Alessandra Fernandes Carreira
10/09/2013
É tão vasto o silêncio da noite na montanha.
É tão despovoado.
Tenta-se em vão trabalhar para não
ouvi-lo,
pensar depressa para disfarçá-lo.
“Silêncio”, Clarice Lispector
A descoberta do inconsciente e a invenção da psicanálise,
entre o final do século XIX e o início do século XX, deveu-se em grande parte a
uma atitude fundamentalmente simples de seu fundador, Sigmund Freud: ele se
dispôs a ouvir o que suas pacientes histéricas, até então silenciadas pela
religião e pela ciência, tinham a dizer sobre seu próprio adoecimento.
Nessa escuta, a princípio, Freud lançou mão da hipnose, que
serviu para retirar suas pacientes desse silenciamento, colocando-as a falar.
Essa “limpeza da chaminé”, como foi nomeado esse trabalho por uma das pacientes
de Josef Breuer, parceiro de Freud, recuperava cenas que, após serem recordadas
no estado hipnótico, proporcionavam um notável alívio sintomático. Mas, por
outro lado, esse método revelou-se inapropriado porque trazia dois efeitos
indesejados ao tratamento: 1. existiam pacientes que não se conseguia
hipnotizar e 2. os sintomas histéricos ou retornavam depois de um tempo, ou
ganhavam novos formatos (Freud, 1909).
Tendo obtido, através da utilização da hipnose, a prova de
que era preciso sair do silêncio para que o tratamento pudesse acontecer, Freud
iniciou uma busca por um método de trabalho que permitisse ultrapassar essa
barreira sem, no entanto, alterar o estado de consciência do paciente. Vemos que
ele se deu conta da importância de o paciente poder ouvir o que dizia, enquanto
dizia. Isso significava deixá-lo exposto à surpresa, ao enigma e,
principalmente, ao silêncio.
Nessa busca, que podemos qualificar como ética, Freud criou,
após alguns ensaios, o método da “associação livre”, utilizado até hoje.
Trata-se de o paciente dizer tudo o que lhe vier ao pensamento, inclusive, e
sobretudo, aquilo que ele julgar absurdo ou irrelevante. Vemos aí que Freud fez
uma aposta: a de que o paciente sabe algo que sua consciência afirma
desconhecer, pois há algo silenciado ou, em termos freudianos, recalcado. Com
isso, ele também reconheceu uma insistência do recalcado em retornar, mas de
forma disfarçada, distorcida.
Porém, a aplicação desse método fez Freud deparar-se, em seu
trabalho clínico, com barreiras que ele chamou de resistências, ou seja,
impedimentos para a associação livre, destacando-se dentre elas o silêncio do
paciente. Esse silêncio aparece na sessão sob vários formatos: não ter nada a
dizer, não poder dizer o que pensou ou experimentar uma espécie de “branco”, um
esquecimento.
Essas lacunas, que emergem na associação livre, logo
revelaram-se extremamente importantes no trabalho da análise, já que Freud
reconheceu nelas um apontamento da proximidade do recalcado, isto é, daquilo
que estava silenciado por ser, justamente, o cerne do sofrimento atual do
paciente, sendo sua recordação direta, por isso, severamente evitada pelo
aparelho psíquico (Freud, 1914).
Vemos que não só o silêncio, mas a própria possibilidade de
silenciar durante uma sessão, tornou-se muito importante para o trabalho
psicanalítico, na medida em que se fez índice daquilo que não consegue passar à
palavra e que, por isso, traumatiza. É claro que o esforço de uma psicanálise
vai na direção dessa passagem à palavra, mas esse trabalho não pode ser
forçado. Ele precisa ser realizado pelo próprio paciente, que se autoriza, em
seu tempo e em uma relação transferencial com seu psicanalista, a ultrapassar
essa barreira de silêncio, dissolvendo através da ética do bem-dizer alguns
sintomas que serviam, até então, para trazerem de forma mascarada o que estava
silenciado.
Diferentemente da hipnose, que fornece um comando para que o
paciente fale, Freud introduziu uma nova forma de trabalhar, na qual o paciente
fica exposto ao próprio movimento do inconsciente, caracterizado por uma
espécie de pulsação, que se alterna em abertura e fechamento (Lacan, 1964), bem
como por apresentar caminhos próprios e tortuosos, exigindo um trabalho de
escuta e interpretação. Esse é o meio para o analisante iniciar uma pesquisa
que é fundamental para que uma psicanálise, de fato, aconteça.
Realizada essa demarcação do silêncio como mola propulsora
do tratamento e índice do recalcado, que marcam a própria invenção da psicanálise,
é preciso que agora abordemos uma espécie de duplo estatuto que o caracteriza.
O próprio Freud já o vislumbrou, uma vez que, ao lado desse silêncio que pode e
precisa passar à palavra na cadeia associativa, ele também encontrou um outro:
aquilo que ele chamou de “rochedo da castração”, intransponível e que confere
uma dimensão interminável à uma psicanálise (Freud, 1937). Dito de outro modo:
trata-se de um impossível, que diz respeito ao vazio e que nunca passa à
palavra.
É interessante notar que essa duplicidade é reconhecida
também por Roland Barthes (1978), em referência à língua clássica, sendo que
ele utiliza dois termos em latim para abordá-la. Um deles é sileo, que remete a
uma ausência de movimento e de ruído, uma espécie de virgindade intemporal das
coisas que existe antes de elas nascerem ou depois de elas desaparecerem. É aí
que encontramos a origem de silentes, que pode ser traduzido para o português,
em uma de suas acepções, como “mortos”. Já o outro termo utilizado por Barthes
é taceo, que diz respeito a um calar-se enquanto deixar de falar, isto é, um
silêncio verbal.
Jacques Lacan (1964-1965) também remete a duas formas do
silêncio, utilizando esses mesmos termos em latim. Define taceo como a dimensão
do silêncio que é aquela da palavra não-dita, enquanto sileo é, para ele, um
silêncio fundante, estruturante, que aponta para uma ausência essencial da
palavra, isto é, um buraco de significação, uma impossibilidade de simbolização
(Lacan, 1967) que é, em última instância, a própria morte.
Para abordar as origens desse silêncio estruturante, Lacan
(1964-1965) refere ao grito, expressão primitiva e indiferenciada da
necessidade no recém-nascido que, por estar fora do sentido, convoca o outro a
um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Tal ato tem por efeito
a transmutação do próprio grito em demanda, ou seja, a mera descarga
fisiológica, animada por um desconforto, é tomada como um pedido de um sujeito.
Freud já apontava que a primeira e mítica experiência de
satisfação depende dessa ação do outro. Entretanto, acreditava que, por ela ser
inédita, é também irrecuperável enquanto tal. Ela estabelece, com isso, tanto
uma expectativa e procura por satisfação nos mesmos moldes da experiência
inaugural, quanto uma impossibilidade de reencontro do objeto, ou seja, um
vazio contínuo e constante para o sujeito, que nenhum objeto substituto pode
preencher.
Isso mostra que, para além da demanda, que toma o lugar da
necessidade através de um ato interpretativo do outro, surge também o desejo,
pois há sempre uma insatisfação em toda e qualquer satisfação, há sempre falta.
Dito de outro modo: o significante não dá conta do real, nem tudo passa à
palavra, há sempre um resto. Em virtude dessa impossibilidade, podemos tomar o
desejo, então, como oriundo do próprio silêncio que surge junto com o
significante.
Assim, o grito não se perfila sobre um fundo de silêncio,
pelo contrário: ele o faz surgir como silêncio (Lacan, 1964). Referindo ao
quadro O grito (1893), de Eduard Munch, Lacan chama a nossa atenção para esse
ser de aspecto estranho, que tapa as orelhas e escancara a boca em um grito
que, literalmente, parece provocar e sustentar o silêncio. “O grito faz o
abismo onde o silêncio se aloja.” (Lacan, 1964-1965, p. 217).
Esse abismo obriga o sujeito a uma retomada que Lacan chama
de fantasia: uma construção significante que procura escamotear esse vazio ou,
como nos diz Freud (1908), que procura concertar a realidade insatisfatória e
realizar, sem realizar, o desejo. Assim, Lacan define a fantasia como algo que
se interpõe à verdade, tal qual uma tela colocada no caixilho de uma janela.
Isso é incrivelmente bem ilustrado em uma série de quadros de René Magritte,
que trazem janelas justamente nessa condição de anteparo, especialmente um
deles, intitulado A condição humana, de 1935. Para Lacan, “Seja qual for o
encanto do que está pintado na tela, trata-se de não ver o que se vê pela
janela.” (Lacan, 1962-1963, p. 85). E o que se vê pela janela? Nada.
Vale ressaltar que, embora inconfessável (Freud, 1908), por
estar na lógica significante, a fantasia pode passar à palavra, isto é, ao
saber. Mas, para isso, é preciso ultrapassar uma barreira: a da vergonha e da
culpa. Essa travessia, embora realizada na cadeia associativa, conduz ao
encontro derradeiro com o inominável, com a verdade que só pode ser meio-dita
(Lacan, 1969-1970), o que estabelece a seguinte direção para uma psicanálise: é
preciso atravessar taceo para atingir, embora não dizer, sileo.
Destarte, uma psicanálise trabalha nessas duas formas do
silêncio, buscando trazer à palavra o que deixou de ser dito, por um lado, e
cernindo aquilo que não pode ser dito, ou seja, apontando para essa
impossibilidade estrutural e estruturante de sileo. Embora isso tenha uma
dimensão trágica, tem também uma dimensão fecunda, à medida que libera o
sujeito de uma esperança de completude que o mantém alienado ao desejo do
Outro, desejo esse que se revela, afinal, sem nenhuma substância, mas sim como
pura falta.
Referências bibliográficas
Barthes, R. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Freud, S. (1908). "Escritores criativos e
devaneio". In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, pp. 149-161.
Freud, S. (1909). "Cinco lições de psicanálise".
In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, vol. XI, pp. 13-57.
Freud, S. (1914). "Recordar, repetir e elaborar".
In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, vol. XII, pp. 193-206.
Freud, S. (1937)." Análise terminável e
interminável". In Edição standard das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXIII, pp. 247-288.
Lacan, J. (1962-1963). O Seminário de Jacques Lacan, livro
10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964). O seminário de Jacques Lacan, livro 11: Os
Quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964-1965). Problemas cruciais para a
psicanálise. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife. (publicação para
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Lacan, J. (1966-1967). La logique du fantasme. Seminário
inédito. (mimeo)
Lacan, J. (1969-1970). O seminário de Jacques Lacan, livro
17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lispector, C. (1998). "Silêncio". In Onde
estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco.
Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=91&id=1125.
Acesso em 10 set 2013.