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terça-feira, 12 de maio de 2015

Avanços científicos trazem novos olhares sobre a paternidade

Chris Bueno e Fernanda Grael 
11/05/2015


Um só embrião, mas com o material genético de três pessoas. Parece ficção científica, mas recentemente o Parlamento Britânico aprovou um novo procedimento de fertilização in vitro que utiliza o material genético de um homem e duas mulheres para formar o embrião. O procedimento, que está sendo estudado e discutido desde 2007, tem o objetivo de eliminar doenças genéticas. 

Mutações em genes das mitocôndrias (organelas presentes no interior das células animais, mais especificamente no citoplasma) causam doenças que afetam os sistemas nervoso e muscular da criança, podendo levar ao desenvolvimento de cegueira, epilepsia, retardo mental, fraqueza muscular e problemas cardíacos, entre outros. Mulheres que têm essa mutação transmitem esses problemas a seus filhos, pois as mitocôndrias são recebidas exclusivamente da mãe – elas já estavam no óvulo que gerou o bebê. 

 O que esse novo procedimento faz é um “transplante de mitocôndrias”, ou seja, ele substitui as mitocôndrias mutantes por mitocôndrias saudáveis de óvulos doados. Para isso, transplanta-se o núcleo do óvulo da mãe para dentro do óvulo de uma doadora saudável, contendo mitocôndrias normais. 

“Pensem numa célula como um ovo: o núcleo é a gema e o citoplasma é a clara. No núcleo ficam 99,998% dos nossos genes, que vêm metade do pai (no espermatozoide) e metade da mãe (no óvulo). Já as mitocôndrias ficam na clara, no citoplasma – e elas contêm os outros 0,002% dos nossos genes. O funcionamento correto desses poucos genes é fundamental para que nossas células produzam energia”, explica a bióloga Lygia da Veiga Pereira Carramaschi, professora titular no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biologia (IB) da USP. 

Esse óvulo corrigido é fertilizado pelo espermatozoide do pai, e assim dará origem a um bebê sem as mutações nas mitocôndrias. Geneticamente, ele será 99,998% filho biológico de seus pais e 0,002% da mulher doadora de mitocôndrias. Segundo os pesquisadores, o bebê desse óvulo teria os traços genéticos de sua mãe biológica, mas levaria também o DNA mitocondrial da doadora, ficando livre das doenças que poderiam ser herdadas da mãe. “Daí dizermos que essas crianças terão um pai e duas mães – e aqui, muito cuidado: filho biológico, porque do ponto de vista social, pai e mãe são os que criam a criança”, enfatiza Carramaschi. 

Apesar de poder evitar uma série de doenças genéticas, a técnica gerou grandes discussões. “Apesar de ser uma alteração mínima e por um motivo muito nobre, qual será o limite? Além disso, do ponto de vista legal, deveremos modificar as definições de “paternidade” e “maternidade” para que a doadora de mitocôndrias não venha a ter direitos sobre a criança? De qualquer modo, são questões que devem ser consideradas”, alerta Carramaschi. 

Após a aprovação do procedimento pelo Parlamento Britânico, o diretor da ONG Human Genetics Alert, David King, criticou o procedimento, comparando-o à criação de um “Frankenstein”. “Assim como a criação do Frankenstein foi produzida a partir da junção de partes de muitos corpos diferentes, me parece agora que cientistas e seus assistentes bioéticos ultrapassam o limite do grotesco, das normas da natureza e da cultura humana”, avalia. 

Os cientistas também questionam a segurança do procedimento a longo prazo. A dúvida é se a técnica poderia ter alguma consequência na saúde dessa criança quando ela se tornasse adulta, como maior propensão ao desenvolvimento de câncer, por exemplo. No entanto, a técnica já foi utilizada por um curto período nos Estados Unidos, até ser proibida pela Food and Drug Administration (FDA, agência norte-americana que regula alimentos e procedimentos de saúde). E algumas crianças foram geradas com esta técnica: entre elas Alana Saarinen, nascida em 2000, que hoje é uma jovem saudável. 

Espermatozoide feminino, óvulo masculino 

Criar um espermatozoide feminino parece ficção, mas a ciência vem mostrando que é possível. Cientistas da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, afirmam ter criado espermatozoides a partir de células-tronco da medula óssea feminina – abrindo caminho para o fim da necessidade do pai na reprodução. 

A pesquisa foi publicada primeiramente na revista científica Reproduction: Gamete Biology, em 2007, e ainda está em andamento. No estudo, os pesquisadores extraíram as células-tronco da medula óssea e separaram uma subpopulação especial de células. Elas foram cultivadas em placas de vidro, recebendo substâncias que favorecem a sua diferenciação. Os pesquisadores identificaram, então, a presença de células-tronco espermatogônicas (fase inicial do desenvolvimento dos espermatozoides). 

No ano passado, os cientistas conseguiram transformar células-tronco da medula óssea em espermatozoides imaturos. E o próximo passo seria submeter os espermatozoides primitivos à meiose, um processo que permitiria a maturação, tornando-o apto para a fertilização. A técnica já foi testada em camundongos. 

A princípio, não haveria barreiras para criar espermatozoides femininos por meio desse procedimento. No entanto, a “mulher-pai” só poderia ter filhas, já que não carrega o cromossomo Y. 

Em entrevista à última edição da revista New Scientist, Karim Nayernia, um dos pesquisadores envolvidos no estudo, disse estar esperando a permissão ética da universidade para dar continuidade ao trabalho. “Em princípio, eu acredito que seja cientificamente possível”, disse. 

Além disso, uma pesquisa no Japão vem apontando para a possibilidade de criar não apenas espermatozoides femininos, mas também óvulos masculinos. A pesquisa, realizada na Universidade do Japão, foi publicada na revista Science em 2012. A partir de camundongos transgênicos (com genes de outra espécie), os pesquisadores obtiveram células-tronco embrionárias e pluripotentes induzidas (iPS, derivadas do organismo adulto). A partir dessas células eles geraram células precursoras dos óvulos, colocaram-nas junto a um agregado de células do ovário de roedores e formaram uma espécie de ovário artificial. 

Esse conjunto de células foi implantado em fêmeas de camundongos para concluir o processo de maturação. Quando ficaram maduros, esses óvulos foram extraídos e colocados em “mães de aluguel”, submetidas à inseminação artificial. Após a junção com espermatozoides, os óvulos deram origem a filhotes saudáveis. 

Em tese, pela regressão a um estágio tão primordial de desenvolvimento, seria possível manipular as células para dar origem a espermatozoides. E, indo mais além, seria possível criar espermatozoides a partir de células femininas ou óvulo a partir de células masculinas Ou seja: casais do mesmo sexo poderiam ter um filho biológico, carregando 50% dos genes de cada genitor. 

Clones 

Se por um lado a ciência pode fertilizar um embrião com o material genético de três pessoas, ou gerar espermatozoides femininos e óvulos masculinos, por outro também pode utilizar apenas o material genético de uma única mulher. Esse é o caso da clonagem – procedimento que, no caso de humanos, é proibido. 

Para que ocorra a clonagem humana reprodutiva é necessário uma célula somática, que pode ser extraída do tecido de qualquer criança ou adulto. O núcleo dessa célula é retirado e inserido em um óvulo, depois implantado em um útero (uma barriga de aluguel). “No caso da clonagem humana prescindiríamos da figura masculina, pois seriam necessários óvulos, células da pessoa a ser clonada e útero”, aponta Carramaschi. 

A clonagem é vista como uma possibilidade para casais inférteis, porém, um documento assinado em 2003 pelas academias de ciências de 63 países, incluindo o Brasil, proíbe a clonagem humana reprodutiva. E, de acordo com o documento, o procedimento é ainda muito arriscado, abrindo diversas discussões sobre a ética do processo. 

Em 2002, a diretora Clonaid, a química francesa Brigitte Boisselier, anunciou que havia nascido o primeiro bebê humano clonado. Segundo ela, os pais da criança contrataram a empresa pois o pai era infértil, e o bebê foi gerado com células da pele da mãe. Porém, após intervenção judicial, os envolvidos saíram de cena e nunca foram feitos testes que atestassem a veracidade desse fato, nem a apresentação do próprio bebê. 

Por enquanto, a clonagem reprodutiva é considerada ineficiente. De acordo com os testes feitos em animais, a maioria dos clones morre logo no início da gestação e os outros têm defeitos ou anormalidades. Sem contar as barreiras éticas para levar adiante as pesquisas. 

Sociedade 

Essa mudança do papel do pai – ou mesmo sua supressão – proporcionada pela ciência ainda está longe de acontecer. E ainda que as barreiras sejam ultrapassadas pela ciência, as questões éticas se manteriam. A maior parte da sociedade vê com receio a manipulação genética em embriões humanos. De acordo com a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), assinada no anos 1990, todas as pesquisas na área devem levar em conta suas implicações éticas e sociais. 

“Imagino que, mais do que a ciência, a sociedade já vem modificando a definição do que é ser pai. Quem é o pai biológico? Fácil, o dono do espermatozoide que deu origem à criança. Mas quem é o pai social? Esse é quem cuida”, afirma Carramaschi.

Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=113&id=1367. Acesso em 12 mai. 2015.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ser um homem feminino? Como a publicidade contribui para a desigualdade de gênero

Paula Coruja Fonseca
Temática - Ano XI, n. 04 - Abril/2015 - NAMID/UFPB


Resumo: Neste artigo vamos discutir como o discurso publicitário contribui para a construção da ideia de feminino e masculino e o quanto isso auxilia na reprodução da desigualdade de gênero. Os estudos culturais são nossos referenciais por evidenciar, além da ideologia e estrutura de produção, o sentido que a comunicação e a indústria da cultura produz nos consumidores. Essa perspectiva também ajuda a compreender como as representações sociais e identidades são construídas (HALL, 1999) e problematiza o papel da publicidade. Tensionamos a questão a partir do entendimento de como as ideias do que é masculino e o que é feminino, e os lugares dos sujeitos identificados como tal, são demarcadas pela linguagem (BUTLER, 2008). Por último, analisamos o vídeo “Dove Men Care”, produto midiático que usa humor para apresentar um produto, mas também nos traz pistas sobre o discurso heteronormativo que reforça a desigualdade de gênero. 




quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O consumo como diferenciação deslocando a identidade de gênero

Lícia Frezza Pisa
Centro Universitário de Franca/Uni-FACEF
COMUNICON 2014 - 8 a 10 de outubro 2014


Resumo: O presente trabalho pretende refletir sobre a questão do consumo na constituição de identidades na contemporaneidade e como o consumo como diferenciação e as tendências, enfatizando o desejo e a busca pelo prazer, podem contribuir para o questionamento da identidade de gênero, fazendo com que o consumidor encontre na androginia um modo autêntico de ser ele mesmo, de auto-realização e também uma forma de luxo pessoal com essa identidade cultural, não mais estando preso às classificações de masculino e feminino. O trabalho justifica-se, pois o tema surge ainda tímido e na marginalidade, porém, é preciso atenção para compreender o rumo que o tema irá tomar nas comunicações midiáticas. O objetivo é refletir, inicialmente por meio de pesquisa bibliográfica, sobre as questões de consumo e identidade e como um pode interferir e/ou refratar no outro e vice-versa.



sexta-feira, 25 de abril de 2014

Governo publica portaria com direitos para presos gays e travestis

G1
17/04/2014

A Secretaria de Direitos Humanos, ligada à Presidência da República, publicou nesta quinta-feira (17) uma portaria com normas para o recebimento de presos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros em presídios do país. Entre as normas está a de que aos presos gays e travestis em presídios masculinos deverão ser oferecidos espaços de convivência específicos.

A portaria também prevê que o preso LGBT tem o direito, se preferir, de ser chamado pelo nome social. Além disso, o nome social deve constar no registro de admissão no estabelecimento.

Segundo o texto, que passa a vigorar  a partir desta quinta, data de publicação, as pessoas transexuais masculinas e femininas deverão ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.

Aos presos LGBT será dado o direito de escolher roupas masculinas ou femininas e também de manter o cabelo comprido. As visitas íntimas estão garantidas, como para os outros presos.

O texto ainda garante que o cônjuge do preso LGBT, inclusive do mesmo sexo, receba o benefício do auxílio-reclusão.

A portaria não estabelece sanções para o presídio que não cumprir as normas.


Disponível em http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/04/governo-publica-portaria-com-direitos-para-presos-gays-e-travestis.html. Acesso em 17 abr 2014.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O homossexualismo não vai contra a natureza

Rafael Garcia
21 de junho de 2008

Se o homossexualismo não estimula a reprodução, como ele pode sobreviver à seleção natural? A resposta para essa charada, um quebra-cabeça secular da biologia, está ganhando agora uma resposta coerente, que sobreviveu ao primeiro teste de lógica. Defendida pelo biólogo Andrea Ciani, a nova teoria indica que o homossexualismo masculino tem um componente genético herdado por parte de mãe, e os genes por trás dele são os mesmos que, em mulheres, estimulam a fertilidade.

Ciani, geneticista da Universidade de Pádua (Itália), apresentou as bases da teoria na terça-feira -cifrada em um estudo cheio de fórmulas matemáticas- na revista "PLoS One".

Com longa experiência em estudos com macacos, o cientista tem se dedicado nos últimos anos a um outro tipo de primata: o Homo sapiens. O que ele aprendeu com seu trabalho? "O homossexualismo não é contra a natureza."

Em entrevista à Folha, Ciani abre mão da estatística e traduz o significado de sua teoria.

FOLHA - O que diz seu estudo?
ANDREA CAMPERIO CIANI - Eu publiquei uma pesquisa em 2004 em que mostrei que homossexualismo em homens está conectado com um aumento na fertilidade das mães e avós da linhagem materna desse indivíduos. O que fiz agora nesse estudo para a "PLoS" foi desenvolver isso. Nós já sabíamos o que estava ocorrendo, mas não entendíamos a dinâmica, não tínhamos o modelo correto.

FOLHA - Como vocês criaram o modelo correto?
CIANI - Nós procuramos modelos genéticos que já existiam [para explicar outras características] e seguimos quatro pré-requisitos empíricos. O primeiro é que o homossexualismo está presente em todas as populações humanas. O segundo, que não há nenhuma população em que a maioria das pessoas sejam homossexuais. O terceiro é aquele que tiramos de dados empíricos: que o homossexualismo tende a seguir em famílias pela linha materna. Isso significa que se você é homossexual, há uma probabilidade maior de o seu tio materno sê-lo. O quarto, que achamos em 2004, é que mães e tias da linha materna de homossexuais costumam ter proles maiores.

Na literatura científica há muitos modelos para difusão genética de características. Há modelos que testam a difusão com um único "locus" [gene], outros com mais genes. Quando começamos a testar os modelos com dois genes, todos falharam, exceto um, que é esse modelo da "seleção sexualmente antagonística", baseado em dois genes em dois diferentes cromossomos. Um tem que ser no cromossomo X - que os homens recebem apenas de suas mães -, e o outro pode ser nos cromossomos não sexuais. Só esse modelo explicou todos os pré-requisitos que encontramos empiricamente.

Foi uma coisa inesperada. É a primeira vez que um modelo de seleção sexualmente antagonística funciona para uma característica humana. O modelo mostra características peculiares, que dão uma vantagem reprodutiva para um sexo, e dão desvantagem para outro.

O normal é imaginar que um determinado gene dá vantagem para todas as pessoas que o carregam. Mas genes como esses ligados à homossexualidade humana dão vantagem quando estão em mulheres, porque as fazem produzir mais prole, mas ao mesmo tempo criam desvantagem reprodutiva em homens, com a possibilidade de se tornarem homossexuais.

FOLHA - Isso não pode ser causado por um fator social ou psicológico?
CIANI - Nós estudamos apenas os componentes genéticos, mas não estou dizendo que o homossexualismo é determinado pelos genes. Ele é apenas influenciado. Há outros componentes, biológicos, psicossociais, experiência de vida...

FOLHA - Mas como ocorre essa influência? Como é a fisiologia?
CIANI - Eu fiz uma pesquisa sobre isso. É muito difícil, porque tive que estudar mães e tias. Na Itália não é difícil entrevistar homossexuais. Você os encontra em bares gays ou discotecas, e eles costumam estar dispostos a falar. Mas quando você pede para contatar suas mães e parentes, a coisa fica delicada.

Talvez esses genes dêem a elas uma fertilidade maior, porque favorecem uma taxa menor de abortos naturais. Ou, de outra forma, poderia lhes dar uma personalidade mais extrovertida, que facilitasse entrar em relações. Nós achamos uma evidencia tênue de que essas mães e tias têm menos problemas com reprodução e parto, em geral. Já em personalidade, não achamos nada. Mas ficamos surpresos com outra coisa: mães e tias desses homossexuais, durante suas histórias de vida, se sentiram mais atraídas por homens do que as mães e tias de heterossexuais. Então, estamos procurando fatores genéticos que, de alguma maneira, influenciem a androfilia, a atração por homens. Isso significa que, se você for mulher, você se sente mais atraída por homens e, se você for homem, se tornará ligeiramente mais atraído por homens e pode acabar se tornando homossexual.

FOLHA - Mas como isso ocorre na célula? Vocês apontam para algum gene específico, algum hormônio?
CIANI - Eu estudo genética do comportamento. Então, quando eu sei algo, sei que existem genes de como esse traço se comporta. Uma vez que você descobre como o caractere controla o traço, não importa saber exatamente onde ele está. Algumas pessoas que tentam descobrir isso têm razões com as quais eu não concordo. Caçadores de genes às vezes querem vender uma patente envolvendo a localização do gene para fazer negócio. Poderiam, aí, sugerir algo que possa evitar que seu filho se torne gay ou sua filha lésbica. Não concordo com isso. Estou interessado na natureza humana, não em "vender" um filho "melhorado" para quem quer que seja.

FOLHA - Mas seu trabalho pode ajudar os caçadores de genes.
CIANI - Sim, mas agora eles teriam uma restrição maior. Isso não é uma doença, é um traço que confere vantagem reprodutiva a um dos sexos e desvantagem a outro. Se alguém interferir aí, pode mudar a orientação de um filho, mas também pode influenciar de maneira ruim a sua filha. Se há um gene ali e não é o gene de uma doença, significa que existe uma razão para ele estar lá.

FOLHA - Gays se sentirão melhor ao saber que a natureza, não só a criação, influencia suas opções?
CIANI - A comunidade gay sempre fica muito infeliz quando pessoas falam sobre esse assunto e os jornalistas começam a usar manchetes como "Descoberto o gene gay". Isso é besteira. Nós, geneticistas comportamentais, sabemos há muito tempo que o debate de natureza contra criação é fútil. Todos os genes têm de se expressar em um ambiente. O ambiente influencia a expressão do gene, assim como o gene influencia o ambiente onde ele se expressa. Vou dar um exemplo. Todos nós temos genes que favorecem o roubo, porque se não tivermos o comportamento do roubo, não sobreviveremos em uma emergência onde ele pode ser necessário. Isso não significa que sejamos forçados a sermos ladrões.

Há genes influenciando algumas pessoas, tornando mais fácil para elas optar pela homossexualidade. Ser ou não ser homossexual, porém, é resultado de história de vida, além de genes. O que queremos saber é por que os genes que influenciam a homossexualidade existem. Um gene que reduz a taxa de reprodução das pessoas deveria desaparecer. Esse é o dilema darwiniano da homossexualidade. A posição da Igreja tem sido por muito tempo a de dizer que o homossexualismo seria um vício, um pecado contra a natureza. Com o nosso estudo, podemos dizer claramente que o homossexualismo não vai contra a natureza. Ele faz parte da natureza, e é demonstrado precisamente pela seleção sexual darwiniana.

FOLHA - O sr. também está estudando as lésbicas?
CIANI - Sim. Eu comecei a coletar muitos dados sobre lésbicas dois anos atrás, mas nosso modelo não funciona com lesbianismo. Esse é um fenômeno diferente, com uma dinâmica diferente e uma origem diferente.

FOLHA - O sr. tem dificuldade para publicar seus estudos?
CIANI - Muitos estudos são rejeitados em algumas revistas científicas. Uma hora antes de você me telefonar, um jornalista da revista "Science" me telefonou, porque estava fazendo uma matéria para o "público geral". Foi estranho, porque eu tinha submetido meu estudo para a "Science", antes da "PLoS", e eles rejeitaram dizendo que não era "de interesse geral". Não mandaram nem para os revisores.


Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2106200801.htm. Acesso em 06 jan 2014.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Mais de 40% dos jovens homossexuais não usam regularmente preservativos

Elaine Patricia Cruz
30/07/2013

Cerca de 42% dos jovens homossexuais do sexo masculino nem sempre usam preservativos em suas relações sexuais. O dado foi divulgado hoje (30) pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo com base em dados coletados durante a Parada do Orgulho LGBT (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, transexuais e transgêneros) deste ano, na capital paulista.

“Os adolescentes conhecem o preservativo e conhecem os riscos e as questões das doenças sexualmente transmissíveis, mas o que nós temos certeza é que conhecer o preservativo não garante o [seu] uso. E quando tem um parceiro fixo, esse é um fator importante para se deixar de usá-lo [o preservativo]”, disse Albertina Duarte Takiuti, médica e coordenadora do Programa Estadual de Saúde do Adolescente, em entrevista à Agência Brasil.

Para o levantamento, a secretaria ouviu 108 jovens, de ambos os sexos biológicos, com idades entre 10 e 24 anos, e que se consideram lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Desse total de jovens, 20% disseram que o uso da camisinha nas relações sexuais acontece de vez em quando, mas o número é maior entre os entrevistados do sexo masculino (42% do total).

De acordo com o levantamento, 43,7% dos entrevistados do sexo feminino disseram nunca usar preservativos nas relações sexuais, enquanto entre os homens o percentual é 3,3%. A principal justificativa das mulheres para não usarem o preservativo é o fato delas acreditarem que sexo entre mulheres não necessita deste tipo de prevenção. Entre os homens, o principal motivo para não se usar camisinha é ter parceiro fixo. “As mulheres acreditam que nada vai acontecer. E os homens acreditam que o parceiro fixo garante a relação sexual [sem riscos]. O parceiro fixo não garante, de forma nenhuma, a possibilidade de não se ter risco. Na verdade, a prova de confiança do parceiro fixo é uma ilusão”, disse ela.

Segundo a médica, mesmo em uma relação entre duas mulheres há a necessidade do uso de preservativos ou de cautelas para se evitar a contaminação ou os riscos de se adquirir uma doença sexualmente transmissível. “É preciso desmistificar que o preservativo diminui o prazer. O preservativo é uma película tão simples que pode aumentar o prazer: o contato com a pele fica menor, prolongando o prazer. E, psicologicamente, tira o medo, o risco e a situação de vulnerabilidade. Uma pessoa que tem atividade sexual coberta de mais segurança, tem um desempenho melhor”, disse Albertina.

A pesquisa apontou que a maior parte dos entrevistados  - 87% do total -  acha que o público LGBT é mais vulnerável ou corre mais riscos que os heterossexuais. O principal risco apontado por eles (por 20% do total de entrevistados) foram as doenças sexualmente transmissíveis.

Na capital paulista funcionam duas casas do Adolescente, que oferecem atendimento médico e psicológico a jovens entre 10 e 20 anos. Uma delas funciona em Pinheiros; a outra, em Heliópolis. Há também 21 unidades espalhadas por todo o estado. A Casa do Adolescente oferece atendimento multidisciplinar, com médicos, dentistas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, enfermeiros, psicólogos e professores.

As casas do Adolescente mantém o Disque Adolescente, serviço gratuito de comunicação em que os jovens podem tirar suas dúvidas sobre sexo seguro, anticoncepcionais e relacionamentos afetivos, entre outros assuntos. O serviço funciona de segunda a sexta-feira, das 11h às 14h, pelo número (11) 3819-2022.


Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-07-30/mais-de-40-dos-jovens-homossexuais-nao-usam-regularmente-preservativos. Acesso em 28 out 2013.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Rorschach e a função materna no sujeito transexual

Nadja Tröger; Catarina Bray Pinheiro
Análise Psicológica (2009), 3 (XXVII): 319-330

Resumo: O presente artigo visa analisar, à luz do método Rorschach e numa perspectiva psicodinâmica, a função materna no sujeito transexual e, implicitamente, a bissexualidade psíquica, ambas mediatizadas na relação entre a mente e o corpo. A função materna é concebida no seio do modelo bioniano ♀♂, que permite explorar a dialéctica operante entre o interno e o externo, o Eu e o Outro, o masculino e o feminino. O método Rorschach é perspectivado na sua dimensão intersubjectiva e dinâmica, de acordo com os argumentos teóricos formulados por M. E. Marques, dimensão essa que viabiliza a análise da actividade simbólica. A elaboração dos procedimentos procura, assim, integrar as dialécticas supramencionadas na relação ♀♂. É neste contexto que se inscreve a aplicação do Rorschach a dois sujeitos transexuais (MF e F-M, respectivamente). Os protocolos revelam uma busca contínua de um continente coeso na realidade externa e a dificuldade de articular o duplo no espaço mental. Verificam-se, por conseguinte, movimentos disruptivos nos eixos analisados, bem como dificuldades acrescidas de diferenciação entre o feminino e o materno. A articulação ♀♂ dá conta da não-consolidação da identidade, representando a transformação corporal a solução identitária numa realidade externa.



sábado, 5 de outubro de 2013

"Prostituição entre travestis é necessidade e não opção", diz fotógrafa carioca

Igor Zahir
01/10/2013

É com frequência que as pessoas relacionam travestis com prostituição de rua. Muita gente, ao falar do assunto, menciona de imediato a cena que se transformou em marca registrada: homens com trajes femininos (e corpos muitas vezes modificados a base de hormônios) nas esquinas, esperando clientes em busca de sexo.

O que esquecem é que, por trás disso, há pessoas com vida própria, que além de serem travestis, cuidam de casa, têm um cotidiano como qualquer outro e lutam por igualdade social. Pensando assim, a fotógrafa carioca Ana Carolina Fernandes criou a série “Mem de Sá, 100”. O projeto nasceu depois de quase três anos de observação da rotina das travestis num casarão antigo na Lapa, no Rio de Janeiro. A série, que já ficou exposta no Rio, ganha agora uma mostra na DOC Galeria, em São Paulo, a partir do dia 1º de outubro, com curadoria de Eder Chiodetto. Marie Claire conversou com Ana sobre “Mem de Sá, 100”:

Marie Claire: Quando surgiu a ideia de fazer essa série e com qual objetivo?
Ana Carolina Fernandes: Tudo começou há uns 10 anos. Através de um amigo em comum, conheci a Luana Muniz, travesti de grande influência no Rio de Janeiro, sobretudo na Lapa. Ela me convidou para ir a um show de transformistas em um clube no qual se apresentava. Fui, fiquei fascinada por aquela estética, mas na época trabalhava como correspondente do jornal "Folha de S. Paulo" no Rio e não me sentia capaz de desenvolver o projeto com o envolvimento que gostaria de ter. Fiquei amiga da Luana, nos encontrávamos às vezes e, em 2008, saí do jornal. Em 2010, nos encontramos para um café, a Luana me levou para conhecer o casarão onde ela alugava quartos para cerca de 25 travestis na Lapa e decidi que daria início ao projeto. Sempre tive fascínio pelas travestis, pela estética e universo curiosos (até então bastante desconhecidos para mim). Mas meu interesse era retratar o cotidiano, não a vida de prostituição. Em fevereiro de 2011, dei início à série.

MC: Como era a rotina de fotos?
Ana: A ideia inicial era que eu ficasse em um quarto vazio na casa, para dormir e acordar por lá. Mas isso não foi possível, pois o quarto foi alugado. Então a Luana me deu passe livre, para entrar e sair quando quisesse. Eu ia 3, 4 vezes na semana. Passava 2 semanas sem ir. Não era algo regrado, com prazo. O trabalho foi acontecendo à medida que eu estava lá. Nada foi pré-concebido, nem a ideia de virar exposição. Quando tive as fotos em mãos, mostrei para o Eder Chiodetto, que havia sido meu editor na Folha, ele adorou e passou a ser não só curador como também meu orientador no projeto.

MC: As travestis carregam em sua estética traços masculinos e femininos. Você acha que por clicá-las em suas rotinas diárias, ao invés de seu trabalho nas ruas, essas características ficaram mais aparentes?
Ana: Sem dúvida. Esse era o principal objetivo. Geralmente os fotógrafos, quando estão fazendo trabalhos humanistas, querem dar uma voz a esses grupos. Mas eu tinha interesse em dar um corpo, e não voz. O que queria era mostrar a dualidade, a beleza e a sensualidade que tinha certeza de que existia. Senti necessidade de mostrar essa relação “masculino-feminino” que as travestis trazem, seja na alma ou no corpo. A intimidade do convívio, com certeza, facilitou meu objetivo.

MC: Elas ainda lutam por igualdade social ou já não sofrem tanto preconceito como antes?
Ana: Sofrem muito, sim. A Lapa é uma espécie de gueto, de refúgio das travestis. Mas você não vê tanto elas fora dali. A sociedade ainda discrimina muito e a própria família também. É muito comum que os parentes as coloquem para fora de casa e não as aceitem. Sofrem preconceito, são olhadas de banda. É um universo à parte.

MC: É um mundo paralelo...
Ana: Com certeza. Tanto que algumas vão para a Europa, trabalham, mas são poucas. Nem todas sobrevivem emocionalmente porque, além de viverem à margem da sociedade, vivem num mundo com violência, drogas, HIV.

MC: Drogas e prostituição são realidade dessas travestis?
Ana: Todas as meninas que fotografei são prostitutas. Quanto às drogas e ao HIV, são coisas tristes, porém presentes na vida de muitas. Afinal, elas são prostitutas que, querendo ou não, acabam sujeitas ao risco, além de não realizarem um acompanhamento médico constante. Elas não têm dinheiro para médicos particulares. A Luana até luta com uma ONG por essa causa. Ela consegue com pessoas famosas e anônimas um apoio maior para ajudar as travestis nessa questão da saúde. É algo muito triste porque, quando são bonitas e bem cuidadas, tem quem queira. Quando estão acabadas pela AIDS ou pelas drogas, ficam jogadas. O resultado é abandono e degradação.

MC: As travestis que você clicou fizeram cirurgia de mudança de sexo?
Ana: Não. Elas tomaram hormônios, colocaram silicone, se vestem e agem como mulher. Mas, no trabalho delas, funciona até aí. Os homens que as procuram (muitas vezes, ricos, heterossexuais e casados) querem transar com alguém que tenha características de mulher, mas que na verdade sejam homens.

MC: Qual o maior sonho delas?
Ana: Encontrar um amor. Casar, ter uma vida digna como a de qualquer outra pessoa. Inclusive cliquei uma com um travesseiro com o nome “Cinderela”. Elas têm esse sonho de princesa: alguém que chegue e as tire dessa vida atual.

MC: Então a prostituição, no caso delas, é uma necessidade?
Ana: Sim, claro. Prostituição das travestis é totalmente necessidade e não opção. Não existe emprego para travestis em outra área. Poucas estudaram mais do que o 2º grau. Não fizeram faculdade. Não tem essa parte de educação, até porque muitas vêm de zonas pobres. Já vi casos delas trabalharem em outras profissões, enquanto não sabiam da condição delas. Quando se assumiram, perderam o rabalho. É uma situação muito difícil, delicada, e elas precisam se manter de alguma forma. Já basta não terem o apoio da família. A prostituição é uma das poucas opções que restam.

MC: Enquanto você fazia essa série, alguma história te marcou?
Ana: Duas travestis tinham um relacionamento amoroso há 2 anos e queriam formar uma família. Quer dizer, eram dois homens, que na verdade eram duas mulheres, que se relacionavam e não se consideravam homossexuais e ainda queriam adotar uma criança, formar uma família. Outra que me marcou foi uma que acabou morando na rua, mesmo após ter tido carro e vivido na Europa. Chegou ao fundo do poço por causa das drogas. Houve também um caso de uma travesti que morreu de AIDS e a família não queria deixar ela ser enterrada como mulher. A Luana teve que brigar com a família da garota, pois ela sabia que ia morrer, e afirmou em vida que queria ser enterrada como mulher.

MC: Você acha que a série vai conscientizar as pessoas e diminuir o preconceito?
Ana: Acredito que sim. Esse trabalho teve uma enorme aceitação aqui no Rio, apareceu até em uma revista norte-americana. Só espero que, com isso, as pessoas abram mais a mente, não tenham ideias tão pré-concebidas sobre a sexualidade alheia. Acho que estou, sim, conseguindo isso. Afinal, estamos em 2013, não cabe mais tanto preconceito no mundo, é um absurdo!


Disponível em http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/10/prostituicao-entre-travestis-e-necessidade-e-nao-opcao-diz-fotografa-carioca.html. Acesso em 02 out 2013.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Qual o sexo do seu cérebro? Concepções de gênero, sexualidade e desvio em biomédicas contemporâneas

Marina Nucci
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

Resumo: “Qual é o sexo do seu cérebro?”. Para responder a esta pergunta – tão inquietante e direta – não se leva mais do que cinco minutos. É este o tempo de preenchimento de um “teste de determinação do sexo cerebral”, que pode ser encontrado com facilidade em diversos sites na internet, publicado originalmente por uma das principais revistas de divulgação científica no Brasil. Vinte questões com respostas simples – “sim” ou “não” – sobre hábitos, características e preferências, conferem o resultado capaz de situar o cérebro de uma pessoa em um continuum de masculinidade e feminilidade. Quanto menor o resultado do teste, mais “masculino” seria o cérebro; um escore mediano indica um cérebro “misto”, ou seja, tanto “feminino” quanto “masculino”. Já no caso de se conseguir o número máximo de pontos, vinte, – respondendo afirmativamente a questões como “Geralmente resolvo problemas com mais intuição do que com a lógica”, “Acho fácil saber o que uma pessoa está sentindo só de olhar para seu rosto” e negativamente a “Quando criança gostava de subir em árvores” ou “Fico entediado facilmente” – é sinal de que o cérebro em questão é “muito feminino”. Mas o que quer dizer ter um cérebro “muito feminino”? Ou mesmo “pouco feminino” ou “misto”? Qual a importância do corpo – especificamente, do cérebro – e qual a importância do biológico e do “inatismo” neste cenário?

sábado, 8 de junho de 2013

'Transexualidade deve ser vista como característica', diz psicólogo

G1
15/10/2011

“A transexualidade não pode ter existido antes do século 19”. A afirmação é do psicólogo Rafael Cossi, autor do livro Corpo em Obra. Transexual é a pessoa que biologicamente pertence a um sexo, mas se identifica com o gênero que não corresponde a ele.

“Foi só no Século 19 que surgiu a ideia de que masculino e feminino são radicalmente opostos e tem que haver uma correspondência entre corpo e gênero”, aponta Cossi. Segundo o pesquisador, não havia essa relação antes, e a identidade de gênero não precisaria acompanhar o sexo da pessoa. “Isso [a identificação por gênero] é totalmente uma construção social”, acredita.

Cossi conta que, desde então, a psicanálise tenta definir o que leva uma pessoa a se identificar com um gênero que seria oposto. Ele diz que uma das linhas de pensamento vê a transexualidade como uma forma de psicose, quadro que inclui alucinações e delírios.
“Isso não é necessariamente um delírio”, diz o psicólogo. “Não dá para reduzir a transexualidade à psicose”. Para ele, a transexualidade tem que ser vista simplesmente como uma característica.

“Eu acredito que, assim, essas pessoas vão ter mais liberdade, com menos preconceito, viver melhor”, diz o pesquisador.

O livro Corpo em Obra foi baseado na dissertação de mestrado de Cossi no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). No trabalho, o autor analisou seis biografias de transexuais.


Disponível em http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/10/transexualidade-deve-ser-vista-como-caracteristica-diz-psicologo.html. Acesso em 04 jun 2013.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Homossexualidade pode ser influenciada pela epigenética

Ricardo Carvalho
12/12/2012

Do ponto de vista evolutivo, o fato de a homossexualidade ser algo bastante comum na sociedade humana, ocorrendo em cerca de 5% da população mundial, é intrigante. Como homossexuais produzem menos prole do que heterossexuais, uma possível variação genética relacionada à homossexualidade dificilmente seria mantida ao longo das gerações. "Isso é muito enigmático a partir de uma perspectiva evolucionária: como a homossexualidade pode existir em uma frequência tão alta a despeito do processo de seleção natural?", diz em entrevista ao site de VEJA Urban Friberg, do departamento de Biologia Evolutiva da Universidade de Uppsala, na Suécia. Friberg, ao lado de William Rice, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, e Sergey Gavrilets, da Universidade do Tennessee, ambas nos Estados Unidos, pode ter encontrado uma resposta: o fator biológico ligado à homossexualidade não estaria na genética propriamente dita, e sim em um conceito conhecido por epigenética. Os resultados foram publicados nesta terça-feira no periódico científico The Quarterly Review of Biology

A epigenética trata de modificações no DNA que sinalizam aos genes se eles devem se expressar ou não. Esses marcadores não chegam a alterar nossa genética, mas deixam uma marca permanente ao ditar o destino do gene: se um gene não se expressa, é como se ele não existisse.

CONHEÇA A PESQUISA

Título original: Homosexuality as a Consequence of Epigenetically Canalized Sexual Development.

Onde foi divulgada: The Quarterly Review of Biology

Quem fez: William Rice, Urban Friberg e Sergey Gavrilets

Instituição: Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, Universidade de Uppsala e Universidade do Tennessee.

Resultado: O artigo estudou um possível componente hereditário para, a partir de um ponto de vista evolutivo, explicar a homossexualidade. Os três autores montaram um modelo segundo o qual uma marca epigenética (epimarca), que regula a sensibilidade à testosterona em fetos, pode ser transmitida de mãe para filho e de pai para filha e influenciar na orientação sexual.

Essa nova teoria vai ao encontro de outra tese mais antiga, a de que a homossexualidade é definida, ao menos em parte, por um componente hereditário. Pelo menos quatro grandes estudos, publicados em 2000, 2010 e 2011, nos periódicos Behavior Genetics, Archives of Sexual Behavior ePLoS ONE, apontam para esse fator na origem da orientação sexual, a partir de estudos com gêmeos monozigóticos (também chamados de idênticos ou univitelinos, produtos da fertilização de um único óvulo) e dizigóticos (também chamados de fraternos ou bivitelinos, produtos da fertilização de dois óvulos diferentes). 

Epigenética — Imagine o material genético humano como um manual de instruções. Os genes formariam o conteúdo do livro, enquanto as epimarcas ditariam como esse texto deveria ser lido. "A epigenética altera e regula a forma como os genes se expressam", explica a geneticista Mayana Zatz, do departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP). É por meio dos comandos epigenéticos, por exemplo, que o pâncreas fabrica apenas insulina, apesar de as células nesse órgão terem genes para a produção de muitos outros hormônios.

Acreditava-se que os traços da epigenética não eram hereditários, sendo apagados e recriados a cada passagem de geração. Como pesquisas nas últimas décadas mostraram que uma fração de epimarcas é, sim, passada de pais para filhos, Friberg, Rice e Gavrilets julgaram ter encontrado a peça que faltava para montar o quebra-cabeça. 

Sensibilidade – Os três criaram um modelo segundo o qual uma dessas epimarcas transmitidas hereditariamente é o marcador responsável por regular a sensibilidade à testosterona de fetos no útero materno. Ao longo da gestação, tanto fetos masculinos quanto femininos são expostos a quantidades variadas do hormônio, sendo que o fator epigenético estudado no artigo torna o cérebro dos meninos mais sensíveis à testosterona quando os níveis estão abaixo do normal. Isso acontece para preservar características masculinas, podendo inclusive influir na orientação sexual. O mesmo ocorre, mas inversamente, com as meninas. Quando a testosterona está acima do normal, a epimarca funciona como uma barreira, diminuindo sua sensibilidade ao hormônio. 

A partir desse modelo, a homossexualidade poderia ser explicada pela transmissão de epimarcas sexualmente antagônicas. Ou seja: quando o pai transmite seus marcadores, que tiveram a função de torná-lo mais sensível à testosterona, para uma filha. De igual maneira, esse material hereditário pode ser passado de uma mãe para um filho, tornando-o menos sensível à testosterona.

"Quando os efeitos desse mecanismos (que regulam a sensibilidade à testosterona) não são apagados entre as gerações, eles se expressam na prole do sexo oposto. Isso pode resultar em indivíduos que desenvolvem preferências sexuais pelo mesmo sexo", explica Friberg, da Universidade de Uppsala. "O que fizemos foi colocar pela primeira vez o conceito da transmissibilidade epigenética no contexto de desenvolvimento sexual."

O pesquisador faz questão de ressaltar que ainda não se pode provar que a epimarca específica da sensibilidade à testosterona é hereditária. Para tanto, testes específicos precisarão ser realizados. "Uma grande solidez do nosso estudo é que o modelo epigenético para a homossexualidade faz predições que são testáveis com tecnologia já existente. Se o nosso modelo estiver errado, pode ser rapidamente descartado", escrevem os autores no artigo do The Quarterly Review of Biology.

Outro pesquisador envolvido, Sergey Gavrilets, da Universidade do Tennessee, afirma que mesmo que a teoria da hereditariedade seja respaldada por futuros estudos, o debate está longe de acabar. "A hereditariedade explica apenas parte da variação na preferência sexual. As razões, que podem ser sociais, culturais e do ambiente, permanecerão como um tópico de intensa discussão." 

"Estudo positivo" – Carmita Abdo é coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ela destaca que a nova pesquisa é positiva, uma vez que contribui para a melhor compreensão dos fatores biológicos envolvidos na ocorrência da homossexualidade. "O trabalho é importante porque reforça uma ideia cada vez mais prevalente: a de que a genética — no caso a epigenética — tem influência sobre a orientação sexual."

Essa compreensão científica tem sido importante, segundo Carmita, no combate a mitos que envolveram o tema e que alimentaram interpretações preconceituosas. "Até pouco tempo atrás, achava-se que a orientação sexual era proveniente de uma escolha, como se deliberadamente o indivíduo optasse por ser homossexual. Muito do preconceito contra os homossexuais advém daí", afirma, lembrando que até o início dos anos 90 a homossexualidade era tratada como um transtorno de preferência, e não como uma característica. "Observar um fenômeno pelas lentes da ciência muda a compreensão e ajuda a deixar de lado certas discriminações. Nesse caso em particular, você remove da equação a ideia de que o homossexual é responsável por uma opção que muitos veem como negativa, pejorativa."

Ela ressalva, entretanto, que ainda existe muita incerteza no campo e que a orientação sexual precisa ser encarada como produto de vários fatores. "O estudo reforça a ideia segundo a qual existe uma predisposição que vai ser confirmada ou não a partir de uma serie de influências que vão ocorrer ao longo da vida, algumas delas de ordem cultural, educacional e social. Ele não consagra uma interpretação determinista, nem diz que tudo depende dos genes".

"Nosso objetivo é entender como as preferências sexuais se desenvolvem e evoluem"
Urban Friberg - Professor do Departamento de Biologia Evolutiva da Universidade de Uppsala, na Suécia

Qual o principal objetivo da pesquisa?
Assume-se que indivíduos homossexuais produzem menos prole do que heterossexuais. Qualquer codificação genética para homossexuais deveria, portanto, ser rapidamente removida no processo de seleção natural. Apesar disso, a homossexualidade é relativamente comum entre humanos (cerca de 5%). Além do mais, os melhores estudos disponíveis mostram que há um componente hereditário na homossexualidade. Isso tudo é muito intrigante de uma perspectiva evolucionária: como a homossexualidade pode existir em frequências tão significativas apesar da seleção contra ela? O objetivo da nossa pesquisa foi simplesmente tentar resolver esse enigma, o que nos ajuda a entender como as preferências sexuais se desenvolvem e evoluem.

Como a mudança de foco de genética para a epigenética pode ser explicada?
Nossa principal contribuição é trazer uma explicação lógica para o porquê de a homossexualidade ser algo tão frequente – e para tanto nós mudamos o foco, como causa da homossexualidade, de genes para epimarcas. Nossa teoria sugere que a homossexualidade é resultado de um mecanismo que ajuda as pessoas a desenvolver a preferência por indivíduos do sexo oposto. Quando os efeitos desses mecanismos (epimarcas) não são apagados entre as gerações, eles se expressam na prole do sexo oposto. Isso pode resultar em indivíduos que desenvolvem preferências sexuais pelo mesmo sexo.

Como a comunidade científica lida com genética e homossexualidade?
Houve diversos estudos nos quais os pesquisadores tentaram encontrar genes associados com a homossexualidade. Tais estudos falharam e nenhum gene foi identificado. O resultado disso tudo é intrigante, uma vez que a homossexualidade tem um componente hereditário. Nossa teoria, porém, é capaz de explicar por que a homossexualidade é tão comum e tem um componente hereditário, sem nenhuma codificação genética para esse traço.

Encontrar uma possível explicação biológica ajuda a combater o preconceito?
Atualmente, algumas pessoas acreditam que a homossexualidade é uma escolha pessoal e que indivíduos homossexuais podem ser ensinados a escolher de forma diferente a sua orientação sexual. Eu acredito que encontrar as raízes da preferência sexual mina tais mitos e ajuda as pessoas a melhor entender e aceitar a homossexualidade.

Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/homossexualidade-pode-ser-influenciada-pela-epigenetica. Acesso em 14 dez 2012.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Carros: paixão masculina

Emanuela Zerbinatti

O automóvel é um dos ícones mais poderosos da modernidade, um elemento fundamental, presente na paisagem urbana e determinante na mudança de costumes, estilos de vida e comportamentos. Ainda hoje, mais de um século após sua invenção, é o símbolo da passagem veloz para um futuro cada vez mais avançado, em direção à perfeição tecnológica. De fato, o carro mudou a maneira de percebermos o tempo e as distâncias, alargou horizontes – fez com que nos tornássemos “auto-móveis”. Às vezes nos esquecemos de que se trata de uma máquina e a consideramos quase uma prótese do corpo, capaz de conferir potência e velocidade. Esses atributos, historicamente associados ao sexo masculino, não parecem seduzir tanto as mulheres. Para a maioria delas, o carro é um instrumento como outro qualquer. Para eles, é um objeto de desejo, alvo de afetos intensos. 

Para o psicólogo Francesco Albanese, presidente do laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento em Psicologia (Psicolab), na Itália, que há anos estuda psicologia do trânsito, para entender onde nascem essas diferenças é preciso voltar a Sigmund Freud e à psicanálise. Por estar associado subjetivamente a atributos considerados viris, como velocidade e potência (idéia amplamente reforçada pela propaganda), o carro se presta melhor a ser alvo de um processo de identificação masculina. E onde há identificação, há projeção da própria personalidade. Não por acaso, o homem tende a revestir o carro de significados simbólicos, a ponto de humanizá-lo como se fosse uma garota a ser cuidada ou uma mulher a ser amada. 

Os homens – ou pelo menos grande parte deles- – se tornam incrivelmente mais profundos quando o assunto é carro: não basta olhá-lo, é preciso vivê-lo e senti-lo com os cinco sentidos. Já as mulheres se permitem usar o veículo e, quando ele deixa de ser adequado às suas necessidades práticas, não lhes parece tão doloroso trocá-lo por outro. E, na maioria dos casos, limitam-se à estética e avaliam a relação custo–benefício. Raramente se ouve falar, por exemplo, de uma mulher que “se apaixonou” por um carro antigo e empregou tempo livre e economias na tarefa de restaurar o veículo. 

COM A FAMÍLIA
Se colocarmos homens e mulheres à mesma mesa para falarem de carros, o efeito pode ser hilário, garantem os psicólogos que trabalham com marketing: enquanto eles procuram um modelo potente e veloz, elas querem um produto seguro e, de preferência, fácil de estacionar. Eles adoram o som do motor, elas querem silêncio (até porque desejam ser ouvidas quando falam). Em geral, homens se inebriam com o cheiro de carro novo; muitas mulheres ficam enjoadas com o odor. No carro deles não há quase nada; no delas, tem de tudo – de batom a guarda-chuva, de revistas a peças de roupa. Essas diferenças têm grande importância para os estudiosos da psicologia do consumo e para os especialistas em publicidade. Até há pouco tempo era tudo mais simples: o carro era usado (e adquirido) pelo “pai de família”.

Hoje, porém, não é mais assim. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), de 2006, o total de mulheres chefes de família no Brasil aumentou 79% em dez anos, passando de 10,3 milhões, em 1996, para 18,5 milhões no ano passado. No mesmo período, o número de homens responsáveis pela família aumentou 25%. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), houve crescimento acentuado no número de mulheres casadas que assumem as rédeas da família. Esse percentual saltou de 9,1% em 1996 para 20,7% em dez anos. E quem tem o dinheiro também é, na maior parte das ocasiões, quem decide quando e como gastá-lo. Portanto, é preciso oferecer um veículo que responda às expectativas do potencial comprador – um mecanismo denominado personalização. 

Assim, as propagandas de carros “femininos” trazem referência a valores como amizade, bem-estar e elegância; apresentam mulheres esguias e charmosas (mas nunca excessivamente belas, apenas o suficiente para que a consumidora se identifique com a modelo). Por outro lado, nos comerciais de carros mais “masculinos”, os automóveis superequipados viajam por entre belas paisagens, sugerindo o quanto pode ser emocionante e desafiador descobrir novos caminhos. 

Em linhas gerais, a mensagem que a publicidade tenta passar toma por base a teoria freudiana: o homem anseia por ser forte e livre – e cultiva intimamente a fantasia, trazida da infância, de que poderá experimentar a completude, sem que nada possa detê-lo. Entre essas duas formas tão diversas de olhar para o automóvel coloca-se um novo alvo que vem tirando o sono de muitos publicitários: o carro da família. O que há de convidativo num carro em que devem caber cadeirinhas de segurança para crianças, o carrinho de bebê, a sacola de fraldas e um monte de bichos de pelúcia?

O carro para a família fez nascer, na mente dos psicólogos de marketing, um novo modelo masculino, o do homem de terno, obviamente com uma mulher jovem e bonita ao seu lado (mas não tão sensual a ponto de criar antipatias inconscientes nas companheiras que colaboram com a compra). E, claro, não podem faltar os filhos sorridentes; esse novo homem saboreia a liberdade, mas quer partilhar seus melhores momentos com a família, desfrutando o conforto que a tecnologia oferece. Essa espécime contemporânea deve saber que a verdadeira essência do macho não está em mergulhar em águas barrentas para apanhar um jacaré com as próprias mãos – mas em recuperar um coelho de pelúcia que a menina chorosa perdeu. Para depois retornar triunfante para seu domesticado off-road 4x4.

COMO SE FOSSE A CASA
Que demonstre mais ou menos seus sentimentos, pouco importa: em geral, o homem dedica ao próprio meio de transporte atenções que não reserva para nenhum outro objeto. O mesmo indivíduo que nem sonharia em dar uma enxaguada nos pratos sujos na pia num fim de semana é capaz de ficar debaixo de um sol escaldante aguardando para deixar brilhante o tão amado veículo. A mulher, por mais que seja preocupada com limpeza e atenta à organização doméstica, raramente se porta da mesma forma em relação ao carro: na maioria das vezes, leva o veículo para ser lavado quando está sujo e não se incomoda em acompanhar cada etapa do serviço. Afinal, para ela, a casa é uma parte de si, mas o carro absolutamente não é.

A mania por brilho, tipicamente masculina, também fez florescer uma verdadeira indústria de detergentes, ceras e polidores, sem falar nos sprays para painéis com “cheirinho de novo”, exatamente aquele cheiro “eau de plástico” que as mulheres realmente não suportam. Já os homens dificilmente toleram os perfumes para ambientes, tão bem aceitos por elas. 

Essas diferenças foram estudadas também com métodos científicos: recentemente, um grupo de psicólogos da Universidade Harvard mostrou para homens e mulheres imagens de carros brilhantes e sujos, novos e velhos, e assim por diante, e pediu-lhes que definissem o caráter do proprietário com base no aspecto do automóvel. Para os homens um carro limpo e brilhante está associado ao sucesso social, à estabilidade financeira e ao cuidado com a propriedade. Para as mulheres, um carro sujo é sinônimo de pessoa atarefada, que tem pouco tempo para detalhes insignificantes (mas dentro de certos limites: se o carro, além de sujo, for também velho e tiver a carroceria danificada, ele passa a ser identificado com um fracassado social).

O sexo de um pretenso comprador também influencia os meios usados pelos vendedores das concessionárias, como demonstra um curioso estudo realizado por pesquisadores da Escola de Economia da Universidade Yale e publicado na American Economic Review. Os psicólogos da universidade americana instruíram 300 voluntários de ambos os sexos e de várias etnias (brancos, negros e hispânicos) a negociar a compra de um carro usado. Conclusão: os vendedores tendem a aumentar os preços para as minorias e para as mulheres, ao passo que os homens brancos, valendo-se da mesma negociação, conseguem oferta melhor. E não é só isso: contando com a provável ignorância feminina sobre o assunto, os vendedores “empurram” a elas os carros em pior estado ou modelos menos valorizados pelo mercado.

“Esse fenômeno contradiz as leis da economia, já que, em todos os outros setores, quanto mais abastado parecer o comprador, mais alto será o preço que conseguirá”, observa o pesquisador Ian Ayres, um dos autores do estudo. Segundo ele, no caso de carros, porém, há aspectos específicos a serem considerados. “Cria-se uma espécie de aliança entre o homem comprador e o homem vendedor: ambos deixam-se enredar em intermináveis discussões sobre as qualidades do veículo, da mecânica à carroceria, e desse modo os papéis se confundem: da simpatia nasce o desconto. Para as mulheres e, às vezes, também para as minorias étnicas, se instaura um mecanismo oposto. É como se o vendedor olhasse o carro e dissesse: ´Pobre criatura, em que mãos vai acabar!´.”

VIDAS NO LIMITE
A forma como dirigimos pode ser vista como uma representação de nosso funcionamento psicológico, revelando não só escolhas, hábitos e crenças – muitas delas originadas na infância –, mas também aspectos reprimidos ou disfarçados de nossa personalidade. Há, porém, uma explicação neurobiológica para o fascínio pelas altas velocidades: a consciência (ainda que parcial) do risco desencadeia no organismo reações neurológicas e hormonais. A elevação dos níveis de adrenalina induz à hiperatividade do sistema nervoso e confere uma espécie de euforia artificial que, para alguns, pode resultar em satisfação. 

É o que acontece aos protagonistas do premiado Crash, de David Cronenberg, de 1996, adaptado do polêmico romance homônimo de James Ballard, que está sendo reeditado no Brasil. Nesse caso, os personagens buscam satisfação sexual ao correr como loucos e provocar acidentes.

Parece haver na história a simbologia de uma “contaminação” do ser humano pela máquina, sugerida pela metáfora do carro como prótese do corpo, como fusão entre metal e carne, numa realidade em que as pessoas, para escapar do achatamento afetivo, precisam de uma experiência violenta levada às últimas conseqüências. No filme, as cenas de sexo são frias e mecânicas, não há troca de olhares e, sobretudo, o que satisfaz nunca é o encontro afetivo. As emoções mais intensas são vividas quando os personagens assistem aos vídeos de acidentes.
- Associado subjetivamente a atributos considerados viris, como velocidade e potência (idéia reforçada pela propaganda), o carro se tornou alvo da identificação masculina. 

- A forma como dirigimos pode ser uma representação de nosso funcionamento psicológico, revelando não só escolhas, hábitos e crenças (muitas delas originadas na infância), mas também aspectos reprimidos ou disfarçados de nossa personalidade. 

- O fascínio pelas altas velocidades pode ter explicações neurobiológicas: a consciência (ainda que parcial) do risco desencadeia no organismo reações neurológicas e hormonais. A elevação dos níveis de adrenalina induz à hiperatividade do sistema nervoso e confere uma espécie de euforia artificial que, para alguns, pode resultar em sensação de satisfação.

A identificação do homem com um meio de transporte não é um fenômeno novo: numa época em que o carro nem sequer havia sido remotamente imaginado, a mitologia criou a figura do centauro, um ser de tronco humano num corpo de cavalo. Ao cavalgá-lo era possível adquirir os mesmos dons de velocidade e potência que hoje atribuímos ao carro. Pois, no fundo, existe a consciência de que essas qualidades não pertencem completamente ao homem – mas podem ser comandadas (como uma prótese); surge aí a ilusão de onipotência que faz aquele que guia se sentir capaz de superar qualquer obstáculo. Esse olhar psicológico evoca de imediato a triste realidade dos massacres nas estradas, que quase sempre se devem ao excesso de velocidade e à imprudência.

“Voltando a Freud, podemos pensar que a escolha de chegar até o limite máximo de velocidade do automóvel é, para algumas pessoas, uma forma de compensação, utilizada para nivelar traços pessoais deficitários e ostentar potência e força”, afirma Albanese. O pesquisador alerta, porém, que essa atitude revela um ato falho implícito. “Esses motoristas demonstram exatamente o contrário, pois já é de domínio do senso comum que quem é realmente forte não precisa demonstrá-lo de forma tão acintosa. Ao passarem em alta velocidade, colocando em risco a própria vida e a dos outros, esses indivíduos desafiam a lei, a física e também a morte. O próprio desejo de possuir carros barulhentos remete ao espírito do guerreiro ancestral: seria possível incutir medo no exército inimigo se não produzíssemos nenhum som?”

Talvez não por acaso o potente centauro da Antigüidade estava a serviço de Marte, deus da guerra, e era, com efeito, violento e arrogante. “De fato, de carro a maioria das pessoas se sentem muito mais prontas para suas próprias guerras pessoais (quaisquer que sejam elas). Nesse nicho nos sentimos protegidos, escondidos da visão dos demais pelos vidros, pelos reflexos e pela própria distância física, como se estivéssemos num tanque de guerra. O outro lado da moeda é que o outro tampouco estará completamente visível para nós e, portanto, não é identificado como uma pessoa digna de respeito ou piedade.”


Comportamento humano no trânsito. Maria Helena Hoffmann, Roberto Moraes Cruz e João Carlos Alchieri. Casa do Psicólogo, 2003.

Psicologia do trânsito: conceitos e processos básicos. Reinier J. Rozestraten. Epu/Edusp, 1998.

Psicologia ambiental e psicologia do trânsito: uma agenda de trabalho. H. Günther. Série Textos de Psicologia Ambiental, nº 8. Laboratório de Psicologia Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), 2004. Disponível em www.unb.br/ip/lpa/pdf/08PAePT.pdf.

Disponível em <http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/carros_paixao_masculina.html>. Acesso em 01 out 2012.