Mostrando postagens com marcador Diguê. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Diguê. Mostrar todas as postagens

sábado, 15 de dezembro de 2012

"Não é uma vagina que deixa uma pessoa feliz"

Patrícia Diguê
17.Fev.11 

Ela nasceu Leandro Cerezo, filho do ex-jogador de futebol Toninho Cerezo com sua primeira mulher Rosa Helena. E hoje é uma das modelos mais requisitadas do mundo da moda. Na última São Paulo Fashion Week, desfilou com exclusividade para o estilista Alexandre Herchcovitch. No mês passado, causou polêmica novamente aparecendo na capa da revista britânica “Love” beijando a top Kate Moss. Antes, já havia chocado posando completamente nua para a Vogue Paris (de agosto de 2010), escondendo parcialmente o pênis com a mão.

Transexual assumida e à espera da cirurgia de mudança de sexo, a modelo de 28 anos e 1,80 metro tem receio de falar com a imprensa brasileira devido às fofocas que surgiram no ano passado de que seu pai não a aceitava. Lea T mora na Itália, onde cresceu por conta do trabalho de Cerezo. E começou a carreira de top model quando o estilista da Givenchy Ricardo Tisci, para quem ela trabalhava como assistente pessoal, resolveu colocá-la na passarela. Por causa de Ticci é que passaram a chamá-la de Lea T. Apesar de magoada com as fofocas sobre sua família, Lea falou à Istoé com exclusividade em sua rápida passagem pelo Brasil. E contou um pouco sobre como é ter uma sexualidade fora do convencional em países tão conservadores como o Brasil e a Itália, sobre a necessidade que sente de esclarecer o que é o transexualismo e criticou a forma como o assunto foi colocado no Big Brother Brasil.

ISTOÉ - Por que você demonstrava um pé atrás em voltar ao Brasil?
Lea T - Isso é normal quando você sofre alguma coisa e fica machucada, mas depois cicatriza e passa, sempre cicatriza. Mas eu tinha meus motivos, todo mundo sabe, porque falaram coisas feias do meu pai, mentiras, falaram um monte de mentirada, inventaram umas coisas sobre meu pai, que ele não me aceitava, tudo mentira. Eu não sei quem começou esta coisa.

ISTOÉ - O seu relacionamento com ele é distante?
Lea T - Não temos relacionamento distante, meu pai é separado da minha mãe, temos relacionamento como qualquer filho que foi separado do pai, porque ele não morava em casa com a família. Eu beijo meu pai, sempre vou visitar, vejo duas três vezes ao ano, porque ele mora aqui e eu na Itália, mas a gente se fala pelo telefone sempre.

ISTOÉ - É por causa disso também que você tem receio de dar entrevistas no Brasil?
Lea T - É. Porque foi uma maldade. Pensei: o que vou fazer lá? Para escutar coisas piores ainda? Você fica triste, mas depois conheci a galera da Way (agência de modelos que a representa no País) e minha família falou que as coisas já não eram tão assim, que as pessoas tinham mudado a cabeça, então decidi vir.

ISTOÉ - Como foi o convite para desfilar para o Herchcovitch?
Lea T - Eu tinha falado para a minha agência que não iria aceitar qualquer convite, aí eles me ligaram falando da proposta do Herchcovitch, disseram que era a linha que eu gosto, já conhecia o trabalho dele.

ISTOÉ - Se sentiu muito assediada chegando por aqui?
Lea T - Está sendo tranquilo, todo mundo muito legal, nunca fui tão bem tratada em toda a minha vida.

ISTOÉ - Quais os próximos trabalhos?
Lea T - Volto para a Itália, fico um dia, deixo as malas, vou para Chicago e em seguida Nova York para os desfiles.

ISTOÉ - Você acha que o comportamento das pessoas com relação aos transexuais realmente está mudando no Brasil?
Lea T - Mais ou menos. Isso não muda rapidinho, o povo está me aceitando melhor pelo fato de eu estar fazendo trabalhos grandes, isso meio que cala a boca das pessoas. Mas eu continuo não vendo um transexual trabalhando em um hotel, trabalhando em um banco, em lugar nenhum, então ainda tem preconceito.

ISTOÉ - Os transexuais ainda precisam se esconder então?
Lea T - Claro. Prostitutas, são todas prostitutas, porque não têm oportunidade de trabalho.

ISTOÉ - Você também teve a mesma dificuldade?
Lea T - Eu tive. Na Itália é pior do que aqui. Por causa do Vaticano, o povo é muito preconceituoso, então não conseguia arrumar emprego, e bate aquele desespero.

ISTOÉ - O que você fazia antes de entrar no mundo da moda?
Lea T - Antes eu era um menino, diferente, mas encontrava trabalho. Eu trabalhava de assistente, era só mais um gay, que é mais aceito, apesar de ainda ter muito babado sobre isso. Mas quando virei transexual, aí o negócio mudou.

ISTOÉ - Como assim virou transsexual?
Lea T - Transexual significa uma transição sexual, então você começa uma transexualizacão. Você nasce com uma síndrome de identidade de gênero, até uns seis anos de idade se vê apenas como uma criança, mas quando começa a se identificar com alguma coisa, quando começa a entender, é que começa a se ver nem como homem nem como mulher, mas você ainda não é uma transexual, você vira transexual quando começa a fazer terapia e a ser seguida por médicos para mudar de sexo.

ISTOÉ - Você sempre sentiu a necessidade de mudar de sexo?
Lea T - Sim, mas não posso falar muito sobre isso por causa do contrato com a Oprah (Lea firmou contrato com a apresentadora americana Oprah Winfrey para uma entrevista exclusiva onde falará sobre sua cirurgia).

ISTOÉ - Quando será a cirurgia e por que ela é importante?
Lea T - Ainda não tem uma data exata. É uma questão estética, se você não se sente bem com seu pênis, aí terá uma coisa mais coerente com seu corpo e sua mente.

ISTOÉ - Isso vai te fazer mais feliz?
Lea T - Não, não é uma vagina que deixa uma pessoa feliz. Vai facilitar minha vida a nível de documento e vai me deixar numa questão estética melhor, vou viver melhor esta coisa, por causa da profissão e tudo. Mas não traz felicidade isso, senão todo mundo fazia. E todas as mulheres seriam felizes.

ISTOÉ - O que é mais importante, a cirurgia ou documento?
Lea T - Os dois são muito importantes quando se decide fazer uma coisa destas. Eu acho desaforo, deveria existir o homem, a mulher e o transexual, mas a lei nos ignora, então eles te põem como mulher, mas não é uma mulher, apesar de ter uma cabeça de mulher, mas não é.

ISTOÉ - Como é na hora de ter que mostrar sua documentação com um nome masculino? É constrangedor?
Lea T - É, nossa, na Itália, eles te tratam igual um lixo.

ISTOÉ - E no Brasil?
Lea T - Aqui eles são delicadérrimos nestas horas, nunca tive um problema deste tipo no Brasil, são finérrimos. Lá tem o Vaticano, menina, o bicho pega naquele país. Foram trilhões de situações constrangedoras, falam que você é puta, isso e aqui, é difícil, muito difícil.

ISTOÉ - E como você reage diante de uma situação assim?
Lea T - Eu brigo, eu não sou de ficar calada. Eu luto pelos meus direitos, não estou fazendo nada de errado para ninguém, então caio em cima mesmo.

ISTOÉ - Você se sente como uma espécie de porta voz dos transexuais?
Lea T - Eu sei que sou uma das poucas que conseguiu um trabalho, mas não me sinto como porta voz, acho que ninguém é porta voz de ninguém, entendeu? Cada um tem que seguir a própria personalidade, a própria vida, ter honra da própria vida. Eu consegui um trabalho, diferente de várias, e isso pode ser uma mensagem legal para elas, isso é importante.

ISTOÉ - Mas você, mesmo que não queira, acaba sendo um exemplo não é?
Lea T - Claro, um exemplo de que não existe só aquela mesma estrada, que você pode fazer outras também.

ISTOÉ - Como você viu a presença de uma trans no Big Brother Brasil?
Lea T - É muito delicada isso, eu achei que essa coisa de Big Brother mostrou que o Brasil ainda não está pronto para isso. Eu não sou superior a ninguém, mas eles quiseram por uma transexual só porque está se falando muito em transexual, para levantar a audiência, eu achei que foi uma coisa meio barata. Ela (Ariadna Thalia) é uma menina linda, vitoriosa, lutadora, pelo que eu entendi da história dela, ela teve uma história dura. Mas o problema é que, como já se fala tão pouco em transexuais, se você põe uma em um programa como esse precisava ser algo menos estereotipado. Pelo amor de Deus, ela é foférrima, mas tem que por alguém que possa mudar essa imagem. Não se pode colocar um transexual lá e ficar perguntando “qual é a transsexual?”, tipo “cadê o Wally?. É um nível muito baixo e não ajuda o povão a entender estas coisas. Acho que é diminuir uma luta que poucas transexuais fazem. Acho que sair dizendo “Eu tenho a honra de ser a única transexual do Big Brother” não contribuiu. Eu não tenho a honra de ser a única modelo, eu vou ter a honra de ser a única médica, que curou uma doença, honra de ser como a presidente da Lancôme, que é uma transexual, aí sim.

ISTOÉ - E como fazer as pessoas entenderem?
Lea T - É difícil, porque elas apontam o dedo na minha cara. Aí eu tento explicar para as pessoas que elas estão apontando o dedo para uma pessoa que sofre, que vive como você e que tem muito mais problema do que você. E que uma transexual não é uma pervertida. Por isso que dou entrevistas e falo tanto a respeito. Seria mais interessante se essa trans do Big Brother tivesse falado “eu sofro, passei por isso e aquilo”, em vez de dizer dane-se o mundo.

ISTOÉ - Por que você acha que o mundo da moda te acolheu?
Lea T - O mundo da moda me acolheu porque eu comecei com uma pessoa que é muito influente no mundo da moda (Ricardo Tisci) e eu fiz esse projeto de usar isso para passar uma mensagem, para parar de se esconder. Ser modelo aconteceu por acaso, mas a coisa mais interessante é passar uma mensagem, quando a pessoa me dá um microfone eu grito que sou um transexual. Eu tenho prazer claro de sair em fotos bonitas e ir a desfiles, mas eu acho que isso não tem que ser o fundamental.

ISTOÉ - O que poderia ser feito no Brasil para que os transexuais tivessem mais qualidade de vida?
Lea T - Você não tem apoio financeiro para mudar o seu corpo, porque quando você nasce e se vê em um corpo de homem, precisa de ajuda para se transformar, para não ficar coma aquela coisa ridícula, quer dizer, não ridícula, mas aquela coisa que você não gosta. Não existe uma facilitação para fazer a cirurgia, então deveria haver apoio para isso. Por exemplo, você tem pelo de homem e tem que tirar esses pelos, com laser, e o laser custa R$ 1 mil a sessão. Você quer por peito ou tem um queixo enorme, masculino, são coisas que incomodam a gente em um nível muito forte, porque você olha no espelho e vê traços de homem, o que faz com que você viva mal seu corpo. Quando fica comprovado que pessoa é transexual, precisa ajudá-la a fazer isso, senão por isso que são todas prostitutas, porque você vive o corpo errado, então fica desesperada.

ISTOÉ - O que diria para as pessoas que acham que o sistema de saúde não deveria gastar recursos com este tipo de coisa?
Lea T - Olha, eu vou te dar uma estatística: de cada 10 transexuais, quatro se matam. Tem uma quantidade grande de transexual no mundo, então eu acho que todos têm direito, se tem que dar prioridade para outras coisas, a gente também tem que ter essa prioridade. Tem que ter igualdade. Nós sofremos de uma patologia séria, de identidade de gênero, então não dá para dizer quem tem menos prioridade. É um distúrbio, que precisa de atendimento.

ISTOÉ - Foi para levantar a bandeira pelos direitos dos transexuais que decidiu posar nua?
Lea T - Foi, posei por causa disso. Foi uma foto nua, crua, sem maquiagem, do jeito que você é, feia. Eles quiseram mostrar uma coisa verdadeira, mesmo uma transexual, que não está perfeita, boneca, linda, montada, mas ela existe, ela está na página de uma revista como a Vogue.

ISTOÉ - Foi sua única sessão de fotos nua?
Lea T - Assim que dá para ver o pênis foi a única.

ISTOÉ - Foi difícil?
Lea T - Não. Não gosto do meu corpo, mas não tenho vergonha, eu convivo com ele bem.

ISTOÉ - Tem alguma parte do seu corpo que gosta mais?
Lea T - Tem algumas que eu gosto, outras não.

ISTOÉ - Você se acha bonita?
Lea T - Não. Não acho.

ISTOÉ - Nem nas fotos?
Lea T - Não, não me acho bonita. Eu acho que eu sou um tipo diferente de beleza, um estilo diferente, não sou bonita, com rostinho de boneca.

ISTOÉ - Quem você acha que é bonita?
Lea T - A Raquel Zimmermann (modelo brasileira) acho linda. Eu não sou daqueles que ama as mulheres bonitas, eu gosto das mulheres com imperfeições, amo a Pat Smith (cantora americana), acho ela linda.

ISTOÉ - Você se sente atraída sexualmente por homens ou por mulheres?
Lea T - Eu já experimentei os dois. Eu gosto de dizer que eu gosto da pessoa. Claro que sexualmente eu me sinto mais atraída por homem, hétero. Por isso mesmo que quero fazer a intervenção, para poder ter uma relação mais hétero. Mas isso não significa que depois que eu operar eu me apaixone por uma mulher.

ISTOÉ - Você se sente bem resolvida sexualmente?
Lea T - Não, hoje não. Eu não acho que a relação com alguém que ainda não foi operado seja uma relação hétero, para mim é um relação bissexual.

ISTOÉ - Você está namorando?
Lea T - Não falo a respeito de namoro.

Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/124781_NAO+E+UMA+VAGINA+QUE+DEIXA+UMA+PESSOA+FELIZ+. Acesso em 14 dez 2012.