Daniele Fanelli
agosto de 2007
O ser humano tem muitos tipos de inteligência. A hipótese do
psicólogo Howard Gardner, formulada em 1982, o tornou conhecido mundialmente.
Passados 25 anos, ele sustenta haver, além das reconhecidas habilidades
lingüística e lógico-matemática, outras seis formas de inteligência: espacial
(mais presente em navegantes e engenheiros); corporal-cinestésica (desenvolvida
em atletas ou dançarinos); interpessoal (representada pela capacidade de
compreensão dos sentimentos do outro); intrapessoal (expressa pelo
autoconhecimento); naturalística (referente à relação da pessoa com a natureza)
e musical. Professor da Universidade Harvard, Gardner é considerado um dos
“demolidores” do conceito de quociente de inteligência (QI). Suas teorias,
entretanto, têm pequena aceitação entre neurobiólogos. Resenha publicada
recentemente na revista Educational Psychologist menciona a insuficiência de
comprovação empírica. A possibilidade de medir a inteligência pela aplicação de
testes simples parece ser um critério para validação das hipóteses.
Artigo publicado em 2004 pela revista Nature Neuroscience
relacionava o desenvolvimento de competências a fatores socioeconômicos e a
aspectos biológicos como dimensões do cérebro, duração da memória de curto
prazo, velocidade de transmissão sináptica e metabolismo neuronal. No mesmo ano
foi observada correlação entre o QI de bebês e a velocidade de crescimento do
córtex cerebral. Tais descobertas não parecem perturbar o prolífico Gardner,
que tem sua teoria aplicada com eficácia em escolas de todo o mundo. Nesta
entrevista, ele declara-se mais interessado em estimular virtudes e talentos
humanos do que em medi-los.
Mente&Cérebro: O senhor poderia resumir sua teoria da
inteligência múltipla?
Howard Gardner: A visão tradicional a respeito da
inteligência, que prevalece há centenas de anos, sustenta que em nosso cérebro
existe um único computador, de capacidade muito geral. Quando funciona bem, a
pessoa é inteligente e capaz de destacar-se em qualquer atividade. Se o
desempenho for apenas razoável, o portador consegue resultado satisfatório em
diversas circunstâncias. Mas se funcionar mal, o dono desse equipamento é um
tolo, incapaz de estabelecer relações coerentes. Discordo disso tudo. Creio que
a relação cérebro-mente pode ser descrita como um conjunto de oito ou nove
sistemas distintos de elaborações fundamentais. Um deles pode atuar muito bem
enquanto outro apresenta rendimento mediano e um terceiro funciona mal. Qualquer observador admitiria que na patologia há fenômenos
que sustentam minha hipótese. Existem pessoas dotadas de grande talento
artístico ou com habilidade para números e xadrez que, no entanto, são
incapazes de compreender os outros e manter relacionamentos. A medicina oficial
as considera casos patológicos, mas eu sustento que esses fenômenos são
normais.
M&C: Vejamos um exemplo: como o senhor avalia a sua
mente?
Gardner: Com base na teoria da inteligência múltipla eu sou,
certamente, do tipo lingüístico-musical. Minha lógica é boa, mas jamais fará de
mim um matemático. Fisicamente não sou nada especial e sou medíocre na
inteligência espacial, mas me viro bem com um mapa. A inteligência
interpessoal, diferentemente de outras, pode ser melhorada. Assim, espero
continuar aprimorando minha capacidade de compreender outros.
M&C:Uma das principais objeções à sua teoria é a
impossibilidade de medir as oito formas de inteligência.
Gardner: Se eu estivesse de fora observando meu trabalho, é
provável que dissesse a mesma coisa. Trata-se de uma crítica bem razoável. Mas
estou certo de que, se minhas idéias forem um dia levadas a sério, algum
pesquisador desenvolverá instrumentos capazes de medir as várias inteligências.
Mas para mim isso jamais foi uma prioridade. Não me dediquei ao tema. Robert J.
Sternberg [pai da teoria “triárquica”, segundo a qual a inteligência se
manifesta em três modalidades distintas: analítica, criativa e prática] tentou
fazê-lo no âmbito de sua pesquisa, mas os resultados não me pareceram muito
convincentes. Posso deduzir que ou suas teorias são equivocadas, ou medir as
diversas inteligências humanas é tarefa mais complicada do que parece.
M&C: Mas a psicometria clássica faz medições. As
pontuações que a pessoa obtém nos diversos testes verbais e lógicos estão
correlacionadas, o que sugere a existência de uma inteligência “geral”. O QI
está vinculado a diversos parâmetros biológicos. O que o senhor pensa sobre
isso?
Gardner: Levo a sério essa questão e, se tivesse de
reescrever meu livro sobre a inteligência múltipla, trataria mais do tema. Mas
há fenômenos que esses estudos não explicam, em particular as razões que nos
tornam tão diferentes uns dos outros. Um cientista pode passar a vida tentando
acumular provas da existência de uma inteligência geral, mostrando como esta se
correlaciona a este ou aquele fator; ou pode tentar explicar por que as pessoas
têm habilidades tão diversas, quais as causas dessas diferenças e a que servem.
M&C: Mas as duas coisas não se contradizem. Podemos
fazer uma analogia com os músculos do corpo, que se desenvolvem de forma
desigual em cada pessoa. Isso não impede que algumas pessoas possuam – graças à
combinação de genes, alimentação e exercícios físicos – estrutura muscular bem
mais desenvolvida e potente que outras. Nem todos podem se tornar um
Schwarzenegger. O que vale para os músculos não poderia valer para os
neurônios?
Gardner: Tenho a mente aberta em relação à questão. Caso eu
viva mais 30 ou 40 anos e a ciência identifique uma propriedade biológica
fundamental – por exemplo, a velocidade de transmissão nervosa ou a
plasticidade das conexões entre os neurônios – que explique uma parte maior ou
menor das diferenças de inteligência, estarei pronto a rever meu pensamento. Mas isso não esclarece as razões para alguém ser mais capaz
em certos setores que em outros. A resposta pode ser simplesmente que a vida
humana não é infinita, e, portanto, não podemos ser excelentes em tudo. Penso
que a explicação mais plausível esteja na predisposição genética e nas
experiências infantis capazes de “estimular” e potencializar um dos
computadores mentais de que dispomos. Um gênio poliédrico como Leonardo da
Vinci é exceção, e não regra. E devemos explicar ainda a origem das diferenças
nos perfis e talentos.
M&C: O senhor usa os termos “inteligência” e “talento”
como sinônimos. Mas, para a maioria das pessoas, esses termos se referem a
conceitos bem distintos.
Gardner: De fato. Mas, ao privilegiar o termo “inteligências”
em vez de “talentos” ou “habilidades”, fiz um movimento retórico importante.
Todos reconhecem a existência de diferentes talentos e habilidades humanas, e
provavelmente eu não estaria aqui sendo entrevistado se tivesse usado essas
palavras em vez de “inteligências”.
M&C: O que o senhor entende por inteligência?
Gardner: O ponto é que a definição de inteligência não é
óbvia. Trata-se de algo debatido por estudiosos e leigos. Segundo minha
análise, os pesquisadores orientados pela cultura escolástica se concentraram
nas habilidades verbais e lógicas, denominando as “inteligência”. É uma questão
de retórica e lingüística. Não é “a” resposta correta. As pessoas com bom
desempenho em línguas e lógica são, em geral, bons alunos, e nós as
classificamos inteligentes. Nada tenho contra isso, desde que se fale em
“inteligência escolástica”. Se, porém, sairmos da escola e estudarmos a
inteligência de arquitetos, bailarinos ou comerciantes, descobriremos que podem
ser excelentes naquilo que fazem, independentemente do desempenho escolar. Se
os homens de negócio tivessem inventado o QI, a avaliação mediria,
provavelmente, atitude em relação a risco, iniciativa e capacidade de vender.
Nenhuma dessas coisas é medida pelos testes clássicos de inteligência.
M&C: Mas isso não ameaça relativizar o conceito de
inteligência, esvaziando-o de seu significado intuitivo e científico?
Gardner: A ciência não deve, necessariamente, reforçar o
senso comum, muitas vezes equivocado. Minhas pesquisas, além disso, atingem o
campo das ciências sociais, diferentes da física ou da biologia, justamente
porque devem sempre elucidar os próprios conceitos, propondo definições novas e
mais adequadas. O filósofo Bertrand Russell disse certa vez que as idéias de
todos os grandes pensadores podem ser resumidas em uma ou duas frases: o que os
torna notáveis é a estrutura argumentativa que criaram para sustentar as
afirmações e defendê-las das críticas. Se eu transmitir às pessoas apenas o
conceito de que, além da escolástica, existem outras formas de inteligência, já
será um enorme progresso. Creio que já alcancei algo nesse sentido. Mas Daniel
Goleman conseguiu ainda mais, pois seu conceito de “inteligência emocional” tem
apelo intuitivo, aludindo às experiências do cotidiano, sobretudo no mundo do trabalho.
O gerente de uma empresa pode ter a mente perfeitamente organizada e revelar-se
um desastre para motivar funcionários. A diferença entre nossas pesquisas é que
estabeleci oito critérios a serem atendidos por uma suposta inteligência.
M&C: Há poucos anos o senhor identificou a existência de
uma oitava inteligência, a naturalística. Pensa em acrescentar outras?
Gardner: Escrevi bastante a respeito da possibilidade de uma
inteligência moral. Até há pouco tempo era cético quanto a isso, mas mudei de
idéia depois de algumas leituras, em particular o livro escrito pelos
neurobiólogos Jean-Pierre Changeaux e Antonio Damásio. Avalio a possibilidade
de uma inteligência existencial, mas o problema é saber se é diferente de
qualquer outra capacidade filosófica. Se não for, poderá ser explicada pelas
inteligências lingüística e lógica. As provas nesse sentido ainda não são conclusivas.
M&C:Haveria em nosso DNA genes que a seleção natural
favoreceu, proporcionando assim a inteligência naturalística ou a existencial?
Gardner: Certamente. Há genes para a inteligência
naturalística e, provavelmente, para todas as formas de inteligência que
menciono. Creio, porém, que cada um desses tipos possui subcomponentes. Na
inteligência lingüística, por exemplo, não haveria só um gene, mas centenas.
Alguns deles podem predispor às línguas estrangeiras, outros, à poesia e assim
por diante. Mas se dissesse em meus livros que há 500 inteligências, ninguém me
levaria a sério.
M&C: Falemos de seu último livro, Five minds for the
future. O senhor descreve com precisão as cinco mentes que devemos desenvolver
para viver na futura sociedade: sintética, respeitosa, ética, disciplinada e
criativa. Que mentes não deveríamos cultivar?
Gardner: Ninguém me havia feito esta pergunta até agora. No
livro falo, sobretudo, do mau uso que se pode fazer de cada tipo de mente. Temo
particularmente e penso que não deveríamos cultivar a mente fundamentalista,
aquela determinada a não mudar de idéia sobre as coisas. É uma postura muito
mais comum do que pensamos. Basta perguntar a alguém se recentemente mudou de
idéia a respeito de algo. Provavelmente dirá que sim, mas se pedirmos um
exemplo, terá dificuldade em responder. Sem perceber, nos aferramos facilmente
a nossas convicções.
M&C: Permita-me uma provocação. O que o senhor diz é sem
dúvida correto. Qualquer um concordaria que é bom ser mais disciplinado,
respeitoso, razoável e assim por diante. Qual é, assim, a novidade da mensagem
de seu livro?
Gardner: É uma pergunta legítima. Objetivamente, há aspectos
da natureza humana sobre os quais é difícil hoje dizer algo de original. Esses
temas, entretanto, devem ser reapresentados para cada nova geração de forma que
lhe pareçam compreensíveis e sensatos. Creio ser importante fazer isso, sobretudo
porque hoje se fala da mente quase que apenas do ponto de vista cognitivo. Em
vez disso, eu falo de respeito, ética e educação em um sentido mais clássico.
Não deveria valer apenas a nota tirada na prova de matemática, mas o tipo de
ser humano que nos revelamos. Em segundo lugar, é verdade que o respeito sempre
foi considerado qualidade desejável, mas na era da globalização, num mundo em
que os povos podem facilmente se destruir, trata-se de algo indispensável.
M&C: Por qual de seus estudos o senhor gostaria de ser
lembrado no futuro?
Gardner: Sou conhecido como “o fulano da bizarra idéia sobre
inteligência”, mas gostaria que as pessoas recordassem a pesquisa sobre ética
profissional que realizo há 15 anos e que se tornou um estudo sobre a confiança.
Não sei se no futuro me darão crédito em relação a esse trabalho, mas não
importa, pois estou totalmente convencido de que é indispensável. O domínio
cultural exercido pelo mercado nos Estados Unidos está arruinando o que há de
mais precioso no ser humano. Os americanos acabarão por destruir a si mesmos e
provavelmente ao mundo, pois ignoram qualquer aspecto da vida que não seja
comercializável. E porque pensam que, se fizerem uma prece todo domingo de
manhã, terão indulto para arruinar qualquer habitante do planeta nos outros
seis dias e meio. Estudando a ética e o sentimento de confiança, gostaria de
chamar atenção para coisas antes importantes que hoje não têm mais valor. De
fato, a pergunta que você me fez é equivocada. A correta seria: por que as coisas
de que falo, que todos deveriam saber, foram esquecidas?
1. Ser isolável em casos de lesão cerebral;
2. Ser desenvolvida em autistas “eruditos”, prodígios ou
indivíduos excepcionais;
3. Basear-se em uma (ou mais) série de operações
identificáveis;
4. Atingir níveis diversos de competência identificáveis em
todo indivíduo;
5. Ter história evolutiva plausível;
6. Ser apoiada por dados da psicologia experimental;
7. Ser apoiada por provas de psicometria;
8. Ser codificável em um sistema de símbolos.
Bibliografia:
Five minds for the future. Howard Gardner. Harvard Business
School Press, 2006.
Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Howard
Gardner. Artmed, 2000.
A matemática na educação infantil – A teoria das
inteligências múltiplas na prática escolar. Kátia Smole. Artmed, 2000.
Disponível em
http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/multiplas_inteligencias.html.
Acesso em 22 jun 2013.