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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Diferenças cerebrais entre homens e mulheres justificam habilidades e comportamentos distintos?

Joel Rennó Junior
07.janeiro.2014

Do ponto de vista médico, há estruturas cerebrais com morfologia e funcionalidade diferentes entre o SNC (Sistema Nervoso Central) do homem e da mulher. Em parte, os comportamentos, atitudes, pensamentos, habilidades e sentimentos femininos podem ser distintos aos dos homens por tais diferenças anatômicas e funcionais entre os cérebros deles. Esse é o papel das neurociências na atualidade, apontar tais diferenças, a fim de que haja intervenções terapêuticas distintas e até medidas preventivas.

“Neurocientistas e a sociedade têm que ter muito cuidado ao fazerem as interpretações de tais diferenças, sem reducionismos perigosos. Pode haver uma distorção ao fazer reforços de preconceitos existentes contra a mulher, justificando certas habilidades diferenciadas como um sinônimo de inferioridade”       

Por que essa diferença entre o cérebro do homem e da mulher?
Sabemos que grande parte dessas diferenças decorre da exposição diferenciada do cérebro feminino ao hormônio estrogênio, já no intraútero, na gestação. O cérebro feminino vai se moldando e se desenvolvendo de uma forma distinta ao masculino já no intraútero.

Imagens da ressonância magnética funcional realizadas por neurocientistas apontam, entre inúmeras outras diferenças (poderíamos citar dezenas delas encontradas na última década):

1. O cérebro das mulheres é aproximadamente 10% menor que o dos homens, porém, possui maior número de conexões entre as células nervosas. O corpo caloso que faz a comunicação entre os hemisférios cerebrais direito e esquerdo costuma ser mais desenvolvido nas mulheres. Isso leva a uma melhor integração de diferentes estímulos entre os dois lados do cérebro feminino. Geralmente, as mulheres fazem várias tarefas simultâneas como cozinhar, ler, cuidar da casa e dos filhos de forma mais eficiente que os homens.

2. O cérebro esquerdo é bem mais desenvolvido entre as mulheres;

3. O cérebro direito mais desenvolvido entre os homens – contrariamente ao que pensa o grande público – sabe-se ser o hemisfério esquerdo denominado “científico”, analítico, racional, verbal, temporal, enquanto o hemisfério direito é dito “artístico”, sintético, emocional, não verbal e espacial, isso sob a influência direta dos hormônios sexuais (testosterona e outros).

4. A mulher está mais sujeita a sentir depressão do que o homem e, quanto a isso, existe uma relação direta com a baixa produção da substância química cerebral, a serotonina, no cérebro feminino. As oscilações dos níveis de estrogênio em períodos críticos do ciclo reprodutivo feminino como o pré-menstrual, o pós-parto e a perimenopausa (período que se inicia cerca de 5 anos antes da menopausa e vai até um ano após) são “gatilhos” para a depressão feminina mais frequente, cerca de duas vezes.

5. O cérebro masculino é voltado para a compreensão, enquanto o feminino é programado para a empatia (cuidado com a interpretação).

6. As imagens mostraram que o lobo parietal inferior, área envolvida em atividades matemáticas, é maior no cérebro deles. Portanto, os homens costumam ser melhores em tarefas matemáticas, enquanto as mulheres se saem melhor em atividades verbais (cuidado com a interpretação!).

7. As mulheres são mais emotivas e expressam com mais facilidade seus sentimentos do que os homens, porque o sistema límbico delas é mais desenvolvido do que o deles (cuidado com a interpretação!).

Interpretação entre diferenças de gênero deve evitar reducionismo perigoso

Os neurocientistas e a sociedade têm que ter muito cuidado ao fazerem as interpretações de tais diferenças, sem reducionismos perigosos. Pode haver uma distorção ao fazer reforços de preconceitos existentes contra a mulher, justificando certas habilidades diferenciadas como um sinônimo de inferioridade.

Lembro-me do discurso infeliz de um antigo reitor da Universidade de Harvard, nos EUA, destacando que as mulheres não seriam tão eficientes e brilhantes no campo das Ciências Exatas. Isso não faz tanto tempo assim, é relativamente recente. No passado, até foram publicados artigos sobre tais diferenças em revistas científicas consagradas como Science and Nature, amplificando e reforçando a suposta inferioridade feminina. Por coincidência, muitos dos cientistas da época eram homens.

Nunca podemos também deixar de levar em consideração o ambiente e a cultura em que o homem e a mulher estão inseridos. Na minha prática clínica, conheço homens sensíveis, afetuosos, que se saem melhor em atividades verbais do que matemáticas ou lógicas. Por outro lado, conheço mulheres que são pesquisadoras brilhantes, exímias matemáticas e com afeto raso e pouco contato verbal.

Biologia e genética não determinam tudo sobre comportamento e habilidades humanas

A biologia e a genética, embora relevantes, não são os únicos determinantes do comportamento e habilidades humanas. Por isso, pessoalmente, eu detesto piadas ou jocosidades a respeito de tais diferenças porque, no fundo, há uma expressão (até inconsciente) de nossos preconceitos e projeções. Isso, é claro, pode ser oriundo tanto dos homens quanto das mulheres. Já ouvi mulheres afirmando “acho aquele cara esquisito, sensível e romântico, pouco decidido e muito delicado”.

Ouvi também comentários de homens do tipo “aquela ali é uma empresária agressiva, racional e mal amada”. Ambos comentários trazem no seu bojo a mensagem que a neurociência jamais quer que tais diferenças se transformem em julgamentos ou justificativas estigmatizadoras dos gêneros, sejam masculinos ou femininos. Até porque alguns cientistas afirmam que cerca de 20% dos homens têm cérebros “femininos” e até 10% das mulheres têm cérebro “masculinizados”.

No próprio campo da sexualidade humana, observamos mudanças do comportamento sexual da mulher, mais arrojada, determinada, exigente e erotizada. Apesar de alguns determinantes biológicos, isso ilustra o quanto o ambiente e as forças sociais podem interferir. O objetivo deve ser sempre o de aprimorar as competências tanto dos homens quanto das mulheres, nunca aprofundar abismos pré-existentes.

Muitos me perguntam por que as mulheres criam discussões em casa, o que elas têm, com relação ao gênero feminino, que contribui para os conflitos de casal. Não vejo que os conflitos entre os casais sejam decorrentes de questões intrínsecas do gênero como as pessoas costumam apregoar – pelo menos na maior parte dos contextos. O principal fator realmente costuma ser a expectativa que se projeta na figura do outro, geralmente, sempre superdimensionada no início de muitos relacionamentos. A fase de encantamento acaba terminando e daí vem a frustração.

Alguns indivíduos, independentemente de serem homens ou mulheres, costumam projetar no outro verdades ou conceitos baseados em seus próprios valores. A figura idealizada de qualquer pessoa sempre acaba gerando consequências negativas. Ninguém, por melhor que seja, vai ser capaz de sustentar aspectos arquetípicos de um grande herói, infalível em sua essência. Por melhor que sejamos, nossa natureza humana pode se tornar frágil em algum momento.

Entre as questões que costumam gerar mais conflitos entre homens e mulheres, incluem-se a traição, o sentimento de rejeição de um ou de outro, a educação e os valores ensinados aos filhos, religião ou crença, brigas entre as famílias, dependência econômica e sexo. Não acredito ser possível classificar as mais típicas de um gênero ou de outro, tudo vai depender da dinâmica do casal e da própria família adotada em sua convivência diária, na capacidade individual de cada um poder crescer e se transformar.

Na sociedade atual, não vejo questões tão específicas ou típicas de um sexo em relação ao outro, há padrões mutáveis e imprevisíveis, devido aos múltiplos papéis envolvidos.


Disponível em http://blogs.estadao.com.br/mentes-femininas/. Acesso em 10 fev 2014.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Lesma-do-mar com órgão sexual 'descartável' surpreende cientistas

Rebecca Morelle
13 de fevereiro, 2013

Pesquisadores japoneses vinham observando os hábitos de acasalamento inusitados da espécie Chromodoris reticulata, encontrada no Oceano Pacífico, há algum tempo.

Agora, publicaram um estudo sobre o tema na Biology Letters, da Royal Society, relatando o registro pela primeira vez uma criatura que pode copular repetidas vezes com o que foi descrito com um "pênis descartável".

Acredita-se que quase todas as lesmas-do-mar (também conhecidas como nudibrânquios) sejam "hermafroditas simultâneos".

Isso significa que os animais têm tanto órgãos sexuais masculinos quanto femininos e podem usá-los ao mesmo tempo.

Conforme explica Bernard Picton, especialista em invertebrados marinhos do Museu Nacional da Irlanda do Norte, em geral os órgãos sexuais ficam do lado direito do corpo das lesmas e durante a cópula os dois animais se unem por esse lado, fecundando-se simultaneamente.

Observações

A equipe japonesa observou lesmas-do-mar coletadas em recifes de coral rasos no Japão, analisando 31 cópulas.

Segundo seus registros, logo após o acasalamento, as criaturas se desfaziam de seus órgãos sexuais masculinos, deixando-os no fundo do tanque de observações.

Em apenas 24 horas, porém, as lesmas já tinham se regenerado e estavam prontas para acasalar mais uma vez com "novos" órgãos sexuais.

Um exame mais detalhado da anatomia dos animais revelou que as lesmas-do-mar tinham parte do seu "pênis" enrolado em uma espiral dentro do corpo, o que permitia a regeneração rápida do órgão.

Os animais foram capazes de copular três vezes seguidas, com intervalos de 24 horas entre cada uma delas.

Os cientistas não deixaram claro se, após o uso dessa "reserva interna", o animal deixa de se reproduzir para sempre ou se ele é capaz de regenerar a "reserva" em algumas semanas ou meses.

Outros animais já foram observados "desfazendo-se" de seus órgãos sexuais após a cópula, entre eles uma espécie de aranha e uma lesma terrestre (Ariolimax).

A lesma Chromodoris reticulata, porém, parece ser a única criatura capaz de regenerá-los para usá-los novamente.

Para os cientistas, essa capacidade daria ao animal uma vantagem sexual - aumentando as chances de cada lesma possa passar seus genes adiante. "Esses animais têm uma biologia muito complicada", diz Picton.


Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/02/130213_lesma_do_mar_ru.shtml. Acesso em 23 nov 2013

domingo, 3 de novembro de 2013

O que alimenta o preconceito contra transexuais?

Natasha Romanzoti
em 9.10.2011

O tema “transexual” é com certeza um dos assuntos mais polêmicos na sociedade, que provoca fortes reações emocionais. Muitas vezes, essas reações têm tons predominantemente negativos, o que levanta a questão sobre a raiz da hostilidade quanto a esse tópico.

Segundo uma acadêmica que estuda atitudes e comportamentos sociais, o desconforto em relação às pessoas transexuais vem de convenções desafiadoras.

Diane Everett, professora de sociologia, diz que na cultura americana, sexo e gênero pertencem a uma de duas categorias. Assim que os seres humanos nascem, a primeira coisa que as pessoas perguntam é se o bebê é um menino ou menina.

“Temos a tendência, como sociedade, de colocar as pessoas em caixas”, disse ela. “Um transexual não só atravessa as fronteiras de gênero, mas também as desafia. Se as pessoas não veem você como ‘ou isso ou aquilo’, elas têm dificuldade em se relacionar com você em seu nível de conforto”, explica.

Depois, há pessoas que por razões religiosas acreditam que os transexuais são fundamentalmente “errados”, que Deus criou o homem e a mulher e, automaticamente, o homem é macho, a mulher é fêmea, e eles não devem cruzar essas linhas.

As questões geralmente acabam em um debate sobre qual banheiro as pessoas transexuais deveriam usar. Isso é um símbolo de toda a controvérsia, porque tem a ver com gênero, sexualidade e nível de conforto.

O desconforto decorre da visão de que uma pessoa é do sexo feminino ou masculino. Mudar o sexo com que você nasce é “basicamente automutilação”, disse Regina Griggs, diretora do grupo Parentes e Amigos de Ex-Gays & Gays. “É uma cirurgia que altera quem você realmente é do ponto de vista biológico”.

Segundo Regina, pessoas com transtorno de identidade de gênero merecem ajuda médica e psiquiátrica adequada. Transtorno de identidade de gênero é listado como doença no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, a “bíblia” da psiquiatria.

Pessoas transexuais desafiam as ideias arraigadas na sociedade sobre gênero e sexo. As pessoas são ensinadas que meninos são meninos, meninas são meninas e meninos casam com meninas.

“Todas essas coisas são verdadeiras para a maioria das pessoas”, disse Mara Kiesling, diretora do Centro Nacional para a Igualdade Transexual. “É verdade que a maioria das pessoas é do sexo masculino ou feminino e isso é imutável para a maioria das pessoas. O que estamos aprendendo agora é que nenhuma dessas coisas é totalmente imutável”, explica.

Pessoas transexuais enfrentam um estresse de minoria, o que significa que elas se sentem indesejadas como uma minoria excluída. Elas também enfrentam o estigma, às vezes de suas próprias famílias, além de discriminação no trabalho e bullying.

A hostilidade pode vir, por vezes, de forma surpreendente. Uma mulher transexual, Amber Yust, que mudou seu nome de David, foi ao Departamento de Veículos Motorizados em San Francisco, EUA, para atualizar sua licença. Ela recebeu uma carta de um dos funcionários, acusando Yust de agir de uma maneira que é “uma abominação que leva para o inferno”. O empregado foi identificado e, posteriormente, se demitiu.

Ainda assim, nos dias de hoje, muitas manifestações contra transexuais são tornadas públicas e adquirem tamanha repercussão que oprimem ainda mais essas pessoas. O fim dessa discussão, no entanto, está muito longe – a mudança de pensamento vai demorar a chegar, tendo em vista o tamanho dos conceitos que precisam ser revisados para tanto.


Disponível em http://hypescience.com/o-que-alimenta-o-preconceito-contra-transexuais/. Acesso em03 nov 2013.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Documentário conta drama de gêmeo criado como menina após perder pênis

BBC BRASIL
24/11/2010 - 07h59

Os gêmeos Bruce e Brian Reimer nasceram como meninos perfeitos, mas após sete meses, começaram a apresentar dificuldades para urinar.

Sob orientação médica, os pais, Janet e Ron, levaram os dois a um hospital para serem circuncidados.

Na manhã seguinte, eles receberam uma ligação telefônica devastadora -- Bruce tinha sido envolvido em um acidente.

Os médicos usaram uma agulha cauterizadora em vez de um bisturi. O equipamento elétrico apresentou problemas, e a elevação súbita da corrente elétrica queimou completamente o pênis de Bruce.

A operação de Brian foi cancelada, e o casal levou os gêmeos de volta para casa.

Psicólogo

Vários meses se passaram, e eles não tinham ideia do que fazer até que um dia encontraram um homem que mudaria suas vidas e as vidas de seus filhos para sempre.

John Money era um psicólogo especializado em mudança de sexo. Ele acreditava que não era tanto a biologia que determinava se somos homens ou mulheres, mas a maneira como somos criados.

"Estávamos assistindo a TV", lembra Janet. "O doutor Money estava lá, muito carismático, e parecia muito inteligente e muito confiante no que estava falando."

Janet escreveu para Money, e poucas semanas depois ela levou Bruce para vê-lo em Baltimore, nos Estados Unidos.

Para o psicólogo, o caso representava uma experiência ideal. Ali estava uma criança a qual ele acreditava que poderia ser criada como sendo do sexo oposto e que trazia até mesmo seu grupo de controle com ele -- um gêmeo idêntico.

Se funcionasse, a experiência daria uma evidência irrefutável de que a criação pode se sobrepor à biologia, e Money genuinamente acreditava que Bruce tinha uma chance melhor de levar uma vida feliz como mulher do que como um homem sem pênis.

Então, quando Bruce tinha 17 meses de idade, se transformou em Brenda. Quatro meses depois, no dia 3 de julho de 1967, o primeiro passo cirúrgico para a mudança foi tomado, com a castração.

Segredo

Money enfatizou que, se quisessem garantir que a mudança de sexo funcionasse, os pais nunca deveriam contar a Brenda ou ao seu irmão gêmeo que ela havia nascido como menino.

A partir de então, eles passaram a ter uma filha, e todos os anos eles visitavam Money para acompanhar o progresso dos gêmeos, no que se tornou conhecido como o "caso John/Joan". A identidade de Brenda foi mantida em segredo.

"A mãe afirmou que sua filha era muito mais arrumada do que seu irmão e, em contraste com ele, não gostava de ficar suja", registrou Money em uma das primeiras consultas.

Mas em contraste, ele também observou: "A menina tinha muitos traços de menina moleque, como uma energia física abundante, um alto nível de atividade, teimosia e era frequentemente a figura dominante num grupo de meninas".

Em 1975, as crianças tinham 9 anos, e Money publicou um artigo detalhando suas observações. A experiência, segundo ele, tinha sido um sucesso total.

"Ninguém mais sabe que ela é a criança cujo caso eles leram nos noticiários na época do acidente", afirmou.

"O comportamento dela é tão normalmente o de uma garotinha ativa e tão claramente diferente, por comparação, do comportamento de menino de seu irmão gêmeo, que não dá margem para as conjecturas de outros."

Suicida

No entanto, na época em que Brenda chegou à puberdade, aos 13 anos, ela sentia impulsos suicidas.

"Eu podia ver que Brenda não era feliz como menina", lembrou Janet. "Ela era muito rebelde. Ela era muito masculina e eu não conseguia convencê-la a fazer nada feminino. Brenda quase não tinha amigos enquanto crescia. Todos a ridicularizavam, a chamavam de mulher das cavernas. Ela era uma garota muito solitária."

Ao observar a tristeza da filha, os pais de Brenda pararam com as consultas com John Money. Logo depois, eles fizeram algo que Money tinha pedido para que não fizessem: contaram a ela que Brenda tinha nascido como um menino.

Semanas depois, Brenda escolheu se transformar em David. Ele passou por uma cirurgia de reconstrução do pênis e até se casou. Ele não podia ter filhos, mas adorou ser o padrasto dos três filhos de sua esposa.

Mas, o que David não sabia, era que seu caso tinha sido imortalizado como "John/Joan", em artigos médicos e acadêmicos a respeito de mudança de sexo e que o "sucesso" da teoria de Money estava afetando outros pacientes com problemas semelhantes aos deles.

"Ele não tinha como saber que seu caso tinha ido parar em uma ampla série de livros de teoria médica e psicológica e que estava estabelecendo os protocolos sobre como tratar hermafroditas e pessoas que tinham perdido o pênis", disse John Colapinto, um jornalista do "The New York Times", que descobriu a história de David.

"Ele mal conseguia acreditar que (sua história) estava sendo divulgada por aí como um caso bem sucedido e que estava afetando outras pessoas como ele."

Depressão

Quando passou dos 30 anos, David entrou em depressão. Ele perdeu o emprego e se separou da esposa.

Na primavera de 2002 seu irmão morreu devido a uma overdose de drogas.

Dois anos depois, no dia 4 de maio de 2004, quando David estava com 38 anos, os pais, Janet e Ron Reimer, receberam uma visita da polícia que os informou que seu filho tinha cometido suicídio.

"Eles pediram que nos sentássemos e falaram que tinham notícias ruins, que David estava morto. Eu apenas chorei", conta Janet.

Casos como o "John/Joan", quando ocorre um acidente, são muito raros. Mas decisões ainda estão sendo tomadas sobre como criar uma criança, como menino ou menina, se ela sofre do que atualmente é conhecido como Distúrbio do Desenvolvimento Sexual.

"Agora temos equipes multidisciplinares, que funcionam bem, em todo o país, então a decisão será tomada por uma ampla série de profissionais", explicou Polly Carmichael, do Hospital Great Ormond Street, de Londres.

"Os pais ficarão muito mais envolvidos em termos do processo da tomada de decisão", acrescentou.

Carmichael afirma que, segundo sua experiência, estas decisões tem sido mais bem sucedidas para ajudar as crianças a levar uma vida feliz quando crescerem.

"Fico constantemente surpresa como, com apoio, estas crianças são capazes de enfrentar e lidar (com o problema)", disse.


Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/bbc/835267-documentario-conta-drama-de-gemeo-criado-como-menina-apos-perder-penis.shtml>. Acesso em 24 nov 2010.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Chinês idoso descobre em check-up que é biologicamente uma mulher

EFE
04/06/2013

Um chinês de 66 anos que chegou aflito ao hospital Queen Elizabeth, em Hong Kong, por causa de um inchaço no abdômen recebeu uma impactante notícia: ao passar por um check-up, o diagnóstico apontou que se tratava de um cisto no ovário, já que, biologicamente, ele é uma mulher.

Segundo publicou nesta terça-feira (4) o jornal local "South China Morning Post" (SCMP), a confusão se deve a uma condição muito rara que combina dois distúrbios genéticos: a síndrome de Turner e a hiperplasia congênita adrenal (CAH).

A síndrome de Turner leva mulheres a apresentar algumas deficiências, como perda da capacidade de engravidar, e, embora os portadores costumem ter aspecto feminino, nesse caso específico o paciente também sofria de CAH, que provoca um aumento dos hormônios masculinos e gera uma aparência masculina.

Com barba e um pequeno pênis sem testículos, o chinês – que é órfão e nasceu no Vietnã – havia considerado durante toda a vida ser um homem, destaca a revista científica "Hong Kong Medical Journal".

"É um caso muito interessante e raro de duas síndromes combinadas. É provável que não surja outro semelhante em um futuro próximo",contou à publicação o professor em pediatria Ellis Hon Kam-lun.

Após descobrir sua condição no hospital, o paciente, que prefere manter o anonimato, decidiu continuar sua vida como homem e começar um tratamento com hormônios masculinos.

Apenas outros seis casos como esse foram registrados na história médica mundial, mas os diagnósticos foram fornecidos antes dos 66 anos.

Em todo o mundo, a síndrome de Turner tem uma prevalência estimada de uma a cada 2.500 ou 3 mil mulheres, e implica ter só um cromossomo X, em vez dois, que é o normal. O diagnóstico costuma ser possível inclusive em exames pré-natais, mas a combinação dessa síndrome com a CAH levou o homem a desconhecer seu gênero biológico até uma idade inédita na literatura médica.

Disponível em http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/06/chines-idoso-descobre-em-check-que-e-biologicamente-uma-mulher.html. Acesso em 15 ago 2013.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Bases biológicas da orientação sexual e da identidade de gênero

Daniel Pessoa
10 outubro, 2009

Homens e mulheres revelam padrões de diferenças comportamentais e cognitivas que refletem as diversas influências hormonais no desenvolvimento do cérebro.

Alguns estudos têm apontado para a importância do hipotálamo como área do cérebro responsável pela regulação do comportamento reprodutivo. Tem se mostrado que o hipotálamo de ratos machos é maior que o de ratos fêmeas, estando esta diferença sob controle hormonal. Estas diferenças também têm sido identificadas no hipotálamo humano, e estariam relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero. Aparentemente, transexuais masculino-femininos apresentam hipotálamos menores que os de indivíduos masculinos.

Em ratos, a privação de hormônios masculinos, através da castração ou bloqueio hormonal, imediatamente após o nascimento, leva a uma redução nos comportamentos sexuais masculinos (montar durante a cópula) e a um aumento nos comportamentos sexuais femininos (lordose – arqueamento das costas durante o coito). A administração de hormônios masculinos a ratos fêmea levam a um resultado similar, com aumento de monta e diminuição de lordose.

Isto também parece ocorrer em seres humanos. A análise do comportamento lúdico de meninas com HCA (hiperplasia das adrenais), em comparação com seus irmãos e irmãs, mostrou uma “masculinização” de seus comportamentos. A HCA faz com que grandes quantidades de hormônios masculinos sejam produzidas.

No passado, a ciência já serviu como pretexto para deflagração de preconceitos e conceitos distorcidos. A ciência não é perfeita, afinal é realizada por seres humanos. Vamos torcer para que os cientistas não se esqueçam do passado e que a ética prevaleça em suas pesquisas e interpretações.


Disponível em http://pessoadma.wordpress.com/2009/10/10/bases-biologicas-da-orientacao-sexual-e-da-identidade-de-genero/. Acesso em 11 ago 2013.

domingo, 11 de agosto de 2013

Cérebro e genes dos transexuais

J Francisco Saraiva de Sousa
19 de Março de 2008

A maioria dos indivíduos, sejam homossexuais, heterossexuais ou bissexuais, identificam-se como macho ou fêmea em concordância com o seu sexo anatómico. Este facto levou os teóricos da aprendizagem a pensar que a identidade sexual resulta da experiência de toda a vida de possuir órgãos sexuais femininos ou masculinos, reforçada pela educação e pela pressão social dos pais, dos irmãos e/ou irmãs e da sociedade em geral. Contudo, existem indícios da existência de uma representação do próprio sexo no cérebro, cujo desenvolvimento é, pelo menos parcialmente, independente das experiências da vida (Zhou et al., 1995, 1997). A prova disto advém do estudo do transexualismo e de outras síndromes (Wilson, 1999).

Os transexuais são indivíduos que acreditam que, na realidade, pertencem ao sexo oposto daquele que é indicado pelos seus órgãos genitais (G. Ramsey, 1998). Apesar da diversidade de transexualidades (R. Blanchard, 1985), existe um grupo central de transexuais que se caracteriza por um conjunto de características coerente. Durante a infância, os membros deste grupo apresentam um elevado grau de discordância sexual. Na idade adulta, as suas personalidades, avaliadas por toda uma variedade de testes psicológicos, apresentam um elevado grau de atipicidade sexual. Um homem transexual que pertença a este grupo central sente aversão pelo seu próprio pénis e especialmente pelo seu uso em actividades sexuais. Ele deseja viver e ser tratado como uma mulher. É sexualmente atraído por homens heterossexuais.

Procura, e frequentemente submete-se, a tratamentos hormonais e a cirurgia de reconstrução ou mudança de sexo para alterar o seu corpo, tornando-o tão feminino quanto possível. Não apresenta sinais de perturbações psicológicas generalizadas. Uma mulher transexual que pertença a este grupo central apresentará as características reversas, tal como se se tratasse de uma imagem num espelho.

Para além deste grupo central, que constitui uma fracção substancial da totalidade das pessoas que requerem cirurgia de mudança de sexo, existem outros homens e mulheres transexuais que não apresentam todas estas características. Alguns obtêm prazer sexual do uso dos seus próprios órgãos sexuais. Alguns são sexualmente atraídos por indivíduos do sexo oposto. Alguns aparentam mesmo sinais de perturbação psicológica. Outros parecem situar-se numa posição intermédia entre transexual e homossexual ou travesti. Dadas estas diferenças entre transexuais, convém distinguir diversos tipos de transexuais.

A investigação biológica de características biológicas definidoras nos homens e nas mulheres transexuais tem revelado que determinados marcadores endocrinológicos, como o nível de testosterona nas mulheres transexuais (transexuais fêmea para macho) e a resposta atípica de hormona luteinizante ao estrogénio nos homens transexuais (transexuais macho para fêmea), bem como outros indicadores (Goh, 1999; Giltay et al., 1998; Elbers et al., 1997; Elbers et al., 1999; Giltay & Gooren, 2000; Kruijver et al., 2001; D. Slabbekoorn et al., 2000; Elbers et al., 1997), são sexualmente atípicos e dimórficos. Contudo, a descoberta de um núcleo sexualmente dimórfico (Zhou et al., 1995, 1997; Kruijver et al., 2000) forneceu a prova da existência de uma componente genética da transexualidade e o estudo das características dermatóglifas suporta o conceito da influência dos efeitos organizacionais das hormonas sexuais (D. Slabbekoorn et al., 2000).

Os transexuais têm fortes sentimentos, geralmente desde a infância até à idade adulta, de terem nascido com o sexo errado (Docter & Fleming, 2001; Wolfradt & K. Neumann, 2001). A possível etiologia psicogénica ou biológica da transexualidade tem sido objecto de debate durante muitos anos (Money & Gaskin, 1970-71; Gooren, 1990). Richard Green (2000) estudou uma amostra de 442 transexuais macho para fêmea, subdividida pela preferência de parceiro sexual (106 homossexuais, 135 heterossexuais e 46 assexuais) e verificou que o grupo dos homossexuais tinha um maior número de irmãos mais velhos do que os restantes grupos: cada irmão mais velho incrementava a orientação homossexual em 40%.

Mas o estudo mais importante é o que revela um núcleo sexualmente dimórfico. Zhou, Hofman, Gooren & Swaab (1995/97) mostraram que o volume da subdivisão central donúcleo do leito da stria terminalis (BSTc), uma área do cérebro que é essencial para o comportamento sexual (Kawakami & Samp; Kimura, 1974; Emery & Sachs, 1976), é maior nos homens do que nas mulheres. Um BSTc com tamanho feminino foi descoberto nos transexuais macho-para-fêmea. Além disso, o tamanho do BSTc não era influenciado pelas hormonas sexuais na idade adulta e era independente da orientação sexual. Este é o primeiro estudo que revela uma estrutura cerebral feminina nos machos geneticamente transexuais e que apoia a hipótese de que a identidade de género se desenvolve como resultado de uma interacção entre o desenvolvimento do cérebro e as hormonas sexuais (Swaab & Hofman, 1995).

Nos animais experimentais, as mesmas hormonas gonadais que determinam prenatalmente a morfologia dos órgãos genitais também influenciam a morfologia e a função do cérebro de um modo sexualmente dimórfico (Swaab et al., 1995; Money et al., 1984). Diversas diferenças anatómicas em relação ao sexo e à orientação sexual foram observadas no hipotálamo humano (Swaab & Hofman, 1995). Zhou et al. (1995) estudaram o hipotálamo de seis transexuais macho-para-fêmea (T1-T6), com a finalidade de descobrir uma estrutura cerebral que fosse sexualmente dimórfica, mas não influenciada pela orientação sexual, dado os transexuais macho-para-fêmea puderem ser «orientados» para cada um dos sexos no que se refere ao comportamento sexual. As suas observações iniciais mostravam que o núcleo paraventricular (PVN), o núcleo sexualmente dimórfico(SDN) e o núcleo supraquiasmático (SCN) não obedeciam a estes critérios (Swaab & Hofman, 1995).

Dado não se aceitarem modelos animais para as alterações de identidade, o núcleo do leito da stria terminalis tornou-se um candidato apropriado para esse estudo pelas seguintes razões: sabemos que o BST desempenha um papel essencial no comportamento sexual dos roedores (Kawakami et al., 1974; Emery et al., 1976). Foram descobertos não só receptores de estrogénios e de androgénios no BST (Sheridan, 1979; Commis & Yarh, 1985), como também o maior centro de aromatização no desenvolvimento do cérebro da ratazana (Jakab et al., 1993). Na ratazana, o BST recebe projecções principalmente da amígdala e providencia um poderoso input para a região preóptica do hipotálamo (Eiden et al., 1985; De Olmos, 1990). Conexões recíprocas entre o hipotálamo, o BST e a amígdala também foram documentadas em animais experimentais (Woodhams et al., 1983; Simerly, 1990; Arluison et al., 1994).

Além disso, as diferenças sexuais no tamanho e no número de células do BST foram descritas nos roedores, as quais são influenciadas pelos esteróides gonadais no desenvolvimento (Bleier et al., 1982; Del Abril et al., 1987; Guillamón et al., 1988).

Também nos humanos uma parte caudal particular do BST (BNST-dspm) foi descrita como sendo 2.5 vezes maior nos homens do que nas mulheres (Allen & Gorski, 1990). A parte central do BST (BSTc) é caracterizada pelas suas células somatostatinas (553-54) e pela inervação do polipeptido vasoactivo intestinal (VIP) (Walter et al., 1991). Zhou et al. (1995) mediram o volume do BSTc a partir da sua inervação VIP. Os resultados foram os seguintes: O volume do BSTc nos machos heterossexuais era 44% maior do que nas fêmeas heterossexuais. O volume do BSTc dos homens heterossexuais e homossexuais não diferia de uma maneira estatisticamente significativa. O BSTc era 62% maior nos homens homossexuais do que nas mulheres heterossexuais.

A Sida não parece influenciar o tamanho do BST: o tamanho do BST de duas mulheres heterossexuais infectadas com Sida e de três homens heterossexuais infectados com Sida estavam dentro da média do grupo de referência correspondente. Os heterossexuais infectados com Sida foram, por isso, incluídos nos respectivos grupos de referência devido a propósitos estatísticos. Um pequeno volume do BSTc foi descoberto nos tansexuais macho-para-fêmea. O seu tamanho era somente 52% do encontrado nos machos de referência e 64% do BSTc dos machos homossexuais. Embora o volume médio do BSTc nos transexuais fosse ainda menor do que no grupo das fêmeas, a diferença não era estatisticamente significativa.

O volume do BST não estava relacionado com a idade em qualquer um dos grupos de referência estudados, o que parece indicar que o tamanho menor do BSTc observado nos transexuais não era devido ao facto deles serem, a este respeito, 10 a 13 anos mais velhos do que os homens heterossexuais e homossexuais.

O BTS desempenha um papel fundamental no comportamento sexual masculino e na regulação da libertação de gonadotropina, tal como demonstrado pelos estudos realizados na ratazana (Kimura, 1974; Emery & Sachs, 19776; Claro et al., 1995). Não existe evidência directa de que o BST tenha um papel similar no comportamento sexual humano, mas a demonstração de Zhou et al. (1995) de um padrão sexualmente dimórfico no tamanho do BSTc humano, o que está de acordo com a diferença sexual previamente descrita na parte mais caudal do BST (BNST-dspm) (Allen & Gorski, 1990), indica que este núcleo pode também estar envolvido nas funções sexual e reprodutiva humanas. Aliás, Simerly & Swanson (1987) e De Vries (1990) sugeriram que as diferenças de sexo neuroquímicas no BST da ratazana podem ser devidas aos efeitos das hormonas sexuais sobre o cérebro durante o desenvolvimento e na idade adulta.

Contudo, os dados humanos mencionados anteriormente indicam que o volume do BSTc não é afectado pelos níveis das hormonas sexuais adultas. O volume do BSTc de uma mulher com 46 anos que tinha sofrido, pelo menos durante um ano, um tumor do córtex adrenal que produz níveis sanguíneos muito elevados de androstenediona e de testosterona, estava dentro da média do das outras mulheres (S1). Além disso, duas mulheres pós-menopausa (com idades acima de 70 anos) tinham um BSTc de tamanho feminino completamente normal (M1, M2). Como todos os transexuais tinham sido tratados com estrogénios, o tamanho reduzido do BSTc poderia ser atribuído à presença de níveis elevados de estrogénios no sangue. Evidência contra esta suposição deriva do facto de que ambos os transexuais T2 e T3 mostravam um pequeno BSTc como as fêmeas, apesar de T2 ter parado de tomar estrogénios cerca de 15 meses antes de morrer, donde os seus níveis de prolactina serem também elevados, e de T3 ter parado o tratamento hormonal desde que um sarcoma foi descoberto cerca de três meses antes de morrer. Também um homem com 31 anos de idade que sofria de um tumor adrenal feminilizante que induz altos níveis sanguíneos de estrogénios, tinha, apesar disso, um BSTc verdadeiramente grande (S2).

Estes resultados poderiam ser explicados mediante a alegação de que o tamanho feminino do BSTc no grupo transexual era devido à falha de androgénios, dado todos eles terem sido orquidectomizados, excepto o T4. Por essa razão, Zhou et al. (1995) estudaram dois outros homens que tinham sido orquidectomizados por causa do cancro na próstata (um e três meses antes da morte: S4 e S3 respectivamente). Descobriu-se que o tamanho dos seus BSTc estava ao nível elevado da classificação dos machos normais. Apenas o tamanho do BSTc de um único transexual que não tinha sido orquidectomizado (T4) situava-se a meio dos valores dos transexuais. Não só cinco dos transexuais tinham sido orquidectomizados, como também todos usaram o «antiandrogen cyproterone acetate» (CPA). O efeito do CPA sobre o BSTc não se manifesta frequentemente, porque T6 não tinha tomado CPA nos últimos dez anos e T3 não tinha tomado CPA durante os dois anos antes de morrer e, no entanto, apresentava um BSTc de tamanho feminino.

Por conseguinte, as observações de Zhou et al. (1995) sugerem que o tamanho reduzido do BSTc nos transexuais macho-para-fêmea não pode ser explicado pelas diferenças nos níveis de hormonas sexuais na idade adulta, mas poderá ser estabelecido durante o desenvolvimento por uma acção organizadora das hormonas sexuais, de resto um ideia apoiada pelo facto de que a gonadectomia neonatal de ratazanas machos e a androgenização de ratazanas fêmeas induzirem mudanças significativas no número de neurónios do BST e suprimirem o seu dimorfismo sexual (Del Abril et al., 1987; Guillamón et al., 1988).

Considerado conjuntamente com a informação de animais, o estudo de Zhou et al. (1995) suporta, portanto, a hipótese de que as alterações da identidade de género podem desenvolver-se como resultado de uma interacção alterada entre o desenvolvimento do cérebro e as hormonas sexuais (Swaab & Hofman, 1995). A acção directa de factores genéticos deverá também ser levada em consideração a partir de experiências com animais (Pilgrim & Reisert, 1992). Também não foi descoberta nenhuma relação entre o tamanho do BSTc e a orientação sexual dos transexuais: cada um deles era macho-orientado (T1, T6), fêmea-orientado (T3, T2, T5) ou ambos (T4).

Além disso, o tamanho do BSTc dos homens heterossexuais e dos homens homossexuais não diferia, o que reforça o conceito de que o tamanho reduzido do BSTc é independente da orientação sexual. Também não havia diferença no tamanho do BSTc entre o subconjunto mais jovem (T2, T5, T6) e o subconjunto mais velho (T1, T3) dos transexuais, o que indica claramente que o tamanho reduzido do BSTc está relacionado com a alteração da identidade de género per si, e não com a idade em que se torna manifesto. De modo interessante, o reduzido BSTc nos transexuais parece ser uma diferença cerebral verdadeiramente local.

Lhou et al. (1995) não conseguiram observar mudanças similares em três outros núcleos do hipotálamo, nomeadamente nos PVN, SDN ou SCN nos mesmos indivíduos. Isto pode ser devido ao facto destes núcleos não se desenvolverem todos ao mesmo tempo ou a uma diferença entre estes núcleos e o BST em relação à presença de receptores das hormonas sexuais ou de aromatase.

Contudo, um outro estudo, levado a cabo por Wilson, Chung, De Vries & Swaab (2002), mostrou que a diferença sexual no volume do BSTc, a qual se torna significativa somente na idade adulta, se desenvolve muito mais tarde do que seria de esperar. A diferenciação sexual do BST da ratazana ocorre nas primeiras semanas depois do nascimento e requer diferenças perinatais nos níveis de testosterona (Del Abril et al., 1987; Chung et al., 2000). Nos seres humanos, os níveis de testosterona durante o desenvolvimento fetal e neonatal são muito mais elevados nos machos do que nas fêmeas (Abramivich & Rowe, 1973; Winter, 1978). Além disso, alterações dramáticas nos níveis de testosterona nos adultos não têm efeitos óbvios sobre o volume do BSTc tanto nos machos como nas fêmeas (Zhou et al., 1995; Kruijver et al., 2000). Por causa disso, supunha-se que o BST divergia precocemente entre machos e fêmeas durante o desenvolvimento. Além disso, a diferenciação sexual dos núcleos sexualmente dimórficos da área preóptica e de outras áreas do hipotálamo anterior humano ocorre entre os 4 e os 10 anos de idade (Swaab & Hofman, 1988; Swaab et al., 1994).

Assim, a diferenciação tardia do volume do BSTc nos machos e nas fêmeas poderá ser uma característica geral do BST humano. Este conceito é apoiado por diversos estudos. O BST-dspm parece tornar-se sexualmente dimórfico aproximadamente na puberdade, como é indicado pelos períodos de tempo de desenvolvimento que foram incluídos no estudo de Allen & Gorski (1990). Com efeito, o BST-dspm parece ser menor nas fêmeas do que nos machos a partir dos 14 anos de idade (Allen & Gorski, 1990). A diferenciação sexual relativamente tardia também foi observada no hipotálamo do porco. O número de células do núcleo sexualmente dimórfico contendo vasopressina e oxitocina do hipotálamo do porco aumenta nas fêmeas pós-adolescentes mas não nos machos (Van Eerdenburg & Swaab, 1994).

Estudos recentes também mostraram que diversas regiões no cérebro humano e primata adulto produzem continuamente novos neurónios e mudam no volume das matérias branca e cinzenta (Eriksson et al., 1998; Gould et al., 1999; Gur et al., 1999; Sowell et al., 1999). Além disso, mudanças morfológicas marcadas no cérebro humano, incluindo a diferenciação sexual, podem não estar limitadas à infância mas estender-se até à idade adulta.

Existem diversas explicações possíveis para a falha de uma diferença sexual no volume do BST logo após surgirem as diferenças sexuais fetais e neonatais nos níveis de testosterona. Os efeitos organizacionais da testosterona sobre a diferenciação sexual podem tornar-se claros mais tarde na vida. Um exemplo de uma longa demora nos efeitos organizacionais dos esteróides gonadais é o desenvolvimento do núcleo periventricular anteroventral (AVPv) sexualmente dimórfico no cérebro da ratazana, o qual é maior nas fêmeas do que nos machos. Apesar das diferenças sexuais perinatais na testosterona provocarem esta diferença sexual no tamanho do AVPv, o seu volume torna-se apenas significativamente diferente aproximadamente na puberdade (Davis et al., 1996). Alternativamente, é provável que as diferenças sexuais nos níveis de esteróides gonadais peripubertais ou adultos estabeleçam a diferença sexual no volume do BSTc na idade adulta. Embora os androgénios e os estrogénios na puberdade provoquem o desenvolvimento das características sexuais secundárias nas estruturas periféricas do corpo, não existem dados sobre efeitos similares sobre as estruturas do cérebro humano.

Contudo, dados provenientes de seis casos relatados em estudos anteriores sugerem que o volume do BSTc, tal como delineado pela coloração imunocitoquímica de VIP ou somatostatina, não é afectado por aumentos ou diminuições acentuados nos níveis de esteróides gonadais na idade adulta. Assim, um tamanho feminino normal do BSTc foi descoberto numa fêmea controle com níveis de androgénios aumentados e em duas fêmeas controle pós-menopausa com baixos níveis de esteróides gonadais. Além disso, um tamanho masculino normal do BSTc foi descoberto num macho controlo com elevados níveis de estrogénios provocados por um tumor adrenal feminilizante e em dois machos controle que foram orquidectomizados como resultado de cancro da próstata. A possibilidade de que mudanças dependentes dos esteróides gonadais na expressão de VIP ou do neuropeptido somatostatina estejam na base das mudanças do volume do BSTc, tal como na área preóptica da codorniz (quail), na amígdala medial do rato e na amígdala humana (Panzica et al., 1987; Giedd et al., 1996; Cooke et al., 1999), não é apoiada por esses seis casos que revelam mudanças acentuadas nos níveis de esteróides gonadais, embora o volume do seu BSTc seja normal para o seu género (Zhou et al., 1995; Kruijver et al., 2000).

Além das acções directas dos esteróides gonadais sobre o BSTc, a emergência tardia de diferenças sexuais no volume do BSTc pode reflectir mudanças sexualmente dependentes relativamente tardias nas áreas do cérebro que abastecem o BST com a sua inervação VIP-IR, tais como a amígdala (Eiden et al., 1985), a qual aumenta de tamanho numa proporção maior nos machos do que nas fêmeas entre os 4 e os 18 anos de idade (Giedd et al., 1996). Embora as diferenças sexuais nos esteróides gonadais constituam o factor mais provável para desencadear a diferenciação sexual do BSTc e da áreas que inervam o BSTc, Chung et al. (2002) não excluem a acção de mecanismos independentes dos esteróides gonadais sobre a diferenciação sexual do cérebro, tais como uma expressão local de genes do sexo cromossómico (Reisert & Pilgrim, 1991). Um gene candidato para um tal efeito é o gene SRY, o qual foi revelado ser transcrito no hipotálamo humano adulto e no córtex dos machos mas não nos das fêmeas (Mayer et al., 1998).

Assim, tendo em consideração todos estes estudos, a nossa perspectiva sobre a relação entre o volume do BSTc e a sua diferenciação sexual tardia e a transexualidade torna-se mais segura. Com efeito, os transexuais recebem a sua primeira consulta entre as idades de 20 e 45 anos, as quais coincidem com o período de divergência sexualmente dependente do volume do BSTc descoberto nos estudos de Chung et al. (2002) e de Van Kesteren et al. (1996). No entanto, estudos epidemiológicos mostram que a consciência de problemas de género está geralmente presente muito precocemente. Com efeito, 67-78 % dos transexuais na idade adulta relatam terem tido fortes sentimentos de terem nascido num corpo errado desde a infância (Van Kesteren et al., 1996), o que apoia o conceito de que os distúrbios nos níveis de esteróides gonadais fetais ou neonatais estão na base do desenvolvimento da transexualidade. Além disso, as observações de que o uso de fenobarbital (phenobarbital) ou difantoin (diphantoin) durante a gravidez, os quais afectam os níveis dos esteróides gonadais, aumenta a prevalência de transexualidade nos recém-nascidos, suportam este conceito (Dessens et al., 1999).

Assim, as raparigas que foram expostas a níveis elevados de androgénios enquanto crianças por causa da hiperplasia adrenal congénita revelam uma elevada incidência de problemas de género, o que fornece suporte empírico para o conceito de uma programação de desenvolvimento precoce desta desordem (Meyer-Bahlburg et al., 1996; Zucker et al., 1996). A falha da diferenciação sexual acentuada do volume do BSTc no estudo de Chung et al. (2002) antes do nascimento e na infância não impede certamente os efeitos precoces dos esteróides gonadais sobre as funções do BSTc. Tal como sugerem as experiências com animais de laboratório, os níveis de testosterona fetais ou neonatais nos seres humanos devem primeiramente afectar a densidade sináptica, a actividade neuronal ou o conteúdo neuroquímico durante o desenvolvimento precoce do BSTc (Döhler, 1991; Park et al., 1997). As mudanças nestes parâmetros devem afectar o desenvolvimento da identidade de género, sem implicar imediatamente mudanças abertas no volume ou no número de neurónios do BSTc. Alternativamente, é necessário levar em conta que as mudanças no volume do BSTc nos transexuais macho-para-fêmea podem ser o resultado de uma incapacidade para desenvolver uma identidade de género tipicamente masculina. As descobertas de Chung et al. (2002) de uma diferença sexual no volume do BSTc somente visível na idade adulta sugerem que as mudanças organizacionais sexualmente dependentes da estrutura do cérebro não se limitam ao desenvolvimento precoce mas estendem-se até à idade adulta.

A evidência empírica disponível suporta o conceito de que a região central do BST está associada à identidade de género: o sentimento de ser macho ou fêmea. Este núcleo sexualmente dimórfico é maior nos machos do que nas fêmeas, independentemente das suas orientações sexuais. Contudo, o seu tamanho reduzido nos transexuais macho-para-fêmea, semelhante ao das mulheres, indica claramente essa associação à identidade de género. Ele pode constituir a base neural das perturbações de identidade de género. A transexualidade é precisamente o sentimento de desconforto com o próprio sexo biológico ou com o papel de género correspondente.

Carol Ringo & Peter Ringo (2002) mostraram que os mass media podem desempenhar um papel fundamental e positivo no desenvolvimento da identidade transexual e naidentidade transgender. Machos heterossexuais e homossexuais partilham assim o mesmo sentimento íntimo de si mesmos como homens. Designaremos o transexualismo como uma «two-spirit syndrome» ou síndrome transexual, cujos pacientes devem ser alvo de cuidados médicos e de acompanhamento psiquiátrico adequado.

Em fase dos resultados expostos, conjecturamos que a própria existência da transexualidade advoga fortemente a favor do conceito de que a identidade sexual ou de género não é necessária e exclusivamente determinada por experiências de vida. A maioria dos transexuais pertencentes ao grupo primário simplesmente não possui histórias de experiências traumatizantes, relacionamentos ou doenças que pudessem explicar um tão radical afastamento da convencionalidade. E os transexuais não são destituídos de capacidades intelectuais, já que, pelo menos, um grande número deles conseguem persuadir um cirurgião a remover-lhes o pénis. Dado que já conhecemos um dos marcadores biológicos da transexualidade, o núcleo sexualmente dimórfico, começamos a compreender os mecanismos de desenvolvimento subjacentes à identidade sexual. Neste momento, o tamanho reduzido do BSTc dos transexuais, bem como a ausência de diferença sexual entre homens heterossexuais e homossexuais, não permite a sua inclusão numa classificação das homossexualidades.

Apesar de os ter incluído na sua tipologia dos travestismos masculinos, onde integra erroneamente a homossexualidade efeminada, Robert J. Stoller (1982) acaba por reconhecer que não existem semelhanças significativas entre os dois grupos, a não ser o uso ocasional de roupas femininas por parte de uma minoria de homossexuais efeminados: os transexuais primários e os homossexuais efeminados. As diferenças entre eles são abismais: o transexual não é efeminado como o homossexual efeminado mas simplesmente feminino. Por outro lado, o homossexual efeminado sabe que prefere homens como objectos sexuais, aprecia virtualmente ter um pénis, não deseja perdê-lo, usa-o sempre que possível em todos os tipos de situações sexuais e aprecia relações sexuais com homens que, em troca, demonstrem interesse pelo seu pénis. Ora, cada um destes indicadores comportamentais, sobretudo o último, constituem um anátema para os transexuais primários.

Além disso, os homossexuais efeminados, sobretudo os do tipo maricas, que têm grande propensão para o travestismo, acabam, por diversas razões, por se prostituir, sendo posteriormente levados a submeter-se à cirurgia da mudança de sexo. Este grupo constitui aquilo a que chamámos os transexuais secundários, a maior parte deles oriundos, pelo menos em Portugal e no Brasil, das classes sociais desfavorecidas, onde a instrução e a educação são mínimas, e, geralmente, propensos à prostituição, estilo de vida sexualmente promíscuo e abuso de drogas (Inciardi et al., 1999), além de problemas de saúde graves (Gooren, 1999). No entanto, não é de excluir a possibilidade de muitos daqueles indivíduos que classificámos como homossexuais hiperefeminados sejam realmente transexuais genéticos.

Embora a nossa pesquisa de terreno tenha incidido sobretudo sobre os homossexuais masculinos e femininos, no seu decorrer confrontamo-nos com alguns casos de transexualismo. Destes casos apenas dois parecem ser verdadeiramente transsexuais: um transexual macho-para-fêmea homossexual e outro transexual fêmea-para-macho homossexual. Os restantes são claramente casos de pseudo-transexualismo: indivíduos do sexo masculino cuja orientação sexual era homossexual e que, devido a diversas pressões e a uma história de vida altamente estigmatizante, se submeteram a diversos tratamentos, nalguns casos à mudança de sexo, para se converterem em «fêmeas». Os machos homossexuais que se transformam em transexuais seguem geralmente o seguinte padrão: embora a maior parte deles tenda a ser do tipo efeminado, quer sejam efeminados ou masculinizados, eles começam por ser travestis e, a partir desse momento, são alvo da crítica homossexual.

Segregados da comunidade homossexual dominante, eles continuam a frequentar os «meios homossexuais», ao mesmo tempo que, como grupo, se dedicam à prostituição. A dinâmica de grupo, bem como o seu estilo de vida, leva-os a querer mudar de sexo: além de se vestirem e de se comportarem como «mulheres», uns fazem tratamentos hormonais e outros, mais arrojados, submetem-se a cirurgia de mudança de sexo. Compreende-se que um «cérebro feminino prisioneiro num corpo masculino» queira ter um corpo conforme ao seu cérebro, mas o mesmo já não pode ser dito dos machos homossexuais que não apresentam nenhuma disfunção sexual aparente. O seu cérebro até pode ser feminino nalgumas características sexualmente dimórficas, mas os seus órgãos sexuais funcionam e são usados como fonte de prazer sexual. A prova está num dos casos: um indivíduo que, antes do travestismo e do transexualismo, se casou heterossexualmente e teve um filho! Seja como for, os estudos revelam que os machos homossexuais, tal como os machos heterossexuais, têm uma identidade de género adequada ao sexo: a via de desenvolvimento masculino é, também neste sentido, semelhante entre os homens homossexuais e heterossexuais.

Hoje, dado já conhecermos alguns genes associados ao transexualismo (Henningsson et al., 2005), o estudo destes indivíduos pode vir a facilitar a nossa compreensão da orientação sexual, especialmente da homossexualidade, recorrendo igualmente a outros modelos animais, nomeadamente o do carneiro (Roselli et al., 2002). A pesquisa genética (Henningsson et al., 2005) confirmou a existência de 3 polimorfismos associados ao transexualismo: o gene receptor dos androgénios, o gene da aromatase e, sobretudo, ogene receptor dos estrogénios (Erbeta). Daqui resulta que esta categoria sexual não pode ser integrada no âmbito da homossexualidade masculina.


Disponível em <http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2008/03/crebro-e-genes-dos-transexuais.html>. Acesso em 17 mar 2013.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

História da ciência e a diversidade de orientações sexuais: natureza, cultura e determinismo

Valter Forastieri
Candombá - Revista Virtual, v. 1, n. 1, p. 1 – 15, jan – jun 2005

Resumo: Este artigo é uma revisão de como a ciência vem tratando a questão da existência de uma variedade de tipos de orientações sexuais. A orientação sexual, um padrão peculiarmente humano, é caracterizada pelo comportamento sexual mais aspectos cognitivos referentes à atração, fantasias e desejos sexuais. A tentativa de explicação desse fenômeno criou disputas entre biólogos e psicólogos, a controvérsia natureza versus cultura. No início do século XX, o determinismo cultural da psicanálise foi a base de explicação da orientação sexual, mas, com o passar das décadas, foi perdendo espaço para o determinismo biológico, impulsionado pela revolução biotecnológica.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O sexo inventado

Maysa Rodrigues

Dentre os quarenta e seis cromossomos do mapa genético humano, apenas um diferencia biologicamente as mulheres dos homens. Entretanto, esse detalhe microscópico foi o suficiente para dividir quase toda humanidade em dois grupos que se interpenetram sem nunca perderem sua distinção básica. Muitos irão concordar que homens e mulheres são diferentes do ponto de vista de seus corpos, de sua constituição psicológica e do papel que ocupam na sociedade. Porém, na contramão da diferença, a Antropologia teceu ao longo do século passado uma tradição que desmonta muitas de nossas percepções mais fundamentais sobre os sexos.

Um cromossomo é formado de diversos genes, de forma que o que separa homens de mulheres é a combinação de alguns bocados dessas partes minúsculas. Ainda assim, para a Biologia, esses detalhes são responsáveis pela constituição de corpos diferenciados, compostos de uma maioria de órgãos em comum e de outros que seriam exclusivos a cada um dos sexos. Além da caracterização genética e anatômica, há também uma diferenciação hormonal - as mesmas substâncias, mas em quantidades diferentes nos homens e nas mulheres.

Se a Biologia propõe uma diferença física, a interpretação do senso comum se apoia em uma diferença de comportamento e de papéis. Acima de tudo, mulheres são possíveis mães - após serem fecundadas, nutrem, carregam e dão à luz a um novo indivíduo, que deverá receber atenção por boa parte de sua vida. A poesia e a literatura descrevem com adoração e reserva esses seres fantásticos que transitam entre a sensualidade e a maternidade. Já os homens também tiveram historicamente seu papel: fecundar e prover o sustento para a mulher e para seus descendentes.

É verdade que as funções para os dois sexos mudaram ao longo da história. Atualmente, principalmente na sociedade ocidental, boa parte das mulheres integra o mercado de trabalho, e muitos dos homens realizam funções domésticas e participam da criação dos filhos. Ainda assim, algumas expectativas parecem manter-se fixas. Mulheres que abrem mão da maternidade ainda são vistas com certo estranhamento. Da mesma forma, um homem sustentado por sua companheira dificilmente não causará algum constrangimento.

Negando os papéis sociais

Em um primeiro momento, negar a ideia de que homens e mulheres são essencialmente diferentes parece algo absurdo, justamente por essa ideia ter extrema aceitação pela ciência e pelo senso comum. Entretanto, a abordagem antropológica sugere uma nova interpretação a partir de trabalhos que estudaram a fundo outras sociedades (especialmente as ditas sociedades primitivas) e as variadas maneiras como essas culturas enxergaram a realidade.

Pierre Clastres, no capítulo "O Arco e o Cesto" de seu célebre livro A Sociedade contra o Estado apresenta a interessante cultura dos Guaiaquis. Nessa sociedade, assim como na nossa, as tarefas eram divididas entre homens e mulheres. Os primeiros se responsabilizavam pela caça, e as segundas, pela coleta e pelos constantes deslocamentos dos objetos pelo território, uma vez que se tratava de uma sociedade nômade. Sem adentrar profundamente em toda a rica análise que Clastres faz sobre as interdições ligadas aos sexos e às famílias, os Guaiaquis são importante para nosso tema porque trazem um exemplo de sociedade em que impera a poliandria, ou seja, a união da mulher com mais de um marido. Conforme sugere o autor, as mulheres Guaiaquis possuíam uma vantagem estrutural em relação aos homens: mesmo casadas, podiam ter relacionamentos com moços solteiros e transformá-los em maridos secundários se assim desejassem. Isso não significava que os maridos principais ficavam felizes, porém, esses não tinham muita escolha: se abandonassem suas esposas seriam condenados ao celibato, pois a tribo carecia de mulheres disponíveis. Já as esposas logo encontrariam outro marido, pois havia o dobro de homens em relação às mulheres.

Muito interessante na análise do autor é a ideia de que a desproporção numérica entre os sexos poderia ter sido solucionada por outros meios senão a poliandria. Seria possível que certos parentes considerados proibidos para o casamento passassem a ser permitidos. Também seria imaginável que houvesse um incentivo social ao celibato masculino ou que se admitisse o assassinato de recém-nascidos homens. De qualquer maneira, o modelo matrimonial verificado nessa tribo evidencia que dentre as infinitas possibilidades das culturas que já passaram pelo globo terrestre, os Guaiaquis são uma mostra de que o arranjo tecido pela nossa própria sociedade ao que diz respeito às relações entre homens e mulheres está longe de ser o único possível.

De forma ainda mais sugestiva para essa ideia, Margaret Mead*, em seu livro clássico Sexo e Temperamento, questiona as noções mais comuns dos papéis sexuais ao apresentar três sociedades na Nova Guiné. A autora toma como base o que considerou serem os padrões norteamericanos: o comportamento feminino seria caracterizado por ser "dócil, maternal, cooperativo, não agressivo e suscetível às necessidades e exigências alheias", e o comportamento masculino seria relativamente oposto a essa caracterização.

Tomando esses padrões como referência, percebemos que cada uma das três tribos apresenta comportamentos diferentes para homens e mulheres. Dentre os Arapesh, por exemplo, tanto os homens como as mulheres exibiam uma personalidade que seria considerada feminina na sociedade norte-americana. Já os integrantes da tribo Mundugumor eram homens e mulheres "implacáveis, agressivos e positivamente sexuados, com um mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua personalidade", apresentando um tipo de comportamento que, segundo Mead, só seria encontrado em um homem norte-americano "indisciplinado e extremamente violento". Tchambulli é a terceira tribo apresentada pela autora e se caracteriza por uma diferenciação entre os sexos e uma clara inversão das expectativas de temperamento de nossa sociedade: a mulher é "o parceiro dirigente, dominador e impessoal, e o homem a pessoa menos responsável e emocionalmente dependente".

Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas. Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que "não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção entre homens e mulheres.

Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas. Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que "não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção entre homens e mulheres.

Nesse sentido, o argumento é interessante no que diz respeito à diferença entre homens e mulheres: muitas das características corporais que distinguem os sexos seriam constituídas a partir de um treino social do corpo. A delicadeza feminina; a postura imponente dos homens; o jeito discreto de sentar das mulheres recatadas; o largar-se confortavelmente no sofá, tipicamente masculino; ou então a maneira sensual feminina de andar movimentando os quadris são todos exemplos das chamadas técnicas do corpo propostas pelo autor.

Pierre Clastres » Antropólogo francês, Pierre Clastres nasceu em 1934 e faleceu, vítima de um acidente, em 1977. Castres integrou o Laboratório de Antropologia Social do Collège de France e deixou como principal legado o livro A sociedade contra o Estado, coleção de ensaios publicados em 1974 e considerado uma das obras-primas da antropologia.

O conceito de gênero

Mead, Mauss e Clastres, dentre outros autores, incutiram na tradição antropológica a ideia de que os papéis destinados a homens e mulheres não são explicados por uma diferença essencial inscrita na natureza de seus corpos. Ainda que sejam biologicamente diferentes, as peculiaridades anatômicas não explicariam as inúmeras outras diferenciações sociais entre os sexos: sejam elas de hierarquia, de status, de poder, de posição na divisão do trabalho, de personalidade, de comportamento e nem mesmo de seus trejeitos corporais.

Assim, se por um lado essa interpretação não nega radicalmente a perspectiva da diferença anatômica, afirma que a Biologia nada explica no que diz respeito à vida social. O argumento principal é que a natureza dos corpos é interpretada pela cultura que, por sua vez, origina inúmeros significados que transcendem as diferenças corporais.

A partir dessa rejeição à explicação biológica para as diferenças sociais, a Antropologia criou o conceito de gênero. "O foco da Teoria de Gênero é desconstruir a ideia de que existe uma diferença natural entre homens e mulheres que explique o que acontece nas sociedades", define Heloisa Buarque de Almeida, antropóloga especialista no tema e professora da Universidade de São Paulo. "Por muito tempo se dizia que as mulheres tinham menos poder ou que estavam restritas à esfera doméstica por causa da reprodução e da maternidade, ou seja, devido a elementos associados ao próprio corpo feminino. A Teoria de Gênero tenta mostrar que nem todas as sociedades tratam as mulheres dessa maneira", completa.

A professora explica que a origem do conceito de gênero estaria inicialmente associada às ciências médicas. "Gênero aparece na medicina nos anos 1950, no caso dos chamados distúrbios de gênero, como crianças que nasciam intersexuadas, ou seja, que tinham a genitália que hoje chamamos de ambígua, ou então pessoas que nasciam de um sexo e se diziam seres de outro sexo. Era usado quando a identidade do corpo da pessoa não combinava com aquilo que ela sentia sobre si".

Na Antropologia, apesar da impossibilidade de se traçar uma genealogia exata, os estudos atuais colocariam a antropóloga norte-americana Gayle Rubin como uma das precursoras do uso do conceito. "O foco de Rubin era mostrar que a relação entre os gêneros não deriva da natureza, pois é histórica, decorre de um arranjo social e tem um momento de fundação. Apesar disso, acaba aparecendo ideologicamente como naturalizada", explica Heloisa.

Margaret Mead » Doutora pela Universidade de Columbia e uma das grandes representantes do culturalismo, a antropóloga norteamericana Margaret Mead (1901-1978) publicou livros como Adolescência, sexo e cultura em Samoa (1928) e Sexo e temperamento em três sociedades primitivas (1935).

Debate com a biologia

Se parte dos estudos antropológicos afirmam que a explicação para a diferença social entre homens e mulheres só pode ser compreendida a partir do universo social que os permeia - sem, entretanto, negar que existam diferenças biológicas e anatômicas reais entre os sexos - outra parte radicaliza o argumento e nega a própria Biologia.

Nesse sentido, diversos estudos realizados nas Ilhas Trobriands representaram uma primeira aproximação, quase intuitiva, às teorias que desconstroem radicalmente a ciência. Considerado um dos principais fundadores da Antropologia, Bronislaw Malinowski intrigou-se no começo do século passado com a exótica interpretação que os trobriandeses faziam da gravidez e do intercurso sexual. Para essa tribo, o homem através da relação sexual que mantinha com a mulher não era responsável pela geração de crianças. A implementação do bebê no corpo materno seria realizada a partir de espíritos oriundos exclusivamente do lado da mãe, de forma que a função do pai era a de "abrir o caminho", ficando excluído da ascendência sobre o novo ser. Além disso, os homens trobriandeses eram considerados responsáveis pelo crescimento e pela fisionomia das crianças, que seria formada a partir das relações sexuais que mantivessem com as mulheres grávidas.

Essa interessante interpretação sobre a reprodução humana abre caminho para pensarmos que a partir dos mesmos fatos (intercurso sexual, gestação e nascimento) inúmeras explicações e relações entre causa e efeito podem ser desenvolvidas pelas culturas. Assim, a compreensão do nascimento como decorrente da gestação, e esta última como consequência do encontro entre os gametas femininos e masculinos durante o intercurso sexual, não é uma decorrência inevitável do pensamento humano, mas sim uma particularidade do pensamento ocidental.

Por volta de meio século depois das investigações de Malinowski, Michel Foucault promoveu uma das principais críticas no sentido da desconstrução da ciência. O autor levou a já exposta ideia de Marcel Mauss (de que as técnicas do corpo seriam constituídas de um treino social) ao extremo. Afirma que não apenas os movimentos corporais são construídos socialmente e incutidos nos indivíduos, como também o próprio corpo é construído politicamente.

Para ele, absolutamente nada existe anteriormente ou externamente ao discurso humano. Toda a suposta realidade concreta só seria concebida pelos indivíduos a partir do "saber", sendo que esse saber é entendido pelo autor como uma relação de poder que designa, nomeia e confere sentido a todas as coisas. Sua ideia central é a de que não existe uma "natureza natural", ou seja, uma realidade anterior ao saberes e aos discursos humanos. Um bom exemplo nesse sentido é pensarmos que o câncer é uma enfermidade que tem uma presença relativamente recente no léxico da medicina. Antigamente, as pessoas que hoje dizemos que morreram em sua decorrência, morriam porque estavam velhas ou simplesmente sem que se soubesse o porquê. Apenas a partir do reconhecimento da existência dessa doença pela comunidade científica é que o câncer passou a existir no linguajar e no pensamento das pessoas. Da mesma maneira, os sintomas que hoje interpretamos como doença de Alzheimer ou como outras demências degenerativas eram simplesmente sinais de velhice, sem possuírem um sentido particular.

O essencial que os dois exemplos pretendem sugerir é de que apenas quando há um reconhecimento na sociedade de que certo elemento tenha um determinado sentido, que isso passa a estruturar a vida social e fazer parte da interpretação comum. Além disso, o reconhecimento dos sentidos das coisas (e também o reconhecimento da existência das próprias coisas) se realiza por meio de uma relação de poder. Assim, o saber ou o conhecimento, para Foucault, é sempre permeado por uma força porque designa positivamente o sentido das coisas.

Até esse ponto, deve ser coerente dizer que a teoria do autor implica em uma profunda crítica ao sentido da ciência, uma vez que nega seu aspecto de saber absoluto, neutro e apolítico, enfatizando a questão do poder que envolve diretamente todo o conhecimento que existe. Para essa concepção, ciência não é um aparato de técnicas imparciais, que descobre a realidade externa, imutável e objetiva. Muito pelo contrário, o argumento de Foucault sugere que a realidade que nos aparece como objetiva é, na verdade, construída por um saber inundado de poder.

Nesse mesmo sentido, a medicina seria um saber institucionalizado que implica em um controle dos corpos dos indivíduos na mesma medida em que impõe o sentido desses corpos. Assim, podemos começar a pensar na natureza supostamente diferente dos corpos femininos e masculinos como uma ideia longe de ser natural.

Para ilustrar a concepção foucaultiana de ciência, Heloisa Buarque de Almeida explica como ao longo da história da medicina diversos aspectos do corpo humano foram responsabilizados por determinados comportamentos. "No final do século XVIII, como mostra a autora Magali Engel, o comportamento feminino é imputado aos ovários. Quando a mulher é vista como tendo alguma perturbação mental, como louca ou como promíscua, o protocolo é tirar os ovários, mesmo que aparentemente estivessem saudáveis".

Depois, conforme completa a antropóloga, o útero surgiria como o maior culpado pelos problemas emocionais, e a forma de tratamento mais comum para os chamados desvios mentais se tornaria a extirpação desse órgão. "Já por volta dos anos 1940-1950, ganha proeminência a ideia dos hormônios. Aparece na medicina que o comportamento chamado masculino é gerado pela testosterona, que passa a explicar a virilidade, tanto do ponto de vista da potência sexual, quanto de um comportamento agressivo e dominador dos homens. Essa visão também explica o comportamento mais afetivo e carinhoso das mulheres como sendo algo gerado pelos hormônios", desenvolve.

Hoje em dia, nem mais os hormônios e tão pouco os órgãos reprodutivos: a força explicativa da ciência estaria na ideia dos genes, que passa a ser a causa maior da diferença sexual. "Os médicos indicam aspectos biológicos como determinantes do comportamento, mas esse lugar da natureza parece estar sempre mudando", finaliza a antropóloga.

Na mesma trilha de Foucault, Thomas Lacqueur dá forma ao argumento do filósofo. Em seu livro Inventando o Sexo, o autor, a partir de um levantamento de manuais de medicina e de outros escritos do campo afirma que até meados do século XVIII havia uma concepção de sexo único, "no qual homens e mulheres eram classificados conforme seu grau de perfeição metafísica, seu calor vital ao longo de um eixo cuja causa final era masculina."

Assim, segundo esse modelo que imperou até não muito tempo atrás, homens e mulheres não eram considerados fisicamente diferentes. Sua diferença era apenas em grau (homens tinham maior calor vital e maior perfeição). Essa concepção se manifestava nos manuais de medicina de tal maneira que não era descrita nenhuma forma de distinção anatômica entre os sexos. A convergência também se exprimia no fato de haver uma mesma nomenclatura para os órgãos que hoje são considerados específicos de cada um dos sexos. Lacquer afirma que "durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens", com a diferença de que a genitália feminina ficava dentro do corpo, enquanto que a masculina era externa. Os lábios vaginais eram considerados equivalentes ao prepúcio masculino, o útero era a mesma coisa que o escroto e os ovários seriam uma transposição dos testículos.

Impressiona na descrição de Lacqueur que essa maneira de conceber os corpos como iguais prevaleceu à prática da dissecação, evidenciando que não se tratava de um conhecimento baseado na impossibilidade de ser enxergar os órgãos, mas sim em uma forma de olhar e de interpretar o corpo diferente da que impera atualmente.

Também bastante revelador desse modelo de sexo único é a ideia de que sendo a diferença entre homens e mulheres apenas de grau e não de natureza, poderia haver uma mudança de sexo: "as meninas podiam tornar-se meninos, e os homens que se associavam intensamente com mulheres podiam perder a rigidez e definição de seus corpos perfeitos, e regredir para a efeminação". Lacqueur apresenta um relato médico do século XVI que atesta para a possibilidade de se transitar entre os sexos: uma pessoa identificada até então inquestionavelmente como menina passa a apresentar um "pênis e um escroto externo".

O caso que seria explicado hoje como um exemplo de intersexo (ou seja, de um indivíduo que possui o aparelho reprodutor ambíguo e que pode desenvolver novos órgãos na adolescência) foi considerado, naquela época, como a prova da possibilidade de mudança sexual. Essa anedota evidencia que, diferente do que normalmente pensamos, não é a simples visão dos corpos que condiciona a teorização que se fará sobre eles posteriormente; é o modelo corrente na sociedade que determinará a imagem que nossos olhos farão do que está em nossa frente.

No dia 13 de dezembro de 2010, faleceu a socióloga, professora e pesquisadora Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, reconhecida internacionalmente por seus estudos sobre as questões de gênero e direito das mulheres. Professora da Unesp e da PUC -SP, Heleiteh Saffioti publicou o livro Gênero, Patriarcado e Violência (Fundação Perseu Abramo, 2004) .

Um mundo pós-gênero?

A filósofa Judith Butler em sua obra Problemas de Gênero, agrega aspectos do pensamento de Foucault e de Lacquer para afirmar que gênero é sempre um ato performativo, que se constitui apenas nas o feminino e o masculino. Assim, travestis e drag queens evidenciariam a natureza performática do feminino e sua artificialidade, inclusive nas mulheres.

Para a autora, se gênero é performance, longe de se desenvolver livremente, é regulado por uma matriz que pressupõem coerência entre o sexo biológico, as atuações de gênero, o desejo e a prática sexual. Assim, pessoas com a genitália feminina devem ser mulheres que têm desejo por homens e que devem manter relações sexuais e afetivas exclusivamente com o sexo oposto.

Além disso, não seria possível em nossa sociedade a inexistência de qualquer performance de gênero pelos indivíduos, uma vez que o pensamento ocidental, além de incapaz de aceitar as descontinuidades e incoerências provenientes das subjetividades que não se adéquam à norma, também seria inábil em parar de localizar os sujeitos em relação às opressoras categorias de feminino e masculino. Assim, mesmo que os indivíduos subvertam alguns aspectos dessas regras, ainda estariam se posicionando em relação a elas.

Apesar da visão antropológica que propõe uma igualdade radical entre os sexos, Butler parece apontar para uma dificuldade em nos desvencilharmos das categorias de gênero, que seriam ordenadoras de nosso pensamento. A persistência se afirma em um mundo que, ao mesmo tempo em que muda, continua reiterando as barreiras entre homens e mulheres.

Ainda assim, mesmo que a crítica da Antropologia não implique em uma verdadeira libertação das amarras mais profundas em relação aos papéis de gênero - tão pouco no fim da opressão das subjetividades humanas dissidentes e na aceitação das múltiplas formas de sexualidade -, a disciplina fornece, certamente, um intenso estímulo ao nosso pensamento e à nossa capacidade de conceber um mundo diferente daquele que se apresenta aos nossos olhos, especialmente a partir do contato com outras realidades culturais que nos maravilham com suas vastas possibilidades.

Judith Butler » Filósofa norte-americana e professora da Universidade de Berkeley, contribuiu decisivamente para os estudos sobre gênero e teoria feminista. Seu livro Problemas de Gênero é tido como uma obra fundamental sobre a questão. É desde 2007 integrante da American Philosophical Society.

O contraponto da psicanálise

As teorias antropológicas sobre gênero em alguns momentos concorrem e em outros se completam com as perspectivas de outros campos do saber como, por exemplo, o da História, o da Filosofia, o da Psicologia e o da Psicanálise. Esta última oferece uma série de reflexões sobre a formação da personalidade, inclusive em sua interface com o gênero. Em uma conversa com a psicóloga e psicanalista Magdalena Nigro, professora do curso de especialização em Sócio-Psicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tentamos nos aproximar da teoria psicanalítica:

Homens e mulheres são diferentes do ponto de vista psicológico?
Cada ser humano possui uma estrutura de personalidade própria. Segundo Freud, essa estrutura é composta pelo "id", "ego" e "superego". O "id" é o domínio da pulsão, do desejo. Porém, a realidade impõe limitações à satisfação do desejo, por exemplo, por meio das experiências de espera. Dessa maneira, do confronto do "id" com a realidade forma-se o "ego", que inicialmente é algo corporal e depois se torna uma estrutura psíquica. Já o "superego" é uma consequência do Complexo de Édipo e introduz a lei na vida da criança. Porém, a estruturação da personalidade ocorre de forma única em cada sujeito. Assim, as diferenciações de gênero aparecem ao longo do desenvolvimento do sujeito, em função desse processo de estruturação da personalidade.

Então, não nascemos sujeitos com gênero. Há um processo que causa essa diferenciação?
Nascemos com diferenças anatômicas. O corpo do homem e o corpo da mulher são diferentes. Mas a identidade de gênero, masculina ou feminina, é algo que no entendimento da psicanálise vai sendo construída ao longo do tempo, como consequência das vivências do sujeito na vida familiar e social.

Como as teorias psicanalíticas entendem o processo dessa diferenciação?
O bebê quando nasce recebe um nome de mulher ou de homem, segundo seu sexo biológico. Dessa forma será identificado como sendo do sexo feminino ou masculino. Porém, a identificação sexual e a identidade de gênero serão constituídas a partir das identificações, fundamentalmente, com o pai e com a mãe. Imitando o pai ou a mãe, brincando de professor/a, médico/a, etc., o menino e a menina ingressam no universo do feminino e do masculino por meio da identificação com essas figuras. No final do complexo de Édipo, a menina se identifica com a mãe, como mulher, e o menino com o pai, enquanto homem. Assim, projetam-se no futuro, para fora de sua família original, como homem ou mulher, iniciando seu caminho para a feminilidade ou masculinidade.

REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: CosacNaify, 2007.
MAUSS , Marcel. "As técnicas do corpo". In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: CosacNaify, 2003.
MEAD , Margareth. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 2000.


Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/33/artigo208724-1.asp. Acesso em 25 jul 2013.