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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Ecce homo

Jorge Forbes

"Não se fazem mais homens como antigamente”, reclama a velha senhora na soleira de sua porta, ao ver chegar o amigo da sua neta, encostando o carro. Arrumado demais, combinado demais, manso demais, indeciso demais, enfim – ela não quer confessar, mas caraminhola baixinho – o moço lhe parece feminino demais.

A velha senhora tem alguma razão em observar que os homens, hoje, não são feitos da mesma maneira da qual ela estava habituada. Intuitivamente, ela nota – mesmo que não aceite – que a identidade humana é maleável, que muda conforme o tempo, abraçando o relevo da paisagem de sua época.

Estamos assistindo a uma mudança de um período no qual o laço social que era vertical, gerando estruturas piramidais – o que provocava o estabelecimento de relações hierárquicas e padronizadas – passa a uma nova situação, na qual as relações humanas são horizontais e múltiplas, em tudo, muito diferentes dos modelos estáveis anteriores. No que toca à identidade masculina, ela passou de uma inflexibilidade poderosa, coerente com a verticalidade disciplinar do mundo de ontem, para uma participação interativa flexível, exigência do tempo presente. Traduzindo em miúdos: um homem era visto, caricaturado e admirado como alguém forte e firme em suas decisões – sem frescuras, sem dúvidas, sem titubeios – inflexível em sua vontade pétrea, como se elogiava barrocamente. Agora, nesses novos tempos, mais importante que dar ordens é convencer e seduzir; melhor que ser sempre igual, é mostrar-se criativo, respondendo diferentemente, conforme o aspecto de cada situação.

Para as novas exigências, a carapaça do típico macho envelheceu, se despregou do seu corpo, caiu, e ele se vê tão perdido quanto cobra trocando de pele, ou siri que ficou nu e tem medo de ser catado. Reage atordoado procurando novas formas de ser e aparecer que lhe devolvam a segurança perdida; hipertrofia os traços machistas em academias fabricantes de abdomens tanquinhos, ao mesmo tempo em que vai perdendo a vergonha de confessar seu interesse no melhor creme, na cirurgia plástica, na mais atraente e chocante combinação de roupa.

Para as novas exigências, a carapaça do típico macho envelheceu, se despregou do seu corpo, caiu, e ele se vê tão perdido quanto cobra trocando de pele 

Pobres homens, a pós-modernidade não lhes é em nada tranquila. Enquanto as mulheres nadam de braçadas, pois o detalhe, a singularidade, o inusitado – características próprias à horizontalidade despadronizada – são a sua praia, os homens sofrem, se angustiam, por se verem sem a bússola do dever bem definido que lhes orientava tão corretamente e, tanto quanto aquela velha senhora, também desconfiam de sua própria sexualidade. Buscam os mais diversos consolos, alguns bem engraçados e paradoxais, como os grupos do Bolinha: confrarias das mais diversas, mais comuns as de vinho e as de comida, que, sob o manto disfarçador do refinamento do gosto, escondem a mais básica vontade de perguntarem uns para os outros como cada qual está se virando diante dessa verdadeira revolução. Isso, quando não contratam treinamentos supostamente disciplinadores e eficientes de tropas de elite, que tentam loucamente instalar em suas empresas, onde gostam de se travestir em generais incontestados, fazendo que os funcionários incomodados “peçam para sair”, tal como aprenderam naquele filme de sucesso.

Pouco a pouco, ficará claro para a maioria que a masculinidade não se baseia em nenhum grupo de iguais – sejam eles confrarias ou exércitos –, mas, tudo ao contrário, na possibilidade de suportar a expectativa da diferença, aquela representada pelo enigma de uma mulher frente a um homem. De nada vai lhe adiantar querer calá-la – ou calá-lo, o enigma – com alguma resposta pronta do gênero de bolsas ou perfumes de marcas supostamente exclusivas – mas em algo tão singelo, quão difícil: sabendo fazê-la rir, sonhar, se surpreender. Ecce Homo.

Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/62/artigo209144-1.asp. Acesso em 25 ago 2013.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Psicanálise do homem desbussolado

Jorge Forbes

Aforismo é uma sentença que em poucas palavras se compreende. Nesta coluna, proponho um formato diferente ao leitor como maneira provocativa de percebermos como estamos sendo confrontados a frases sintéticas. Proponho alguns aforismos sobre as mudanças necessárias a uma Psicanálise do Século XXI. Informações de relevância, porém concisas, o que obriga a cada um por de si, ao completá-las.

Freud teve a genialidade de propor uma estrutura capaz de esquadrinhar a experiência humana em um mundo pai-orientado: o complexo de Édipo. Um standard freuddiano, não um princípio.

Foi Jacques Lacan quem deu o alerta da necessidade de uma Psicanálise além do Édipo. Uma Psicanálise capaz de acolher um homem cujo problema não está mais nas amarras de seu passado - o que justificou a expressão "cura da memória" -, mas uma Psicanálise para o homem que não sabe o que fazer, nem escolher entre os vários futuros que lhe são possíveis hoje: sem pai, sem norte, sem bússola.

Tempo incompleto

Antes, as pessoas se queixavam por não conseguirem atingir os objetivos que perseguiam. Hoje, quase ao avesso, as pessoas se queixam pelas múltiplas possibilidades que se oferecem.

Se ontem se analisava para se compreender mais, para ir mais fundo, hoje se dirige o tratamento ao limite do saber, aonde surge a necessidade da aposta, na precipitação de um tempo sempre incompleto.

Se ontem se fazia análise para obter uma ação garantida, livre de influências fantasiosas, hoje, nenhuma ação é assegurada em um justo saber, toda ação é arriscada e inclui a responsabilidade do sujeito.

Se ontem os analistas se limitavam em sua práxis ao espaço do consultório, hoje haverá Psicanálise onde houver um analista, e ele é necessário nos mais diversos locais da experiência humana, muito além dos espaços de saúde.

HOJE, O QUE IMPORTA É RETIFICAR A POSIÇÃO DA PESSOA EM RELAÇÃO AO RADICAL DESCONHECIMENTO DO REAL

Quando a palavra não é mais necessária para intermediar o que se quer, para refletir sobre o que se teme, para inquirir o que se ignora; quando a palavra perde sua função de pacto social, ficamos suscetíveis ao curtocircuito do gozo. O gozo que prescinde da palavra é, em consequência, ilógico e desregrado.

Hoje estamos no momento do gozo ilógico e desregrado. Alguns exemplos dentre os mais notáveis são as toxicofilias, o fracasso escolar, a delinquência juvenil, as doenças psicossomáticas. Em cada um desses quadros podemos destacar a impotência da palavra dialogada para alterar o mal-estar da pessoa.

Gozo desregrado

Miremo-nos nos exemplos dos próprios adolescentes, os que mais sofrem os curtos-circuitos do gozo. Vejamos as soluções que eles encontram para ordenar este gozo caótico. O nome é: "esportes radicais". No ar: paraglider; na terra: alpinismo; no mar: kite-surf. Todos eles, no limite do dizível, tentativas de captura direta do gozo.

O fracasso escolar, a toxicomania, as bulimias, as anorexias, a violência despropositada têm em comum a impossibilidade de serem explicados. Suas causas não são decifráveis por via alguma: da Medicina, da Psicologia, da Pedagogia. Não explicáveis, não exclui que sejam tratáveis.

Lacan propôs duas clínicas: uma primeira, a da palavra decifrada, que levantando o recalque, alivia o sofrimento, e uma segunda, a clínica do gozo, onde a palavra serve para cifrar, para marcar, tal qual o soci do alpinista, a dura pedra do gozo a ser conquistado.

Os novos sintomas, por surgirem do curto circuito da palavra, são resistentes ao tratamento pela associação livre. De uma clínica do esclarecimento, vamos para a clínica da consequência.

Passado e futuro

A Psicanálise no tempo de Freud visava descobrir os impasses, os traumas que impediam uma pessoa de alcançar o futuro que idealizava. O futuro era claro, difícil era seu acesso. A Psicanálise no século XXI não é um tratamento do passado, mas, ao contrário, é invenção de um futuro.

Freud escreveu três famosos textos sobre a organização social: Totem e Tabu, Futuro de uma Ilusão e Mal estar na Civilização. É nossa tarefa, hoje, reinterpretar essa sociedade, não mais à luz do Complexo de Édipo, mas à luz de um novo amor além do pai, o que exigirá falarmos da responsabilidade de cada um ante sua escolha.

Se antes, o objetivo de uma análise, com Freud, era o de se conhecer melhor, hoje, com Lacan, o que importa é retificar a posição da pessoa em relação ao radical desconhecimento do Real, do "que não tem nome nem nunca terá", levando-a a inventar um futuro e a sustentar esta invenção.

Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/53/artigo174081-1.asp. Acesso em 19 dez 2012.