Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
8 de fevereiro de 2014
A comissão de senadores[1] constituída para examinar o
projeto de novo Código Penal acaba de entregar suas conclusões à presidência
daquela Casa. Dali, o texto seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça.
Trata-se da segunda versão do substitutivo apresentado pelo senador Pedro
Taques (PDT-MT) ao Projeto de Lei 236/2011, por sua vez originado de relatório
da comissão externa de juristas, presidida pelo ministro Gilson Dipp, do
Superior Tribunal de Justiça. Ao analisar esta segunda versão, a comissão de
senadores procedeu a significativas alterações, entre elas o expurgo de
qualquer referência à identidade de gênero ou orientação sexual em crimes como
o homicídio, as lesões corporais, tortura e o racismo.
Embora existam linhas de continuidade entre o documento
agora aprovado e o anteprojeto da comissão de juristas, as diferenças são
expressivas. Os senadores apreciaram cerca de 800 propostas de modificação que
vieram de seus colegas, de deputados federais, professores, acadêmicos,
estudantes e organizações da sociedade civil. Grupos organizados de pressão não
faltaram, notadamente os pró-criminalização do aborto — onde estavam vocês,
feministas? — e os defensores dos direitos dos animais.
A comissão de senadores organizou audiências públicas e
ouviu não apenas pessoas favoráveis ao anteprojeto, mas também críticos
acerbos, como Miguel Reale Junior e Juarez Cirino dos Santos. Aquela proposição
trazia contornos liberais em temas como drogas, aborto e a proteção da vida,
mas não foi surpresa constatar que teses conservadoras têm grande trânsito no
Brasil, mesmo na comunidade jurídica.
O texto que será agora examinado pela CCJ do Senado é
tecnicamente mais aprimorado do que o apresentado pela comissão externa, que
atuou premida por prazo escasso. Supre omissões — como as relativas aos crimes
de invasão de domicílio, remoção de órgãos e tecidos humanos e contra a
biossegurança — e corrige inconsistências — como a mantença da arcaica
definição de causalidade, atual artigo 13 do CP, ao lado da menção à criação ou
aumento do risco juridicamente relevante. Redesenha as regras sobre a
prescrição, aproximando-as do comum encontrado em legislações estrangeiras e
reorganiza os crimes de falso e contra a administração pública. Inovações
ousadas — como a barganha processual e a presunção de que o encontro de certa
quantidade de entorpecente faria presumir um usuário, não um traficante — foram
afastadas.
Houve a preocupação em tornar proporcionais as sanções
previstas, ora aumentando-as em relação ao anteprojeto — por exemplo, no
homicídio doloso, cujo mínimo era de seis e agora foi a oito anos de prisão —
ora diminuindo-as — como nos maus tratos contra animais, de um a quatro anos no
projeto 236/2011 e de um a três no substitutivo.
Diversas tipificações propostas pela comissão externa —
bullying, eutanásia, crimes de guerra, omissão de socorro contra animais — não
vingaram[2].
A despeito deste esforço, persistem aperfeiçoamentos a
fazer[3] — como reconheceram os senadores Eunício Oliveira, Pedro Taques e
Jorge Viana —, o que nem de longe empalidece a seriedade e qualidade do
trabalho efetuado. A comparação do substitutivo com o vetusto Código Penal
vigente — oriundo de períodos de exceção — e com o emaranhado de leis penais
hoje existentes no Brasil é muito favorável à proposição.
O substitutivo apresenta homogeneidade ideológica, ao
contrário do que se criticava no anteprojeto. Enquanto o texto da comissão de
juristas procurava conciliar medidas de defesa social com redução de penas e
novas causas extintivas da punibilidade, a norma in fieri direciona-se para o
incremento da guarda penal de diversos bens jurídicos. As penas do furto
simples eram de seis meses a três anos no anteprojeto e, no substitutivo, são
de um a quatro anos; a figura básica do roubo, de três a seis anos passou para
quatro a dez; a fração mínima para a progressão de regime naquele texto
originário era de um sexto da pena, para a nova proposição é de um quarto. A
extinção da punibilidade do furto, estelionato e apropriação indébita pela
reparação do dano, se aceita pela vítima, foi excluída, assim como a redução de
pena no roubo praticado sem violência real.
Daí não decorre, porém, que a codificação planejada não
tenha tido o cuidado de prever inovações relevantes para o respeito aos
direitos fundamentais, como dão notícia o artigo 41, parágrafo 4º — direito ao
recolhimento domiciliar, se não houver vaga no sistema semi-aberto — e o art.
49 — restrição às revistas íntimas dos visitantes, direito à cela individual e,
para o preso provisório, direito ao voto. A duração da medida de segurança teve
limites fixados, art. 95, e aos índios foram estendidas, presentes certas
condições, as regras do erro de proibição, art. 33. Manteve o sistema de
progressão de regime, favoreceu as penas alternativas e disciplinou de modo
interessante o regime aberto, com recolhimento domiciliar.
É certo que o substitutivo receberá a crítica de que
preconiza respostas ilusórias — por exemplo, o aumento das penas e do tempo
mínimo de seu cumprimento — para o severo problema da (in)segurança pública no
Brasil. Dirão também que, se aprovado, a situação dos nossos superlotados
presídios se agravará.
Seriam críticas imerecidas.
O espaço meramente legislativo para solução de dificuldades
complexas relacionadas à criminalidade é de hialina insuficiência. Leis devem
ser acompanhadas de medidas administrativas, sociais e educacionais, de acesso
a moradia e saúde, transporte e saneamento básico, entre outros, com qualidade
padrão... (como se chama mesmo, aquela entidade sediada na Suíça?). Nesse sentido,
vejam-se as recomendações do “Relatório de Desenvolvimento Humano Regional”,
divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD — em
2013[4].
Todavia, assim como leis mais gravosas não são a resposta,
leis menos gravosas também não se saíram bem. Fala-se muito que a Lei dos
Crimes Hediondos não diminuiu a criminalidade, olvidando-se de dizer que leis
como a dos crimes de menor potencial ofensivo (9.099/95) ou a que ampliou a
aplicação de penas alternativas (9.714/98) também não o fizeram. Não há vetores
nessa constatação de que normas jurídicas, por si sós, por melhores que sejam,
contribuem apenas um pouco para a solução de problemas sociais.
Quanto aos presídios, não há necessidade de código novo para
que sejam constatadas as inúmeras, seguidas e permanentes ofensas a direitos
fundamentais que eles têm propiciado. Cabe ao Poder Executivo dos estados e da
União construir estabelecimentos penais dignos e suficientes: não são
razoáveis, no particular, os contingenciamentos de recursos orçamentários.
Escrevemos, em outra sede[5], que esta é uma das grandes falhas de
infraestrutura do Brasil; é, certamente, a primeira da lista na indicação de
nosso estado civilizatório.
Por igual, nada justifica a inexistência de defensorias
públicas fortes, com meios suficientes para assegurar o acesso à Justiça e a
defesa dos direitos dos processados e condenados. Ainda: leis penais, rigorosas
ou não, jamais dispensam polícias treinadas e bem remuneradas, formadas numa
cultura de respeito às liberdades fundamentais e merecedoras da confiança da
população, um Ministério Público atuante e cioso de seu papel de acusador
constitucional, um Poder Judiciário acessível e eficiente, etc.
Outrossim, o problema dos presídios não pode ser
desvinculado da gravíssima situação da segurança pública em nosso país,
infelizmente um dos campeões mundiais em crimes dolosos contra a vida[6],
violências contra a mulher e roubos. O unilateralismo de concepções
deslegitimadoras da intervenção penal, se adotado pelo poder público, será
interpretado pela população simplesmente como mais uma omissão estatal. Não
convém descurar dos riscos de que uma sociedade desesperançada com a violência
busque fazer justiça com as próprias mãos. Infelizmente, existem exemplos
recentes.
O caminho do meio é o melhor caminho para a legislação penal
e o substitutivo o trilha. Procede a intensa descriminalização e reserva a pena
de prisão, em regime fechado e semi-aberto, apenas para a criminalidade de
elevado potencial ofensivo[7].
Nesta fase do processo legislativo cabe, sem embargo,
sugerir ao Poder Legislativo que não esmoreça na adaptação do Código Penal às
generosas previsões da Constituição de 1988. A mesma Constituição que lhe dá a
inatacável legitimidade para fazer as leis — inclusive e especialmente, as
penais — mostra-se vigorosa na defesa da igualdade entre as pessoas “sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”, art. 3º, IV.
Preocupa que todas as menções a identidade e orientação
sexual tenham sido retiradas do projeto[8]. Elas estavam ali, ladeadas por
idêntica tutela oferecida contra o preconceito em face da religião, da cor,
raça, procedência nacional ou regional de alguém.
Esclareça-se que a norma projetada não considera crime “a
livre manifestação do pensamento de natureza crítica, especialmente a
decorrente da liberdade de consciência e de crenças religiosas, salvo quando
inequívoca a intenção de discriminar ou de agir preconceituosamente”, art. 486,
parágrafo 3º. Vale dizer: os púlpitos permaneceriam livres, protegidos,
ademais, pelo art. 5º, VI, da Constituição[9]. Coisa muito diversa são condutas
que negam direitos, ferem, torturam ou matam pessoas simplesmente porque elas
se entendem e se comportam sexualmente de modo distinto do preferido por
outros, sem lesar ninguém. Há plena dignidade penal na previsão e no
agravamento das sanções, nesses casos.
Num Substitutivo que traz a elogiável previsão de crimes
contra a humanidade, que combate a exploração sexual e a pedofilia, o trabalho
em condições análogas a de escravo, o tráfico de seres humanos e o
desaparecimento forçado de pessoas, esta lacuna destoa do objetivo de oferecer
a máxima proteção aos direitos humanos.
________________________________________
[1] Ela foi composta pelos senadores Eunício Oliveira,
Presidente, Pedro Taques, Relator, Jorge Viana, Lídice da Mata, Ricardo
Ferraço, Benedito de Lira, Aloysio Nunes Ferreira, Cicero Lucena, Magno Malta,
Armando Monteiro, Eduardo Suplicy, José Pimentel, Ana Rita, Sérgio Souza, Vital
do Rego, Eduardo Amorim e Osvaldo Sobrinho.
[2] Entre elas o “molestamento de cetáceos”, corretamente
substituído pela vedação da pesca, art. 413. Sugere-se que o aumento de pena do
parágrafo 2º — morte do animal — deveria ser reservado apenas à pesca em larga
escala. O parágrafo 1ºdo art. 409 — promoção de confronto entre animais —
poderia ser extinto, redefinindo-se o aumento de pena do § 2º para alcançar
somente condutas habituais.
[3] De logo, além das mencionadas na nota anterior, podemos
sugerir: i) a revisão do artigo 62, que fala em parcelamento da multa em 36
meses, solução distinta da constante no artigo 64 (60 meses); ii) a exclusão do
parágrafo 4º do art. 38, que repete a regra do concurso de agentes, já
constante do artigo 35; iii) a inclusão no rol dos crimes hediondos, art. 51,
também do estupro e manipulação sexual de objetos contra vulneráveis; iv) os
parágrafos segundo, terceiro e quarto do art. 43, deveriam estar no artigo 41,
que fala na progressão de regime e não no 43, que cuida da regressão; v) a
importante conduta do empréstimo vedado, art. 376, recebia mais clara definição
no artigo 364 do anteprojeto e emula a dicção tortuosa do atual art. 17 da Lei
7.492/86; vi) a cláusula geral de aumento de penas do artigo 386 não condiz com
as novas sanções dadas aos crimes financeiros pelo Substitutivo: um sexto a um
terço seriam suficientes, em vez de metade até o dobro.
[4] As recomendações para a melhoria da segurança pública
são: “ 1. Alinhar os esforços nacionais para reduzir o crime e a violência,
incluindo um Acordo Nacional para a Segurança Pública como uma política de
Estado; 2. Gerar políticas públicas para proteger os mais afetados pela
violência e o crime; 3. Prevenir o crime e a violência ao promover o
crescimento inclusivo, equitativo e de qualidade 4. Diminuir a impunidade ao
fortalecer instituições de justiça com a adesão aos direitos humanos; 5.
Promover a participação ativa da sociedade, especialmente das comunidades
locais na construção da segurança cidadã; 6. Aumentar as oportunidades de
desenvolvimento humano para os jovens; 7. Atender e prevenir de maneira
integral a violência de gênero nos âmbitos doméstico-privado e público; 8.
Salvaguardar os direitos das vítimas; 9. Regular e reduzir fatores que
“desencadeiam o crime”, tais como álcool, drogas e armas, através de uma
perspectiva integral de saúde pública; e 10. Fortalecer os mecanismos de
coordenação e avaliação da cooperação internacional.” —
http://www.onu.org.br/a-inseguranca-freia-o-desenvolvimento-na-america-latina-diz-relatorio-do-pnud/.
[5] Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, ano 7, nº
25, jan/abril de 2013, Ed. Fórum, Belo Horizonte.
[6] “Relatório de Desenvolvimento Humano-Regional –
2013-214”, PNUD. A taxa no Brasil, no período de 2007/2011 foi de 21 homicídios
para cada cem mil pessoas. Só para comparar com países que exercem justa
influência nos estudos doutrinários penais brasileiros, a taxa de homicídios na
Alemanha e na Espanha é de 0,8 a cada cem mil habitantes. Em Portugal, 1,2.
[7] Diz o mesmo relatório do PNUD: “...a percepção dos
cidadãos latino-americanos de “prisão como uma solução para os problemas de
segurança” limita o progresso das reformas para reduzir a população carcerária,
das medidas alternativas e do incentivo à reinserção social...”.
[8] Especialmente porque se decidiu vincular a tramitação do
PLC 122 — crimes de homofobia — ao debate do novo Código Penal.
[9] “VI — é inviolável a liberdade de consciência e de
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Disponível em
http://www.conjur.com.br/2014-fev-08/luiz-goncalves-substitutivo-codigo-penal-abandona-protecao-opcao-sexual.
Acesso em 10 fev2014.