Concília Ortona
Ser transexual é uma escolha? Crianças percebem seu
transtorno de identidade de gênero? É ético possibilitar o início da transição
para a mudança de sexo a adolescentes? Questões sobre estes temas delicados – e
pouco abordados – voltaram à tona no Brasil, em julho, quando o Ministério da
Saúde (MS) lançou duas portarias em 24 horas: a inicial, entre outros pontos,
antecipava, de 18 para 16 anos, o emprego de hormônios a transexuais, e de 21
para 18, a operação, no âmbito do SUS. A norma seguinte derrubou a anterior,
até a “definição de protocolos clínicos e de atendimento”.
Enquanto as discussões tomam forma no País, a Ser Médico
entrevistou duas autoridades médicas norte-americanas no assunto, que, além de
explicações técnicas, transmitem pontos de vista de protagonistas dessa
história: são transexuais. A primeira parte da entrevista focaliza a
ginecologista Marci L. Bowers, 55 anos, que foi Mark até os 40 – tendo,
inclusive, se casado e sido pai de três filhos. Figurando na lista dos Melhores
Médicos Norte-Americanos, em 2002 e 2003, atualmente é especialista em mudança
de sexo. Na segunda, quem fala é o médico Ben Barres, 58 anos, PhD e presidente
do departamento de Neurobiologia da Stanford University School of Medicine. Com
42 anos ainda era Barbara e, apesar de hoje ser oficialmente homem, indigna-se
contra pares que sugerem “aptidão intrínseca” do sexo masculino à Ciência. Em
ambos os casos, pode-se observar o equívoco de restringirem-se as opções
profissionais de transgêneros a determinadas carreiras. Confira, a seguir, as
duas entrevistas.
Ser Médico – No Brasil, tentou-se antecipar o início do
processo de mudança de sexo, iniciativa derrubada provavelmente por pressões
religiosas e/ou políticas. Um adolescente com 16 anos consegue saber, com
certeza, se é transexual?
Marci L. Bowers – É vergonhoso e perigoso política e
religião desempenharem quaisquer papéis na tomada de decisão médica. De
qualquer modo, sou sensível a tal questão. Nos EUA, como em outros locais do
mundo, vemos uma população cada vez mais jovem solicitando hormônios e
cirurgia. Nem sempre são situações fáceis de se lidar, pois nosso juramento nos
impede de tomarmos medidas, quando riscos excedem os benefícios. Em geral, em
transexuais, sentimentos confusos quanto ao gênero começam bem cedo, antes da
puberdade, sugerindo a existência de uma base biológica de gênero. Só que é
preciso cuidado. Apenas um terço das crianças com comportamento não compatível
com o sexo biológico vai se tornar um adulto transexual. Por outro lado, o
agravamento do desconforto, pela puberdade, é altamente preditivo de identidade
de gênero contrária. Pela minha experiência, um bom momento – o início da
transição – é a partir dos 17 anos, quando parece haver a combinação perfeita
de idade, maturidade e apoio dos pais, necessários para resultados cirúrgicos e
sociais bem-sucedidos.
SM – Quando a senhora percebeu que era mulher, depois de
viver por tantos anos como homem? Houve horas em que pensou: “posso manter-me
como marido e pai, e continuar feliz”?
MB – Sempre pensei em mim como do gênero feminino, mas não
conseguia colocar isso em palavras. Naquele tempo, nos anos 60, nem sabíamos a
maneira correta de chamar esse tipo de comportamento. Sentia-me esquisito,
constrangido e sozinho em meus pensamentos. Bem que tentei dar um jeito de ser
machão na adolescência, mas a “persona masculina” simplesmente não se encaixava
bem em mim. De forma inconsciente, sabia da disforia de gênero o tempo todo.
Muitas das minhas memórias mais antigas e pungentes vinculam-se ao travestismo.
Por exemplo, lembro-me de minha mãe chorando, em 1963, porque o presidente
Kennedy havia sido assassinado, e ficar mais assustada ainda ao se deparar
comigo, com cinco anos, com o vestido de chiffon amarelo da minha irmã.
Gostaria de ter feito a transição ao sair do ensino médio, aos 19 anos, mas
faltavam coragem e dinheiro. O casamento e a chegada das crianças foram
importantes em minha vida adulta, mas perpetuaram meu sacrifício por mais 21
anos, quando finalmente realizei meu destino como mulher. A verdade é que
chegou a um ponto em que viver como homem parecia cada vez mais perigoso para a
minha saúde mental.
SM – Talvez por preconceito, no Brasil os transexuais
parecem ter oportunidades profissionais restritas. Vemos dançarinos, artistas,
cabeleireiros, maquiadores, mas raramente médicos ou professores
universitários. Acontece o mesmo nos EUA?
MB – Nos EUA, houve um relaxamento dos papéis estipulados
por gênero, masculino e feminino, refletindo os avanços sociais conseguidos
pela população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). A
ideia de que alguém possa ser transexual, e trabalhar como advogado competente,
médico ou piloto de avião, reflete essa mudança de atitude. Há 20 anos isso
seria inimaginável. Quem se classificasse como transgênero seria visto como
mentalmente desequilibrado, na melhor das hipóteses, ou psicologicamente
perturbado, na pior.
SM – A senhora já foi considerada por seus pares do Conselho
de Pesquisa Americano como um dos Melhores Médicos da América. A que atribui
tal reconhecimento?
MB – Durante os 20 anos em que atuei como obstetra, era
visto como um profissional compassivo e carinhoso. Essa reputação permaneceu em
meu trabalho atual, como cirurgiã especializada em transgenitalização. Depois
de ajudar cerca de 2.500 bebês a nascer, fiz meu último parto em 2007. Foi uma
época maravilhosa. Sinto falta, principalmente, da intimidade do momento e da
alegria de trazer o potencial humano ao mundo. De certa forma, no entanto,
mudar a genitália de alguém permite também uma espécie de renascimento para a
verdade. Até agora, realizei mais de 1.100 operações do sexo masculino para
feminino e cerca de 250, do feminino para o masculino.
SM – Falando sobre este assunto, já enfrentou algum conflito
de interesse, por ser transexual e possibilitar mudança de sexo a outras
pessoas? Por exemplo:“será que minha experiência influenciou na decisão deste
paciente”?
MB – Engraçado... Sabe que ninguém nunca havia me feito essa
pergunta antes? Sinceramente não enfrento nenhum conflito, pois estou no fim da
engrenagem. Antes de chegar à cirurgia, os pacientes já vivenciaram todas as
dúvidas e indefinições, abriram o jogo com familiares e amigos, com psicólogos
e psiquiatras, além de terem usado hormônios do sexo oposto, durante, pelo
menos, um ano. De qualquer maneira, faço o papel de “advogado do diabo”,
falando a respeito de prós e contras, além de voltar no tempo a respeito dos
fatos que culminaram em sua decisão. Se ainda assim insistirem, estão prontos.
Ninguém nunca me acusou de ter interferido indevidamente, e quase nunca ouço
algum paciente reclamando de que cometeu um erro. Na verdade, a pergunta mais
fascinante talvez seja “por que há tão pouco arrependimento?”. O que mostra o
quanto o gênero é algo pessoal e, se estiver errado, impossível de se ignorar.
SM – O que diria a colegas que alegam “objeção de
consciência” à cirurgia de mudança de sexo, comparando-a à “mutilação”?
MB – Machos e fêmeas são, biologicamente, bem mais parecidos
do que diferentes. Todos surgimos como embriões do sexo feminino, e os sinais
biológicos e hormônios que alteram nossos caminhos na região genital são bem
discretos. Na realidade, o que nos separa, na infância, são os limites trazidos
pelas expectativas sociais em relação a meninos e meninas. Além disso, há um
grande número de bebês nascidos com condição intersexual, com genitália nem
essencialmente masculina nem feminina. Como a sociedade mantém-se
desconfortável com algo que não seja estritamente masculino ou feminino, logo
após o nascimento chamamos rapidamente especialistas, como geneticistas e
cirurgiões pediátricos, para suavizar essas confusas situa¬ções. Assim, a
partir de uma lógica biológica, pode-se ver por que faz tanto sentido
oferecermos mudança de sexo, quando essa se traduz em melhoria da qualidade de
vida. Transexuais são mais felizes após a transição, isso é fato. Comparar essa
lógica à mutilação ou a fetiches referentes à amputação corresponde a uma
tática para assustar os desavisados. É como alertar os pacientes de que a
remoção do apêndice pode levar ao Mal de de Alzheimer.
SM – Já se sentiu discriminada por colegas ou pacientes?
MB – Se ocorrer alguma discriminação, é idêntica àquela
contra qualquer outra de nós, mulheres. Mas, pensando bem, médicas lidam com
dificuldades específicas. Certa vez, uma paciente solicitou um “cirurgião de
verdade”, enquanto eu lhe explicava detalhes de sua histerectomia. Da outra, me
peguei usando mais calças e jaquetas, a fim de ganhar mais credibilidade
profissional. Recentemente, fui apresentada por um colega como: “esta é a nossa
médica transexual”. Já pensou como seria se introduzisse alguém como: “este é o
meu advogado judeu”. Ou: “conheça o meu contador mexicano”. Ou: “você vai
adorar a comida preparada por nosso chef bissexual”. Sim, enfrento mais tensões
e desafios do que outros, em muitos aspectos. Mas, como profissional
adequadamente remunerada, tive vantagens. Arcar com minha cirurgia foi uma
delas. Isso seria bem mais difícil para um transexual que vive nas ruas ou que
trabalha em uma oficina mecânica.
SM – Por que decidiu ajudar, gratuitamente, mulheres que
passaram pela terrível experiência de amputação de clitóris?
MB – Em 2007, Nadine Gary, diretora da organização
internacional Clitoraid, perguntou-me se queria aprender uma técnica
desenvolvida em Paris, por Pierre Foldes, para a reconstrução de clitóris
mutilados por motivos culturais. Aceitei sem hesitar. É um pequeno sacrifício
em repúdio a esse crime contra a humanidade. Só anos mais tarde soube que mais
de 30 ginecologistas haviam declinado. Existem céticos que duvidam da eficácia
da operação, mas ela funciona, pois, na maioria das vezes, boa parte do órgão
permanece sob a pele. Ao apelar à técnica, em parte, as mulheres pensam na
função sexual. Só que, principalmente, querem recuperar a identidade perdida.
Geralmente se sentem violadas, envergonhadas e diminuídas.
SM – Como é sua relação com seus filhos? Hoje, a senhora diz
preferir relacionamentos amorosos com mulheres, em vez de homens. Isso não leva
a dúvidas de que sua essência continua sendo masculina?
MB – Meus filhos são fantásticos. A mais velha terminou a
faculdade e a outra se prepara para a escola de Medicina. Meu filho tem 17
anos, frequenta o ensino médio e mora comigo. Felizmente, minha ex-esposa
manteve-se como um grande apoio e amiga. Depois da transição, eu saía
exclusivamente com homens, e não tinha dificuldade em atraí-los. No entanto,
com o tempo, descobri que faltava uma certa conexão emocional, pelo menos, em
relação àqueles que conheci. Parecia ainda que se sentiam meio intimidados com
a minha posição, como médica conhecida. Seria melhor classificar-me como
bissexual. A tal conexão emocional acontece atualmente com a mulher com quem
vivo há cinco anos, que também é médica.
Barres: transexual feminista
Ser Médico – O senhor é um cientista respeitado, sendo,
inclusive, presidente do Departamento de Neurobiologia, em Stanford. Por ser
transexual, enfrentou mais desafios, comparado a colegas?
Ben Barres – Minha família, amigos e alunos têm me dado um
apoio incrível, desde que anunciei a mudança de sexo, 16 anos atrás. Confesso
que, na época, fiquei preocupado com o fato de que minha carreira pudesse
acabar, que os colegas não compreendessem, e os estudantes não viessem mais ao
meu laboratório. Felizmente, meus medos foram exagerados. Não estou ciente de
qualquer financiamento perdido, artigos não publicados, colaborações em
trabalhos não aceitas, ou convites para congressos cancelados pelo fato de ser
transexual. Não significa que não tenha havido alguma discriminação, só que,
pelo visto, não foi relevante. Minha situação pode ter sido diferente da de
outros – por viver na Baía de São Francisco, região receptiva dos EUA, e atuar
em uma carreira em que é amplamente aceita a ideia de que as diferenças humanas
são fundamentais para impulsionar inovação e sucesso na academia. É preciso
considerar também que a transição me tornou um homem, em uma sociedade menos
propensa a aceitar mulheres em certas áreas. A história de cientistas mulheres,
transgêneros do masculino para o feminino ou de gays, pode ser menos positiva.
SM – É mais difícil ser um cientista do sexo feminino do que
do masculino? É mais difícil ser mulher do que homem?
BB – A cientista transexual Joan Roughgarden disse bem: em
nossa sociedade, se você é mulher, é considerada incompetente até provar o
contrário. Se é homem, é competente, até prova em contrário. Portanto, ao longo
de suas vidas, homens parecem contar com uma vantagem constante, enquanto as
mulheres, com uma desvantagem, que nem percebem, pelo menos enquanto são
jovens. Essa diferença simples, em forma de expectativa social, pode ser suficiente
para explicar diferenças de realizações entre homens e mulheres.
SM – Por que criticou colegas que diziam que “a razão pela
qual há menos mulheres do que homens em Ciência e em cátedras de Engenharia e
Matemática é que mulheres não contam com níveis elevados de ‘aptidão
intrínseca’ exigidos para essas carreiras”?
BB – Larry Summers (economista norte-americano, secretário
do Tesouro no governo de Bill Clinton) e muitos homens antes dele usaram o mote
“quanto mais gênios, mais idiotas”, para argumentar que os cérebros masculinos
são mais inconstantes – prontos para ir além da normalidade e linearidade –, de
modo que haverá um maior número de homens talentosos do que de mulheres
igualmente capazes. Não há estudos que confirmem tal raciocínio e, de fato, há uma
quantidade cada vez maior de informações contra ele. Simplesmente não
conseguimos prever o motivo de algumas pessoas se tornarem grandes artistas,
cientistas ou inventores. Tentou-se avaliar, por meio de testes de QI e de
matemática, mas acontece que vários ganhadores do Nobel não possuem QI de
gênio, e muitos gênios não alcançam grandes feitos.
SM – No decorrer de seus estudos, o senhor encontrou, ou
procurou, alguma explicação na Neurobiologia do por que alguém nasce com o
corpo contrário à sua essência?
BB – É uma pergunta fascinante. É evidente que existem
circuitos neurais que controlam e moldam os comportamentos específicos de
gênero. Por exemplo, há evidências de que a exposição a hormônios sexuais
exógenos (de causas externas) ou a produtos químicos chamados “disruptores
endócrinos”, que imitam os hormônios, é capaz de perturbar o desenvolvimento de
circuitos cerebrais e de alterar comportamentos específicos de gênero. Estudos anteriores
mostraram que as “filhas de DES” (meninas expostas, enquanto fetos, ao
dietilestilbestrol, antineoplásico que inibe a secreção de determinados
hormônios) são dez vezes mais propensas ao lesbianismo do que as demais. Além
disso, há alguma evidência de que “filhos de DES” são mais propensos ao
transexualismo. Quando eu era um feto, fui exposto a uma droga à base de
testosterona, e suspeito fortemente de que esta tenha masculinizado meu
cérebro, como ocorre com fetos de macacas. No entanto, para a maioria dos
transexuais, não há histórico de tal exposição, sendo ainda um mistério do por
que eles são transgêneros. É muito provável que as variações genéticas sejam as
responsáveis. Enquanto muitos consideram que ser LGBT corresponde a uma
escolha, muitos de nós afirmamos estar cientes de sua diferença desde crianças
pequenas. Ninguém optaria livremente por enfrentar a angústia emocional e o
prejuízo social que surgem de tal “escolha”, a menos que conseguisse viver de
um modo coerente à sua identidade sexual inata.
Disponível em
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=694. Acesso em 23 mar 2014.