Marcelo Pinto
1º de abril de 2014
A identificação sexual é um estado mental que preexiste à
forma física, logo, condicionar a mudança de sexo no registro civil a uma
cirurgia seria limitar a liberdade desejada pela transexual a uma lógica formal
que inviabiliza sua realização como ser humano. Com base nesse entendimento,
por unanimidade, a 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
reformou sentença para dar provimento a recurso de uma transexual, que pede
para mudar seu nome civil e adotar a menção ao sexo feminino.
Ao ajuizar ação de retificação de registro civil, a
transexual argumentou que, por já viver travestida de mulher, sente-se
constrangida sempre que é identificada em público pelo nome de registro ou
precisa apresentar seus documentos pessoais com nome e sexo masculinos. Diz não
ter interesse em submeter-se a cirurgia de transgenitalização, pelos riscos do
procedimento. Realiza acompanhamento psiquiátrico desde 2007, e foi
diagnosticada como portadora de transtorno de identidade. Na sua petição
inicial, pondera que condicionar o direito à identidade de gênero à cirurgia de
mudança de sexo viola a dignidade da pessoa humana.
O juízo de primeiro grau, no entanto, indeferiu o pedido e
julgou extinto o processo sem exame de mérito. A manifestação do Ministério
Público seguiu o mesmo entendimento, alegando “carência da ação”, na forma do
artigo 267, inciso VI do Código de Processo Civil.
Em sua Apelação, a transexual alega que não há qualquer
vedação do ordenamento jurídico a sua pretensão. Ao contrário, está amparada
nos princípios fundamentais da valorização da cidadania e da dignidade da
pessoa humana (artigo 1°, incisos II e III da Constituição brasileira), assim
como no direito à saúde, física e psíquica, inviolabilidade da intimidade, da
vida privada, da honra e imagem das pessoas.
A transexual pondera que o uso do nome tem grande
importância social e individual. Dessa forma, a retificação do registro civil
visando adequar sua identificação a sua verdadeira identidade de gênero
influirá de forma decisiva na efetivação de sua cidadania e dignidade, coibindo
situações vexatórias que o submetam ao ridículo. Cita a Lei de Registro Público
(Lei 6.015/73), que em seu artigo 58 estabelece, entre as exceções à
imutabilidade do prenome, a possibilidade de expor seus portadores ao ridículo.
Ao acolher o recurso, o desembargador-relator Edson Aguiar
de Vasconcelos afirma que o mesmo artigo 58 da Lei 6.015/73, que admite a
substituição do prenome por “apelidos públicos e notórios” para proteger o
indivíduo contra humilhações, constrangimentos e discriminações, deve
possibilitar a troca de prenome aos transexuais.
“A alteração de nome corresponde a mudança de gênero”,
pontua Vasconcelos. Segundo ele, não permitir a mudança de sexo no registro
civil com base em condicionante “meramente cirúrgica” equivale a “prender nas
amarras de uma lógica formal a liberdade que clama o transexual de ser e de
realizar-se como ser humano”. Citando o poeta grego Píndaro, afirma que negar
tal direito seria uma resistência ao convite ético “torna-te o que já és,
aprendendo com a experiência da vida”.
Em seu voto, Vasconcelos cita, ainda, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4.275, em trâmite no Supremo Tribunal Federal. A ADIN
defende que o artigo 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registro Público) seja
interpretado conforme a Constituição, a fim de reconhecer o direito dos
transexuais à substituição de prenome e sexo no registro civil,
independentemente da cirurgia de transgenitalização. “Esta ação sustenta a tese
da existência do direito fundamental à identidade de gênero, inferido dos
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso
III), da igualdade (artigo 5º, caput), da vedação de discriminações odiosas
(artigo 3º, inciso IV), da liberdade (artigo 5º caput), e da privacidade
(artigo 5º, X)”, informa.
Já o desembargador Wagner Cinelli, em sua declaração de
voto, acrescenta outra reflexão: a de que não se pode confundir genitália com
sexo. Segundo ele, a primeira pode ser classificada pelas ciências médicas e
biológicas, enquanto o segundo comporta juízo subjetivo interno da pessoa.
“Aliás, um homem que, vítima de acidente, tivesse sua genitália extirpada não
se tornaria, por isso, do sexo feminino”, argumenta.
Declaração de voto de Wagner Cinelli:
http://s.conjur.com.br/dl/declaracao-voto-desembargador-wagner.pdf
O acórdão:
http://s.conjur.com.br/dl/alteracao-nome-nao-condicionada-mudanca.pdf
A declaração de voto:
http://s.conjur.com.br/dl/declaracao-voto-desembargador-wagner.pdf
Disponível em
http://www.conjur.com.br/2014-abr-01/alteracao-nome-nao-condicionada-mudanca-sexo-decide-tj-rj.
Acesso em 03 abr 2014.