Yves de La Taille
Enquanto no mundo acontecem coisas diversas, das mais belas
e das mais trágicas, uma ou duas dezenas de pessoas se entregam a uma atividade
no mínimo estranha: permanecer trancafiadas numa casa, sem contato com o resto
do planeta, mas sob a vigilância ininterrupta de várias câmeras de televisão
que transmitem ao vivo tudo o que fazem e dizem a milhões de pessoas que também
se entregam ao passatempo não menos estranho de assistirem cotidianamente a
essa extravagante convivência. E estou, é claro, falando da versão brasileira
dos reality shows, como o famoso Big Brother Brasil (BBB), que em 2011 recebe
sua 11ª edição.
Um dos atributos essenciais de um ser humano livre é
justamente o de ter controle do acesso de outros a áreas de sua pessoa
Esse programa televisivo pode ser analisado e criticado por
vários aspectos, a começar pelo próprio nome retirado do célebre e sério
romance de George Orwell, 1984: é triste verificar que um nome criado para
alertar sobre perigos totalitários seja reduzido a mero título de uma
"diversão" de gosto duvidoso. Pode-se também associar o BBB ao
erotismo sem sensualidade que tem invadido a nossa cultura. E, entre outros
aspectos, podemos simplesmente pensar, com Fernando Veríssimo, que "chega
a ser difícil encontrar as palavras adequadas para qualificar tamanho atentado
à nossa modesta inteligência".
Porém, há outro "atentado", comum em nossas vidas,
que programas como BBB e similares colocam em primeiro plano: o atentado à
privacidade.
Define-se privacidade como "controle seletivo do acesso
ao eu". Ou seja, a privacidade equivale a selecionar quais aspectos,
corporais ou mentais, da pessoa serão revelados, ou não, a terceiros. Por
exemplo, usamos roupas para que pessoas não possam ver partes de nosso corpo,
mas, perante algumas, aceitamos ficar nus. Outro exemplo: há pensamentos e
sentimentos que escondemos de alguns, mas que confiamos a outros.
Isto posto, um dos atributos essenciais de um ser humano
livre é justamente o de ter controle do acesso de outros a áreas de sua pessoa.
É por essa razão que Orwell criou o terrível Big Brother como símbolo de um
estado totalitário que chega a privar os seus membros do último reduto de sua
liberdade: o controle sobre a sua intimidade.
Ficaria ele espantado em saber que pessoas resolvem
livremente colocar-se em situação semelhante à do pesadelo descrito no seu
romance? É provável que sim, uma vez que ele viveu no começo do século XX e,
logo, não presenciou alguns fatos posteriores que tenderiam paulatinamente a
"naturalizar" a constante exibição de si mesmo e o decorrente
abandono do controle da privacidade. E escreveu Paulo José da Costa Junior, da
área de Direito, em seu livro O direito de estar só: "processo de corrosão
das fronteiras da intimidade, o devassamento da vida privada, tornou-se mais agudo
e inquietante com o advento das novas tecnologias."¹ O livro foi publicado
em 1970 e de lá para cá tal devassamento somente tem aumentado: câmeras em
todos os cantos; controles minuciosos em entradas de prédios e condomínios;
scanners cada vez mais sofisticados, que literalmente despem as pessoas nos
aeroportos; exames de DNA; celulares que nos tornam acháveis a qualquer hora e
que nos filmam à nossa revelia; enquetes sobre nossos gostos pessoais, em
processos de seleção em empresas, etc. O lema atual é essa cínica frase:
Sorria, você está sendo filmado.
E o mais inquietante é que muitas pessoas sorriem mesmo! E
isto porque não raras são aquelas que associam a exibição de si mesmas ao
usufruto de uma "vida boa". Porém, é ledo engano pensar que tal abandono,
forçado ou voluntário, das fronteiras da intimidade é benéfico para as pessoas
e para a sociedade na qual vivem. Do ponto de vista do equilíbrio psicológico,
é verdadeiro o alerta de Grinover: "Se cada um de nós tivesse de viver
sempre sob as luzes da publicidade, acabaríamos todos perdendo as mais genuínas
características de nossa personalidade."² A autora dessa frase é da área
de Direito, mas encontra respaldo na Psicologia. Em minhas pesquisas, por
exemplo, verifiquei que não somente a capacidade de ter segredos é precoce (por
volta dos 4 anos de idade) como corresponde a uma necessidade das crianças para
protegerem a construção de suas identidades³. Ora, para os adultos, vale o
mesmo. A Nouvelle Revue de Psychanalyse publicou em 1976 todo um número
dedicado ao tema do falar de si, à sua importância para os seres humanos e aos
limites que devem ser respeitados. Nele, Piera Castoriadis-Aulagnier chega a
defender o "direito ao segredo" .
Mas não é somente do ponto de vista pessoal que a falta de
fronteiras da intimidade causa prejuízos. Em seu clássico livro sobre as
tiranias da intimidade, Richard Sennett observa que, hoje, as pessoas acreditam
que não devem se relacionar desempenhando papéis sociais, mas sim sendo
"espontâneas", revelando tudo o que pensam e sentem. Ora, para ele
"mais as pessoas são íntimas, mais as suas relações se tornam dolorosas,
fratricidas e antissociais. " Não terá ele razão?
Então, embora não o saibam e nem o queiram saber, são de
certa forma felizardos aqueles eliminados o mais cedo possível no paredão da
todo-poderosa opinião pública...
1. Costa Junior,P.,J.(1970).O direito de estar só. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais
2. Grinover, A. P. (1976). Liberdades públicas. São Paulo:
Saraiva.
3. La Taille, Y. de (1996). A gênese da noção de segredo na
criança. Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol. 12, n. 3 pp. 245-251.
4. Castoriadis- Aulagnier, P. (1976). Le doit au secret.
Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 14, pp. 141-158.
5. Sennett, R. (1979). Les tyrannies de l'intimité. Paris:
Seuil.
Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/64/artigo213106-1.asp.
Acesso em 15 ago 2013.