Anderson Fernandes de Oliveira
Viajante e estudioso de culturas, o sociólogo francês David
Le Breton é um apreciador assumido das terras brasileiras. Já esteve no Brasil
diversas vezes e ama, em especial, a cidade do Rio de Janeiro, que diz ser
possuidora de uma beleza singular. Sobre São Paulo, ele é incisivo em mostrar
seu desgosto. A selva de pedra lembra-o muito algumas cidades nos Estados
Unidos, como Nova York, por exemplo. Ele prefere a natureza às paisagens
urbanas. Por essa razão adora viajar. Segundo ele, ficar na França é muito
enfadonho, devido ao clima muito frio e soturno.
Breton é doutor em Antropologia e professor na Universidade
de Estrasburgo II. Tornou-se referência no estudo da corporeidade. Dentre suas
obras publicadas no Brasil está a Sociologia do corpo (Ed. Vozes), em que o
francês argumenta que o fenômeno de existência corporal está
"incorporado" no nosso contexto social e cultural, ou seja, a
linguagem corporal está inserida no canal pelo qual as relações sociais são
elaboradas e vivenciadas. Para o professor, a Antropologia social e a
Sociologia possuem inúmeras possibilidades de pesquisas, dentre elas, as
investigativas. No âmbito individual e coletivo, elas podem ajudar nos estudos
sobre as representações que construímos acerca do corpo e até mesmo na
compreensão de certas culturas.
Neste e em muitos de seus trabalhos (ainda sem tradução para
o português) Breton se preocupa com as investigações sociais e culturais do
corpo como, por exemplo, os simbolismos, as expressões e percepções construídas
na dinâmica social.
Suas análises envoltas da Sociologia da corporeidade ganham
uma extensão com novos ares na obra As paixões ordinárias - Antropologia das
emoções (Ed. Vozes). Em uma visita rápida por São Paulo, David Le Breton cedeu
gentilmente uma entrevista à revista Sociologia Ciência & Vida, para falar
um pouco sobre seu último livro, suas aventuras ao redor do mundo,
Antropologia, cultura e a situação atual da sociedade contemporânea.
Para a construção do livro, você teve como base a
Antropologia e a Sociologia. Você estudou algumas outras áreas da ciência e
qual a importância dela no estudo antropológico?
Le Breton - A Antropologia é a disciplina dos
indisciplinados [risos], daqueles que se recusam a limitar a sua curiosidade. O
antropólogo é aquele que sai, que quer conhecer tudo de maneira mais ampla e
dando a ele mesmo todos os meios para chegar a isso. Quando trabalho sobre
qualquer assunto, seja ele emocional ou não, busco não só Antropologia e
Sociologia, mas também a Psicanálise e a Etnologia. Acho que estou em uma
herança da Antropologia cultural americana. Sua outra definição é que
"nada que me é humano me é estranho". É necessário tudo para se
construir o mundo.
"A Antropologia é a disciplina dos indisciplinados,
daqueles que se recusam a limitar a sua curiosidade "
Você disse que está mais baseado na Antropologia americana.
Existe outra Antropologia? Qual é a diferença?
Le Breton - Não sou estruturalista. A Antropologia que sigo
é a social e cultural. Não está na herança de Claude Lévi-Strauss [antropólogo,
professor e filósofo francês, considerado o fundador da Antropologia
Estruturalista], mas, sobretudo, de George Balandier [etnólogo e sociólogo
francês] e de Margareth Mead [antropóloga cultural norte-americana]. Eu me
sinto muito mais próximo da Antropologia britânica, americana e anglo-saxônica.
Existe também uma tradição na França que perdeu um pouco de importância que é
do Marcel Mauss [sociólogo e antropólogo francês, sobrinho de Émile Durkheim, e
considerado como o "pai" da etnologia francesa]. Eu me reconheço
nesta tradição. Uma Antropologia do mundo contemporâneo que faz que a
Sociologia também se imponha no momento da análise [Mauss apontava que as
sociedades se formam basicamente pela troca, doação e reciprocidade de
culturas].
Por que optou pelo nome As paixões ordinárias, em seu último
livro?
Le Breton - O termo paixão é forte. Entendo-o de acordo com
Descartes, que escreveu o Tratado das paixões, em que mostra que paixões
ordinárias são aquelas com as quais vivemos todos os dias. Que são socialmente
construídas e que também levam em conta a nossa individualidade dentro da
cultura, da nossa história e nossa educação dentro da família.
"Falar de emoções positivas e negativas já é fazer um
julgamento de valor. Jogar com essas emoções faz vender jornal "
Por que você escolheu o caminho das emoções? Qual o
interesse?
Le Breton - Desde o meu primeiro livro A antropologia do
corpo (Ed. Vozes) resolvi trabalhar com o corpo e as emoções. A ideia é
construir uma Antropologia do corpo bem ampla. Trabalhei sobre a história do
corpo, anatomia, não só do ponto de vista médico, mas antropológico. Comecei
pelo ponto de vista da atitude em relação ao cadáver, por exemplo, as
dissecções, de como elas se tornaram possíveis na história, as lutas culturais
ao redor do cadáver, dentre outros rituais. Para mim, a história da medicina é
também a história com a relação do corpo. Os anatomistas constroem o corpo com
o qual a gente chega do hospital e que é curado, ou seja, chegamos com fraturas
e eles têm o trabalho de reconstruir-nos. Procuro entender a invenção médica do
corpo na modernidade. Construí também a Antropologia do rosto. Por que a
importância do rosto existe em algumas sociedades e em outras não? Por que a
desfiguração é uma tragédia na nossa sociedade? No livro abordei pela primeira
vez a construção da emoção no rosto, as mímicas e o sorriso, para mostrar que o
sorriso é uma coisa muito mais complicada. É uma joia e surge de uma
espontaneidade diferente entre as culturas. Depois trabalhei na Antropologia da
dor. É uma edição completamente renovada. Também trabalhei na construção social
das percepções sensoriais, o sabor do mundo e ainda sobre as carnificações e
mutilações corporais.
Esse trabalho das emoções é inédito e pioneiro ou você está
sendo influenciado por outros pensadores?
Le Breton - Acredito que estou fazendo um estudo bem
particular, bem singular que não existe ainda na tradição francesa, embora seja
possível encontrá-lo na tradição americana e na britânica. De qualquer maneira,
é um estudo que aborda outras perspectivas, algo que não existe, como por
exemplo, nas análises realizadas nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, onde
alguns etnólogos trabalhavam sobre afetividade, emoções.
Quando você falou sobre a aparência em que a nossa sociedade
é muito influenciada e outras não, você se referia à sociedade ocidental?
Le Breton - Sim.
Portanto, a cultura oriental adota outro tipo de abordagem?
Le Breton - Existem nuances. Do mesmo jeito que a França não
é os Estados Unidos, o Canadá não é a Finlândia, mas existem pontos culturais
em comum. Mesmo em relação ao corpo, existem semelhanças e diferenças. Se você
pensar no Japão, no Brasil ou na América Latina, os imaginários sociais são bem
diferentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, sobrevive em alguns lugares o
imaginário social do puritanismo, que determina ao indivíduo, e a todo o
coletivo, a recusa ao corpo. Essas são tendências de acabar e liquidar o corpo,
como forma de respeito e veneração a um ser superior. Esse imaginário de recusa
do corpo está muito menos presente na Europa, Brasil e América Latina. Existem
pontos em comum, assim como existem as diferenças. Piercings e tatuagens, que
são muito corriqueiros nos países europeus, até mesmo no Brasil, não são em
outros lugares, por exemplo.
Você acredita que sociólogos clássicos, como Émile Durkheim,
apesar de não terem uma ligação direta com os estudos das emoções, a adotavam,
indiretamente, em suas obras? Se sim, de qual maneira?
Le Breton - Acredito que haja uma ligação próxima aos
pensadores George Simon e Max Weber. Simon escreveu sobre as percepções
sensoriais e também sobre as percepções do corpo. São textos bem antigos, do
início do século XX. Marcel Mauss também escreveu sobre as emoções sensoriais,
em que mostra que são ligadas às simbologias sociais. É o que me recordo dos
sociólogos mais clássicos e eu sempre os cito em meus estudos.
A condição humana não vive sem a emoção, seja ela positiva
ou negativa. Qual a sua opinião sobre o uso que a mídia faz dos sentimentos
negativos, dos programas sensacionalistas que usam de tragédia para conseguir
ibope?
Le Breton - Falar de emoções positivas e negativas já é
fazer um julgamento de valor. Jogar com essas emoções, com a pena e com o medo
faz vender jornal, revista, programa de TV, etc. Veja o exemplo da publicidade,
que tira vantagem em função do seu poder de sedução sobre nossos sentidos
sensoriais, especialmente a visão. Nós estamos em uma emoção
"positiva", mas as coisas podem ser viradas ao contrário.
Por que é que esses programas ou páginas sensacionalistas
fazem sucesso? Acha que as pessoas sentem atração pelo negativo?
Le Breton - Freud já mostrou que esse mundo das emoções
existe dentro de nós. Cada um tem essa parte de sombra no seu inconsciente. Se
formos analisar, hoje, todos os livros e filmes tratam dessas emoções e também
as usam negativamente. Basta olhar para a história do cinema e da literatura
para confirmar o que estou dizendo. Nós somos também grandes personagens de
ficção e nos identificamos com eles [os personagens fantasiosos que vemos em
filmes e livros] e ao mesmo tempo não somos eles. O trabalho do imaginário é
tornar possível todos os homens e todas as mulheres que nós poderíamos ter
sido.
"A noção de traição está no ponto de vista de quem a
faz e de quem a recebe, e por qual objetivo e motivo "
Ações culturais que lidam com a emoção como casamento e
divórcio sofreram grandes transformações na sociedade contemporânea. Há estudos
na cultura ocidental, por exemplo, que relatam que genes desencadeiam atos de
traição. Como analisar essa afirmação dentro do estudo das emoções? A traição
pode ser considerada uma coisa natural ou está mesmo ligada à genética?
Le Breton - Essa tradução genética não faz nenhum sentido
porque é preciso primeiramente definir o que é traição. A noção de traição está
no ponto de vista de quem a faz e de quem a recebe, e por qual objetivo e
motivo. E essa noção de traição parece um pouco ocidental. A gente não a
encontra em uma sociedade tradicional, em sociedades ameríndias, indígenas. É
uma noção que vem de um tipo de sociedade individualista. Os indivíduos se
situam em relação uns aos outros, no sentido de construir seu próprio sentido e
não serem herdeiros de uma tradição, construindo seu próprio sentido. Essa
noção de traição implica no individualismo, implica a um julgamento de valor,
mas ela não é universal. O que implica aí é a noção de combate, de luta. Da
mesma forma como os animais lutam entre si, um guerreiro vai lutar contra o
outro. Essa noção de traição que conhecemos entre os jovens hoje é uma maneira
de naturalizar esse combate, um tipo de relação social neoliberalista. É
importante desconstruir essa noção de traição original do ocidente para que
possamos entender que, independentemente dos genes que tenhamos, não haverá
essa influência direta, uma vez que estamos organizados culturalmente e não
geneticamente.
Hoje há um senso comum muito forte, em que os homens são
mais razão e as mulheres emoção. No mundo globalizado, essa ideia ainda
persiste? Hoje vemos muitas mulheres em cargos de liderança em que a exigência
maior é de tomar decisões pela razão. Isso é mesmo válido ou é apenas mais uma
crença cultural?
Le Breton - No primeiro momento isso é um julgamento de
valor e também tem a ver com a educação que meninos e meninas recebem desde
pequenos. Recuso essa ideia porque existe o fato de que há homens mais emocionais
e mulheres mais racionais. Isso não quer dizer nada. Para algumas ações, somos
emocionais e para outras, racionais. Mas temos de levar em conta que é verdade
que a educação que mulheres e homens recebem é diferente. As meninas são
educadas pelo lado do amor, do carinho e da emoção; já os homens são educados
pelo lado do desafio, sempre no intuito de serem mais fortes que os outros.
Para os profissionais que trabalham com jovens [professores, psicanalistas,
etc.] é muito perceptível esta tendência. No caso das mulheres, elas
interiorizam mais os seus sofrimentos, e, portanto, são elas que têm maior
vulnerabilidade a contrair doenças psicossomáticas, bulimia, anorexia e
tentativas de suicídio. Agora, na realidade masculina, os homens que sofrem
conseguem exteriorizar mais seus sentimentos. Daí que os vemos partindo para a
delinquência, violência, desafios [como os rachas em alta velocidade nas ruas],
álcool, drogas e até suicídio.
Falando em suicídio, qual é a sua opinião sobre as pessoas
que tiram a própria vida em nome do patriotismo ou em nome de uma religião?
Será que esse tipo de paixão, de emoção, pode mesmo desencadear ações dessa
proporção?
Le Breton - Depende da história de vida de cada um de nós e
da cultura. Existem algumas culturas em que a religião é mais forte, como o
Islã, por exemplo. Ele decide todos os momentos da vida cotidiana. Mas não é o
caso de outras muitas religiões. Há as que dão uma margem de liberdade bem
maior, quando comparadas à doutrina islâmica, a começar pelo fato de se ter a
liberdade de discutir o texto religioso e não concordar com as interpretações.
Uma pessoa que não esteja bem com sua vida pode escolher uma maneira de se
integrar com a religião, como uma forma de buscar uma orientação de valor e
também de encontrar outras pessoas para servir como a figura de um mestre. Da
mesma forma, um jovem pode escolher o patriotismo buscando o exército como
valor e sentido para sua vida. Encontrando pessoas fortes que estejam no
controle, que lhe transmitam segurança e que sirvam como meta de vida.
Esta busca de personagens fortes para simbolizar um mestre,
que menciona, é uma atitude social antiga. Você acredita que a sociedade
contemporânea, em geral, esteja carente de mitos?
Le Breton - As sociedades humanas funcionam ao redor dos
imaginários que são poderosos, os imaginários religiosos, políticos. Já vivemos
em um mundo em que os imaginários foram todos destruídos, o que o Jean François
Lyotard chamou de "o fim do grande discurso". Não era possível pensar
sobre o comunismo, socialismo e humanismo ou dispersar esses imaginários entre
todos. A nossa sociedade sofreu por não encontrar o mundo propício diante de
si. Para exemplificar em um contexto bem contemporâneo, a força do novo
presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, por exemplo, é reconstruir esses
imaginários, contra o neoliberalismo americano, de reintroduzir os valores de
amizade, solidariedade, humanismo e igualdade. Estamos em uma época em que o
capitalismo está passando por uma fortíssima crise social, econômica e política.
Trata-se, então, de uma globalização que destrói a vida e que a torna difícil
para milhares de pessoas. Obama representa o surgimento de uma utopia, de uma
esperança, de um capitalismo com uma aparência humana.
Antropologia das emoções
David Le Breton fez no livro As paixões ordinárias um estudo
sobre a orquestra de emoções subjetivas do sujeito. Ele explica - e exemplifica
- como esse processo emocional, as percepções sensoriais, ou a experiência e a
expressão das emoções se dão, obviamente, da intimidade mais profunda do
indivíduo e, mais que isso, se formam também graças às relações sociais e
culturais em que o sujeito está inserido. Anos de estudo são somados às
inúmeras referências, como Darwin, Proust, Sartre, Freud, dentre outros, para formar
esta pesquisa antropológica que analisa nuances culturais que diferenciam
nossas emoções.
Em um dos exemplos práticos que ele insere no livro, o beijo
é um dos mais interessantes. Três modalidades do beijo se demarcam socialmente,
abrindo-o a formas e significações muito diversas: sinal de afeição, rito de
entrada ou de saída de uma troca e forma de congratulação. O autor explica que
o beijo dado em solo, por exemplo, exprime a afeição de um indivíduo pelo país
natal.
De joelhos sobre o solo, o indivíduo saúda simbolicamente um
período de tempo que lhe é caro. O beijo no rosto entre meninos e meninas aqui
no Brasil é corriqueiro, sendo normal trocar facilmente dois ou mais beijos nas
bochechas. O número difere, com efeito, de uma região pra outra. Na Alsácia,
eles são reduzidos, mas no Oeste e Centro da França podem passar de quatro.
Desta forma, o livro resgata a ideia de que as emoções não
são espontâneas, mas ritualmente organizadas e que, portanto, o fundo biológico
universal se declina social e culturalmente de um lugar a outro do mundo.
Disponível em
http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/23/artigo133356-1.asp.
Acesso em 07 out 2013.