Maria Consuêlo Passos
junho de 2011
Há algumas semanas o Superior Tribunal de Justiça (STJ)
aprovou a lei que regulamenta a união estável entre pessoas do mesmo sexo,
tornando-a, do ponto de vista legal, equivalente à de casais heterossexuais.
Isto significa a validação no plano jurídico de várias conquistas civis: o
direito à herança do companheiro, ou companheira, pensão alimentícia em caso de
separação, possibilidade de fazer declaração conjunta do imposto de renda e –
um passo fundamental – o direito à adoção de filhos, o que antes era permitido
apenas a um dos membros do casal.
A medida modifica o contexto nebuloso e enigmático das
relações homoafetivas, conferindo a elas caráter de legitimação jurídica, o que
não é pouco quando se trata da vida conjugal e familiar, em grande medida
regulada por diretrizes do Estado. Entretanto, é preciso ter cautela em relação
a esses ganhos, já que as transformações psicossociais engendradas nestes
mesmos parâmetros jurídicos exigem um processo lento e contínuo de superação de
resistências e preconceitos. Essa constatação nos leva a antever um longo e
difícil tempo de tensões e conflitos até que seja possível o reconhecimento
social de qualquer tipo de escolha amorosa e de constituição de família – desde
que essa escolha não negue a responsabilidade ética de respeitar o direito do
outro, um código fundamental da convivência humana.
Não é possível ignorar, por exemplo, as dificuldades
enfrentadas há várias décadas, quando os casais heterossexuais conquistaram o
direito de se separar e constituir novas famílias. Nessa época – assim como
agora em relação aos direitos recém-conquistados pelos homossexuais – havia não
só muitos preconceitos que fragilizavam moralmente aqueles que de forma
legítima buscavam saídas para os casamentos infelizes, mas também muitos
estigmas - recaíam sobre os filhos, vistos como problemáticos. Não raro, eram
dirigidos a essas crianças e adolescentes presságios de adoecimentos morais e
psíquicos. Passados vários anos, estamos hoje muito longe da confirmação de
tais vaticínios, embora seja possível reconhecer que a separação dos pais pode
resultar em maior ou menor sofrimento para os filhos, dependendo da maneira
como os desenlaces conjugais são vividos e resolvidos.
Face à legalização da união estável entre casais
homossexuais, uma pergunta não para de reverberar: o que este ganho jurídico
pode mudar, do ponto de vista psicossocial, na vida dos casais e famílias até
então envoltos em estigmas, violências e proibições morais de exercer seus
legítimos direitos de constituir relações amorosas e viver com as pessoas que
escolheram para reinventar a vida?
Em meio à vibração dos militantes pelos direitos das
minorias e mesmo dos simpatizantes da igualdade dos direitos civis entre
cidadãos, observamos certa exacerbação das resistências à aprovação da lei. No
Congresso Nacional, poucos dias depois, alguns deputados se insurgiram contra a
emenda que criminaliza a homofobia no país, tumultuando o debate e inviabilizando
a votação da proposta. Essa reação certamente tem muitos adeptos. Volta e meia
vemos grupos que praticam atrocidades contra homossexuais, como as - registradas
por câmeras na avenida Paulista, em São Paulo. No país inteiro encontramos
verdadeiras cruzadas - homofóbicas que tentam exterminar aquele cujo “crime” é
praticar o exercício da sexualidade nem sempre aceita socialmente.
Diante dessas constatações podemos indagar: por que o desejo
do outro nos ameaça tanto? Há mais de um século a psicanálise revelou que
nossos grandes temores não vêm do outro, daquele que é diferente de nós (embora
muitas vezes pareça que sim), mas daquilo que desconhecemos em nós mesmos, e,
exatamente por isso, repudiamos aquele que é diferente, depositamos nele algo de
“maldito”, algo de que tentamos nos libertar. Se levarmos em conta essa
inflexão, precisamos encarar a homofobia como uma impossibilidade de aceitação
do que há em nós, como a rejeição de uma parte negada e temida de nós mesmos.
Ao mesmo tempo é possível pensar que os homossexuais ameaçam
os heterossexuais também pela forma como buscam ser felizes em suas relações,
enfrentando as adversidades e tentando encontrar nelas saídas para os conflitos
e rejeições a que são expostos. Isso parece conferir certa autonomia associada
à vida dos casais homoafetivos. Sem querer romantizar experiências, a liberdade
de seguir um caminho (pelo menos aparentemente) alternativo, expressa por gays
e lésbicas, é muitas vezes ameaçadora. E tais temores são de difícil
erradicação, pois mostram o que há de enigmático em nós mesmos. Embora várias
frentes revelem mudanças importantes na forma de viver o afeto e o erotismo,
ainda prevalece o tabu que, em grande parte das sociedades, envolve o exercício
da sexualidade.
À medida que surge maior abertura nos contornos sociais,
verificamos uma visão mais libertária do novo e, em consequência,
-possibilidades mais amplas de conviver com o diferente – tanto em nós quanto
no outro. Exemplo disso é o sistema patriarcal que por muitos anos nos impôs a
autoridade exclusiva do pai e a verticalização das relações no interior da
família. Hoje, perdido o poder hegemônico, vemos as relações afetivas se tornar
cada vez mais horizontais, e a autoridade se diversifica revelando diferentes
(e ricas) facetas.
É preciso considerar também que transformações de valores
culturais e mentalidades se dão lentamente: dependem, sobretudo, dos processos
de socialização, em particular os primários, vividos nas relações com nossos
pais, responsáveis pelas primeiras transmissões mediadas pelos afetos. Dito de
outro modo, os valores chegam até nós no momento em que somos totalmente
dependentes afetivamente daqueles que nos apresentam esses princípios e,
portanto, estamos nessa fase incapazes de contestá-los. Se, por um lado, essas
condições facilitam a internalização de valores, por outro, mais tarde
dificultam sua erradicação. Crescemos com aquilo que herdamos ainda na infância
e só muito devagar nos libertamos de alguns conceitos que assimilamos – pelo
menos inicialmente –, impossibilitados de questionar. Possíveis mudanças
dependem da capacidade de flexibilizar-se, e isto, por sua vez, advém da
estrutura psíquica de cada um e até mesmo do grau de saúde mental e da
habilidade de “reinventar-se” de forma mais livre. Em outras palavras, as
transformações processadas na sociedade não são simultaneamente introjetadas. É
preciso, antes, amadurecer as novas ideias.
De qualquer modo, é na articulação entre os âmbitos
jurídico, cultural e psíquico que surgem grandes metamorfoses na sociedade.
Provavelmente veremos isso a partir de agora, quando a legitimação da união
estável tornar mais visíveis as relações homoafetivas, facilitando as
diferentes formas de concepção dos filhos e o reconhecimento dessas crianças,
sem que seja necessário cobri-las com o manto da dissimulação e da vergonha que
até então as acolhia. Penso que, enquanto não promovermos um desarmamento
moral, capaz de suportar o potencial humano para ser diferente, estaremos
sempre vulneráveis à violência e à solidão. Os ganhos, agora conferidos aos homossexuais,
só tornam mais evidentes as perguntas que deveríamos nos fazer cotidianamente:
que direito temos nós de condenar o desejo do outro, uma vez que esse desejo é,
também, parte de nós mesmos? Que direito temos de dizer ao outro como deve
conduzir sua vida afetiva?
A maneira de conviver com a homossexualidade modificou-se ao
longo dos anos. Comportamentos vistos como absolutamente normais na Antiguidade
foram rotulados de degenerados no século 19. E só recentemente essa expressão
da sexualidade deixou de ser considerada uma doença mental. Na edição de 1968
do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), obra de
referência para psiquiatras, a atração por pessoas do mesmo sexo aparecia no
capítulo sobre desvios, classificada como um tipo de aberração.
Foram os próprios gays que, cansados de ser taxados de
aberrações, começaram a defender a ideia de que sua orientação não era
patológica. Um momento histórico na transformação dessa forma de pensar ocorreu
após uma violenta ação policial no Stonewall Inn, bar gay no Greenwich Village,
em Nova York, em 28 de junho de 1969. Nos cinco dias seguintes, uma multidão
continuou a se reunir no local, protestando contra a discriminação e exigindo
direitos iguais para homossexuais. Conhecido como rebelião de Stonewall, o
evento é considerado a marca inicial para a maior aceitação cultural da
homossexualidade no mundo todo.
Quatro anos mais tarde, a Associação Americana de
Psiquiatria (AAP) começou a reavaliar essa questão. Uma comissão liderada pelo
médico Robert L. Spitzer, da Universidade de Colúmbia, recomendou que o termo
“homossexualidade” fosse retirado da edição seguinte do DSM, mas a sugestão não
surtiu efeitos práticos. Pouco depois de os dirigentes da AAP votarem a favor
da alteração, 37% dos psiquiatras consultados sobre o tema disseram ser
contrários à mudança. Alguns chegaram a acusar a associação de “sacrificar
princípios científicos em nome dos direitos civis”.
Nos anos 90, grande parte dos psicólogos ainda argumentava
que a homossexualidade era um distúrbio psíquico. Para defender esse ponto de
vista, muitos se apoiavam na penúltima edição da Classificação internacional de
doenças (CID-9), de 1985, que considerava essa orientação formalmente
patológica. Atualmente, porém, os conselhos regionais de psicologia (CRPs) são
claros em orientar os profissionais da área para que não tratem a
homossexualidade como distúrbio, a manifestação de preconceitos pode deflagrar
processos e punições.
O preconceito em relação à homossexualidade muitas vezes é
dissimulado e, apesar das transformações culturais, em certos meios persiste a
ideia de que essa orientação é uma doença que precisa ser “curada”. Alguns
defensores de terapias que se propõem a isso buscam respaldo na teoria de
Sigmund Freud (1856-1939), cujas palavras foram tantas vezes
descontextualizadas e interpretadas de maneira tendenciosa. As formulações do
autor passaram por diferentes momentos e sofreram acréscimos significativos ao
longo de sua obra, o que permite variadas interpretações, dependendo do texto
que for tomado como referência. Em artigo de 1930 no qual discute o caso de uma
moça que se apaixona por uma jovem senhora da sociedade, por exemplo, Freud
considera que, quando uma mulher escolhe outra como objeto de amor, revela uma
fixação infantil – não necessariamente decepção com o pai. Fixações,
entretanto, não são exclusividade dos homossexuais – nem podemos procurar
“culpados” por elas. As diferentes preferências – e consequentes escolhas ou
negações – revelam singularidades e fatores inconscientes de cada pessoa.
Disponível em
http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/relacoes_homoafetivas_avancos_e_resistencias.html.
Acesso em 29 jun 2013.