ideia ter extrema aceitação pela ciência e pelo senso comum. Entretanto, a abordagem antropológica sugere uma nova interpretação a partir de trabalhos que estudaram a fundo outras sociedades (especialmente as ditas sociedades primitivas) e as variadas maneiras como essas culturas enxergaram a realidade.

Pierre Clastres, no capítulo "O Arco e o Cesto" de seu célebre livro A Sociedade contra o Estado apresenta a interessante cultura dos Guaiaquis. Nessa sociedade, assim como na nossa, as tarefas eram divididas entre homens e mulheres. Os primeiros se responsabilizavam pela caça, e as segundas, pela coleta e pelos constantes deslocamentos dos objetos pelo território, uma vez que se tratava de uma sociedade nômade. Sem adentrar profundamente em toda a rica análise que Clastres faz sobre as interdições ligadas aos sexos e às famílias, os Guaiaquis são importante para nosso tema porque trazem um exemplo de sociedade em que impera a poliandria, ou seja, a união da mulher com mais de um marido. Conforme sugere o autor, as mulheres Guaiaquis possuíam uma vantagem estrutural em relação aos homens: mesmo casadas, podiam ter relacionamentos com moços solteiros e transformá-los em maridos secundários se assim desejassem. Isso não significava que os maridos principais ficavam felizes, porém, esses não tinham muita escolha: se abandonassem suas esposas seriam condenados ao celibato, pois a tribo carecia de mulheres disponíveis. Já as esposas logo encontrariam outro marido, pois havia o dobro de homens em relação às mulheres.

Muito interessante na análise do autor é a ideia de que a desproporção numérica entre os sexos poderia ter sido solucionada por outros meios senão a poliandria. Seria possível que certos parentes considerados proibidos para o casamento passassem a ser permitidos. Também seria imaginável que houvesse um incentivo social ao celibato masculino ou que se admitisse o assassinato de recém-nascidos homens. De qualquer maneira, o modelo matrimonial verificado nessa tribo evidencia que dentre as infinitas possibilidades das culturas que já passaram pelo globo terrestre, os Guaiaquis são uma mostra de que o arranjo tecido pela nossa própria sociedade ao que diz respeito às relações entre homens e mulheres está longe de ser o único possível.

De forma ainda mais sugestiva para essa ideia, Margaret Mead*, em seu livro clássico Sexo e Temperamento, questiona as noções mais comuns dos papéis sexuais ao apresentar três sociedades na Nova Guiné. A autora toma como base o que considerou serem os padrões norteamericanos: o comportamento feminino seria caracterizado por ser "dócil, maternal, cooperativo, não agressivo e suscetível às necessidades e exigências alheias", e o comportamento masculino seria relativamente oposto a essa caracterização.

Tomando esses padrões como referência, percebemos que cada uma das três tribos apresenta comportamentos diferentes para homens e mulheres. Dentre os Arapesh, por exemplo, tanto os homens como as mulheres exibiam uma personalidade que seria considerada feminina na sociedade norte-americana. Já os integrantes da tribo Mundugumor eram homens e mulheres "implacáveis, agressivos e positivamente sexuados, com um mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua personalidade", apresentando um tipo de comportamento que, segundo Mead, só seria encontrado em um homem norte-americano "indisciplinado e extremamente violento". Tchambulli é a terceira tribo apresentada pela autora e se caracteriza por uma diferenciação entre os sexos e uma clara inversão das expectativas de temperamento de nossa sociedade: a mulher é "o parceiro dirigente, dominador e impessoal, e o homem a pessoa menos responsável e emocionalmente dependente".

Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas. Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que "não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção entre homens e mulheres.

Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas. Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que "não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção entre homens e mulheres.

Nesse sentido, o argumento é interessante no que diz respeito à diferença entre homens e mulheres: muitas das características corporais que distinguem os sexos seriam constituídas a partir de um treino social do corpo. A delicadeza feminina; a postura imponente dos homens; o jeito discreto de sentar das mulheres recatadas; o largar-se confortavelmente no sofá, tipicamente masculino; ou então a maneira sensual feminina de andar movimentando os quadris são todos exemplos das chamadas técnicas do corpo propostas pelo autor.

Pierre Clastres » Antropólogo francês, Pierre Clastres nasceu em 1934 e faleceu, vítima de um acidente, em 1977. Castres integrou o Laboratório de Antropologia Social do Collège de France e deixou como principal legado o livro A sociedade contra o Estado, coleção de ensaios publicados em 1974 e considerado uma das obras-primas da antropologia.

O conceito de gênero

Mead, Mauss e Clastres, dentre outros autores, incutiram na tradição antropológica a ideia de que os papéis destinados a homens e mulheres não são explicados por uma diferença essencial inscrita na natureza de seus corpos. Ainda que sejam biologicamente diferentes, as peculiaridades anatômicas não explicariam as inúmeras outras diferenciações sociais entre os sexos: sejam elas de hierarquia, de status, de poder, de posição na divisão do trabalho, de personalidade, de comportamento e nem mesmo de seus trejeitos corporais.

Assim, se por um lado essa interpretação não nega radicalmente a perspectiva da diferença anatômica, afirma que a Biologia nada explica no que diz respeito à vida social. O argumento principal é que a natureza dos corpos é interpretada pela cultura que, por sua vez, origina inúmeros significados que transcendem as diferenças corporais.

A partir dessa rejeição à explicação biológica para as diferenças sociais, a Antropologia criou o conceito de gênero. "O foco da Teoria de Gênero é desconstruir a ideia de que existe uma diferença natural entre homens e mulheres que explique o que acontece nas sociedades", define Heloisa Buarque de Almeida, antropóloga especialista no tema e professora da Universidade de São Paulo. "Por muito tempo se dizia que as mulheres tinham menos poder ou que estavam restritas à esfera doméstica por causa da reprodução e da maternidade, ou seja, devido a elementos associados ao próprio corpo feminino. A Teoria de Gênero tenta mostrar que nem todas as sociedades tratam as mulheres dessa maneira", completa.

A professora explica que a origem do conceito de gênero estaria inicialmente associada às ciências médicas. "Gênero aparece na medicina nos anos 1950, no caso dos chamados distúrbios de gênero, como crianças que nasciam intersexuadas, ou seja, que tinham a genitália que hoje chamamos de ambígua, ou então pessoas que nasciam de um sexo e se diziam seres de outro sexo. Era usado quando a identidade do corpo da pessoa não combinava com aquilo que ela sentia sobre si".

Na Antropologia, apesar da impossibilidade de se traçar uma genealogia exata, os estudos atuais colocariam a antropóloga norte-americana Gayle Rubin como uma das precursoras do uso do conceito. "O foco de Rubin era mostrar que a relação entre os gêneros não deriva da natureza, pois é histórica, decorre de um arranjo social e tem um momento de fundação. Apesar disso, acaba aparecendo ideologicamente como naturalizada", explica Heloisa.

Margaret Mead » Doutora pela Universidade de Columbia e uma das grandes representantes do culturalismo, a antropóloga norteamericana Margaret Mead (1901-1978) publicou livros como Adolescência, sexo e cultura em Samoa (1928) e Sexo e temperamento em três sociedades primitivas (1935).

Debate com a biologia

Se parte dos estudos antropológicos afirmam que a explicação para a diferença social entre homens e mulheres só pode ser compreendida a partir do universo social que os permeia - sem, entretanto, negar que existam diferenças biológicas e anatômicas reais entre os sexos - outra parte radicaliza o argumento e nega a própria Biologia.

Nesse sentido, diversos estudos realizados nas Ilhas Trobriands representaram uma primeira aproximação, quase intuitiva, às teorias que desconstroem radicalmente a ciência. Considerado um dos principais fundadores da Antropologia, Bronislaw Malinowski intrigou-se no começo do século passado com a exótica interpretação que os trobriandeses faziam da gravidez e do intercurso sexual. Para essa tribo, o homem através da relação sexual que mantinha com a mulher não era responsável pela geração de crianças. A implementação do bebê no corpo materno seria realizada a partir de espíritos oriundos exclusivamente do lado da mãe, de forma que a função do pai era a de "abrir o caminho", ficando excluído da ascendência sobre o novo ser. Além disso, os homens trobriandeses eram considerados responsáveis pelo crescimento e pela fisionomia das crianças, que seria formada a partir das relações sexuais que mantivessem com as mulheres grávidas.

Essa interessante interpretação sobre a reprodução humana abre caminho para pensarmos que a partir dos mesmos fatos (intercurso sexual, gestação e nascimento) inúmeras explicações e relações entre causa e efeito podem ser desenvolvidas pelas culturas. Assim, a compreensão do nascimento como decorrente da gestação, e esta última como consequência do encontro entre os gametas femininos e masculinos durante o intercurso sexual, não é uma decorrência inevitável do pensamento humano, mas sim uma particularidade do pensamento ocidental.

Por volta de meio século depois das investigações de Malinowski, Michel Foucault promoveu uma das principais críticas no sentido da desconstrução da ciência. O autor levou a já exposta ideia de Marcel Mauss (de que as técnicas do corpo seriam constituídas de um treino social) ao extremo. Afirma que não apenas os movimentos corporais são construídos socialmente e incutidos nos indivíduos, como também o próprio corpo é construído politicamente.

Para ele, absolutamente nada existe anteriormente ou externamente ao discurso humano. Toda a suposta realidade concreta só seria concebida pelos indivíduos a partir do "saber", sendo que esse saber é entendido pelo autor como uma relação de poder que designa, nomeia e confere sentido a todas as coisas. Sua ideia central é a de que não existe uma "natureza natural", ou seja, uma realidade anterior ao saberes e aos discursos humanos. Um bom exemplo nesse sentido é pensarmos que o câncer é uma enfermidade que tem uma presença relativamente recente no léxico da medicina. Antigamente, as pessoas que hoje dizemos que morreram em sua decorrência, morriam porque estavam velhas ou simplesmente sem que se soubesse o porquê. Apenas a partir do reconhecimento da existência dessa doença pela comunidade científica é que o câncer passou a existir no linguajar e no pensamento das pessoas. Da mesma maneira, os sintomas que hoje interpretamos como doença de Alzheimer ou como outras demências degenerativas eram simplesmente sinais de velhice, sem possuírem um sentido particular.

O essencial que os dois exemplos pretendem sugerir é de que apenas quando há um reconhecimento na sociedade de que certo elemento tenha um determinado sentido, que isso passa a estruturar a vida social e fazer parte da interpretação comum. Além disso, o reconhecimento dos sentidos das coisas (e também o reconhecimento da existência das próprias coisas) se realiza por meio de uma relação de poder. Assim, o saber ou o conhecimento, para Foucault, é sempre permeado por uma força porque designa positivamente o sentido das coisas.

Até esse ponto, deve ser coerente dizer que a teoria do autor implica em uma profunda crítica ao sentido da ciência, uma vez que nega seu aspecto de saber absoluto, neutro e apolítico, enfatizando a questão do poder que envolve diretamente todo o conhecimento que existe. Para essa concepção, ciência não é um aparato de técnicas imparciais, que descobre a realidade externa, imutável e objetiva. Muito pelo contrário, o argumento de Foucault sugere que a realidade que nos aparece como objetiva é, na verdade, construída por um saber inundado de poder.

Nesse mesmo sentido, a medicina seria um saber institucionalizado que implica em um controle dos corpos dos indivíduos na mesma medida em que impõe o sentido desses corpos. Assim, podemos começar a pensar na natureza supostamente diferente dos corpos femininos e masculinos como uma ideia longe de ser natural.

Para ilustrar a concepção foucaultiana de ciência, Heloisa Buarque de Almeida explica como ao longo da história da medicina diversos aspectos do corpo humano foram responsabilizados por determinados comportamentos. "No final do século XVIII, como mostra a autora Magali Engel, o comportamento feminino é imputado aos ovários. Quando a mulher é vista como tendo alguma perturbação mental, como louca ou como promíscua, o protocolo é tirar os ovários, mesmo que aparentemente estivessem saudáveis".

Depois, conforme completa a antropóloga, o útero surgiria como o maior culpado pelos problemas emocionais, e a forma de tratamento mais comum para os chamados desvios mentais se tornaria a extirpação desse órgão. "Já por volta dos anos 1940-1950, ganha proeminência a ideia dos hormônios. Aparece na medicina que o comportamento chamado masculino é gerado pela testosterona, que passa a explicar a virilidade, tanto do ponto de vista da potência sexual, quanto de um comportamento agressivo e dominador dos homens. Essa visão também explica o comportamento mais afetivo e carinhoso das mulheres como sendo algo gerado pelos hormônios", desenvolve.

Hoje em dia, nem mais os hormônios e tão pouco os órgãos reprodutivos: a força explicativa da ciência estaria na ideia dos genes, que passa a ser a causa maior da diferença sexual. "Os médicos indicam aspectos biológicos como determinantes do comportamento, mas esse lugar da natureza parece estar sempre mudando", finaliza a antropóloga.

Na mesma trilha de Foucault, Thomas Lacqueur dá forma ao argumento do filósofo. Em seu livro Inventando o Sexo, o autor, a partir de um levantamento de manuais de medicina e de outros escritos do campo afirma que até meados do século XVIII havia uma concepção de sexo único, "no qual homens e mulheres eram classificados conforme seu grau de perfeição metafísica, seu calor vital ao longo de um eixo cuja causa final era masculina."

Assim, segundo esse modelo que imperou até não muito tempo atrás, homens e mulheres não eram considerados fisicamente diferentes. Sua diferença era apenas em grau (homens tinham maior calor vital e maior perfeição). Essa concepção se manifestava nos manuais de medicina de tal maneira que não era descrita nenhuma forma de distinção anatômica entre os sexos. A convergência também se exprimia no fato de haver uma mesma nomenclatura para os órgãos que hoje são considerados específicos de cada um dos sexos. Lacquer afirma que "durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens", com a diferença de que a genitália feminina ficava dentro do corpo, enquanto que a masculina era externa. Os lábios vaginais eram considerados equivalentes ao prepúcio masculino, o útero era a mesma coisa que o escroto e os ovários seriam uma transposição dos testículos.

Impressiona na descrição de Lacqueur que essa maneira de conceber os corpos como iguais prevaleceu à prática da dissecação, evidenciando que não se tratava de um conhecimento baseado na impossibilidade de ser enxergar os órgãos, mas sim em uma forma de olhar e de interpretar o corpo diferente da que impera atualmente.

Também bastante revelador desse modelo de sexo único é a ideia de que sendo a diferença entre homens e mulheres apenas de grau e não de natureza, poderia haver uma mudança de sexo: "as meninas podiam tornar-se meninos, e os homens que se associavam intensamente com mulheres podiam perder a rigidez e definição de seus corpos perfeitos, e regredir para a efeminação". Lacqueur apresenta um relato médico do século XVI que atesta para a possibilidade de se transitar entre os sexos: uma pessoa identificada até então inquestionavelmente como menina passa a apresentar um "pênis e um escroto externo".

O caso que seria explicado hoje como um exemplo de intersexo (ou seja, de um indivíduo que possui o aparelho reprodutor ambíguo e que pode desenvolver novos órgãos na adolescência) foi considerado, naquela época, como a prova da possibilidade de mudança sexual. Essa anedota evidencia que, diferente do que normalmente pensamos, não é a simples visão dos corpos que condiciona a teorização que se fará sobre eles posteriormente; é o modelo corrente na sociedade que determinará a imagem que nossos olhos farão do que está em nossa frente.

No dia 13 de dezembro de 2010, faleceu a socióloga, professora e pesquisadora Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, reconhecida internacionalmente por seus estudos sobre as questões de gênero e direito das mulheres. Professora da Unesp e da PUC -SP, Heleiteh Saffioti publicou o livro Gênero, Patriarcado e Violência (Fundação Perseu Abramo, 2004) .

Um mundo pós-gênero?

A filósofa Judith Butler em sua obra Problemas de Gênero, agrega aspectos do pensamento de Foucault e de Lacquer para afirmar que gênero é sempre um ato performativo, que se constitui apenas nas o feminino e o masculino. Assim, travestis e drag queens evidenciariam a natureza performática do feminino e sua artificialidade, inclusive nas mulheres.

Para a autora, se gênero é performance, longe de se desenvolver livremente, é regulado por uma matriz que pressupõem coerência entre o sexo biológico, as atuações de gênero, o desejo e a prática sexual. Assim, pessoas com a genitália feminina devem ser mulheres que têm desejo por homens e que devem manter relações sexuais e afetivas exclusivamente com o sexo oposto.

Além disso, não seria possível em nossa sociedade a inexistência de qualquer performance de gênero pelos indivíduos, uma vez que o pensamento ocidental, além de incapaz de aceitar as descontinuidades e incoerências provenientes das subjetividades que não se adéquam à norma, também seria inábil em parar de localizar os sujeitos em relação às opressoras categorias de feminino e masculino. Assim, mesmo que os indivíduos subvertam alguns aspectos dessas regras, ainda estariam se posicionando em relação a elas.

Apesar da visão antropológica que propõe uma igualdade radical entre os sexos, Butler parece apontar para uma dificuldade em nos desvencilharmos das categorias de gênero, que seriam ordenadoras de nosso pensamento. A persistência se afirma em um mundo que, ao mesmo tempo em que muda, continua reiterando as barreiras entre homens e mulheres.

Ainda assim, mesmo que a crítica da Antropologia não implique em uma verdadeira libertação das amarras mais profundas em relação aos papéis de gênero - tão pouco no fim da opressão das subjetividades humanas dissidentes e na aceitação das múltiplas formas de sexualidade -, a disciplina fornece, certamente, um intenso estímulo ao nosso pensamento e à nossa capacidade de conceber um mundo diferente daquele que se apresenta aos nossos olhos, especialmente a partir do contato com outras realidades culturais que nos maravilham com suas vastas possibilidades.

Judith Butler » Filósofa norte-americana e professora da Universidade de Berkeley, contribuiu decisivamente para os estudos sobre gênero e teoria feminista. Seu livro Problemas de Gênero é tido como uma obra fundamental sobre a questão. É desde 2007 integrante da American Philosophical Society.

O contraponto da psicanálise

As teorias antropológicas sobre gênero em alguns momentos concorrem e em outros se completam com as perspectivas de outros campos do saber como, por exemplo, o da História, o da Filosofia, o da Psicologia e o da Psicanálise. Esta última oferece uma série de reflexões sobre a formação da personalidade, inclusive em sua interface com o gênero. Em uma conversa com a psicóloga e psicanalista Magdalena Nigro, professora do curso de especialização em Sócio-Psicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tentamos nos aproximar da teoria psicanalítica:

Homens e mulheres são diferentes do ponto de vista psicológico?
Cada ser humano possui uma estrutura de personalidade própria. Segundo Freud, essa estrutura é composta pelo "id", "ego" e "superego". O "id" é o domínio da pulsão, do desejo. Porém, a realidade impõe limitações à satisfação do desejo, por exemplo, por meio das experiências de espera. Dessa maneira, do confronto do "id" com a realidade forma-se o "ego", que inicialmente é algo corporal e depois se torna uma estrutura psíquica. Já o "superego" é uma consequência do Complexo de Édipo e introduz a lei na vida da criança. Porém, a estruturação da personalidade ocorre de forma única em cada sujeito. Assim, as diferenciações de gênero aparecem ao longo do desenvolvimento do sujeito, em função desse processo de estruturação da personalidade.

Então, não nascemos sujeitos com gênero. Há um processo que causa essa diferenciação?
Nascemos com diferenças anatômicas. O corpo do homem e o corpo da mulher são diferentes. Mas a identidade de gênero, masculina ou feminina, é algo que no entendimento da psicanálise vai sendo construída ao longo do tempo, como consequência das vivências do sujeito na vida familiar e social.

Como as teorias psicanalíticas entendem o processo dessa diferenciação?
O bebê quando nasce recebe um nome de mulher ou de homem, segundo seu sexo biológico. Dessa forma será identificado como sendo do sexo feminino ou masculino. Porém, a identificação sexual e a identidade de gênero serão constituídas a partir das identificações, fundamentalmente, com o pai e com a mãe. Imitando o pai ou a mãe, brincando de professor/a, médico/a, etc., o menino e a menina ingressam no universo do feminino e do masculino por meio da identificação com essas figuras. No final do complexo de Édipo, a menina se identifica com a mãe, como mulher, e o menino com o pai, enquanto homem. Assim, projetam-se no futuro, para fora de sua família original, como homem ou mulher, iniciando seu caminho para a feminilidade ou masculinidade.

REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: CosacNaify, 2007.
MAUSS , Marcel. "As técnicas do corpo". In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: CosacNaify, 2003.
MEAD , Margareth. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 2000.


Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/33/artigo208724-1.asp. Acesso em 25 jul 2013.

sábado, 8 de junho de 2013

'Transexualidade deve ser vista como característica', diz psicólogo

G1
15/10/2011

“A transexualidade não pode ter existido antes do século 19”. A afirmação é do psicólogo Rafael Cossi, autor do livro Corpo em Obra. Transexual é a pessoa que biologicamente pertence a um sexo, mas se identifica com o gênero que não corresponde a ele.

“Foi só no Século 19 que surgiu a ideia de que masculino e feminino são radicalmente opostos e tem que haver uma correspondência entre corpo e gênero”, aponta Cossi. Segundo o pesquisador, não havia essa relação antes, e a identidade de gênero não precisaria acompanhar o sexo da pessoa. “Isso [a identificação por gênero] é totalmente uma construção social”, acredita.

Cossi conta que, desde então, a psicanálise tenta definir o que leva uma pessoa a se identificar com um gênero que seria oposto. Ele diz que uma das linhas de pensamento vê a transexualidade como uma forma de psicose, quadro que inclui alucinações e delírios.
“Isso não é necessariamente um delírio”, diz o psicólogo. “Não dá para reduzir a transexualidade à psicose”. Para ele, a transexualidade tem que ser vista simplesmente como uma característica.

“Eu acredito que, assim, essas pessoas vão ter mais liberdade, com menos preconceito, viver melhor”, diz o pesquisador.

O livro Corpo em Obra foi baseado na dissertação de mestrado de Cossi no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). No trabalho, o autor analisou seis biografias de transexuais.


Disponível em http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/10/transexualidade-deve-ser-vista-como-caracteristica-diz-psicologo.html. Acesso em 04 jun 2013.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Psicanálise do homem desbussolado

Jorge Forbes

Aforismo é uma sentença que em poucas palavras se compreende. Nesta coluna, proponho um formato diferente ao leitor como maneira provocativa de percebermos como estamos sendo confrontados a frases sintéticas. Proponho alguns aforismos sobre as mudanças necessárias a uma Psicanálise do Século XXI. Informações de relevância, porém concisas, o que obriga a cada um por de si, ao completá-las.

Freud teve a genialidade de propor uma estrutura capaz de esquadrinhar a experiência humana em um mundo pai-orientado: o complexo de Édipo. Um standard freuddiano, não um princípio.

Foi Jacques Lacan quem deu o alerta da necessidade de uma Psicanálise além do Édipo. Uma Psicanálise capaz de acolher um homem cujo problema não está mais nas amarras de seu passado - o que justificou a expressão "cura da memória" -, mas uma Psicanálise para o homem que não sabe o que fazer, nem escolher entre os vários futuros que lhe são possíveis hoje: sem pai, sem norte, sem bússola.

Tempo incompleto

Antes, as pessoas se queixavam por não conseguirem atingir os objetivos que perseguiam. Hoje, quase ao avesso, as pessoas se queixam pelas múltiplas possibilidades que se oferecem.

Se ontem se analisava para se compreender mais, para ir mais fundo, hoje se dirige o tratamento ao limite do saber, aonde surge a necessidade da aposta, na precipitação de um tempo sempre incompleto.

Se ontem se fazia análise para obter uma ação garantida, livre de influências fantasiosas, hoje, nenhuma ação é assegurada em um justo saber, toda ação é arriscada e inclui a responsabilidade do sujeito.

Se ontem os analistas se limitavam em sua práxis ao espaço do consultório, hoje haverá Psicanálise onde houver um analista, e ele é necessário nos mais diversos locais da experiência humana, muito além dos espaços de saúde.

HOJE, O QUE IMPORTA É RETIFICAR A POSIÇÃO DA PESSOA EM RELAÇÃO AO RADICAL DESCONHECIMENTO DO REAL

Quando a palavra não é mais necessária para intermediar o que se quer, para refletir sobre o que se teme, para inquirir o que se ignora; quando a palavra perde sua função de pacto social, ficamos suscetíveis ao curtocircuito do gozo. O gozo que prescinde da palavra é, em consequência, ilógico e desregrado.

Hoje estamos no momento do gozo ilógico e desregrado. Alguns exemplos dentre os mais notáveis são as toxicofilias, o fracasso escolar, a delinquência juvenil, as doenças psicossomáticas. Em cada um desses quadros podemos destacar a impotência da palavra dialogada para alterar o mal-estar da pessoa.

Gozo desregrado

Miremo-nos nos exemplos dos próprios adolescentes, os que mais sofrem os curtos-circuitos do gozo. Vejamos as soluções que eles encontram para ordenar este gozo caótico. O nome é: "esportes radicais". No ar: paraglider; na terra: alpinismo; no mar: kite-surf. Todos eles, no limite do dizível, tentativas de captura direta do gozo.

O fracasso escolar, a toxicomania, as bulimias, as anorexias, a violência despropositada têm em comum a impossibilidade de serem explicados. Suas causas não são decifráveis por via alguma: da Medicina, da Psicologia, da Pedagogia. Não explicáveis, não exclui que sejam tratáveis.

Lacan propôs duas clínicas: uma primeira, a da palavra decifrada, que levantando o recalque, alivia o sofrimento, e uma segunda, a clínica do gozo, onde a palavra serve para cifrar, para marcar, tal qual o soci do alpinista, a dura pedra do gozo a ser conquistado.

Os novos sintomas, por surgirem do curto circuito da palavra, são resistentes ao tratamento pela associação livre. De uma clínica do esclarecimento, vamos para a clínica da consequência.

Passado e futuro

A Psicanálise no tempo de Freud visava descobrir os impasses, os traumas que impediam uma pessoa de alcançar o futuro que idealizava. O futuro era claro, difícil era seu acesso. A Psicanálise no século XXI não é um tratamento do passado, mas, ao contrário, é invenção de um futuro.

Freud escreveu três famosos textos sobre a organização social: Totem e Tabu, Futuro de uma Ilusão e Mal estar na Civilização. É nossa tarefa, hoje, reinterpretar essa sociedade, não mais à luz do Complexo de Édipo, mas à luz de um novo amor além do pai, o que exigirá falarmos da responsabilidade de cada um ante sua escolha.

Se antes, o objetivo de uma análise, com Freud, era o de se conhecer melhor, hoje, com Lacan, o que importa é retificar a posição da pessoa em relação ao radical desconhecimento do Real, do "que não tem nome nem nunca terá", levando-a a inventar um futuro e a sustentar esta invenção.

Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/53/artigo174081-1.asp. Acesso em 19 dez 2012.