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terça-feira, 2 de outubro de 2012

Carros: paixão masculina

Emanuela Zerbinatti

O automóvel é um dos ícones mais poderosos da modernidade, um elemento fundamental, presente na paisagem urbana e determinante na mudança de costumes, estilos de vida e comportamentos. Ainda hoje, mais de um século após sua invenção, é o símbolo da passagem veloz para um futuro cada vez mais avançado, em direção à perfeição tecnológica. De fato, o carro mudou a maneira de percebermos o tempo e as distâncias, alargou horizontes – fez com que nos tornássemos “auto-móveis”. Às vezes nos esquecemos de que se trata de uma máquina e a consideramos quase uma prótese do corpo, capaz de conferir potência e velocidade. Esses atributos, historicamente associados ao sexo masculino, não parecem seduzir tanto as mulheres. Para a maioria delas, o carro é um instrumento como outro qualquer. Para eles, é um objeto de desejo, alvo de afetos intensos. 

Para o psicólogo Francesco Albanese, presidente do laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento em Psicologia (Psicolab), na Itália, que há anos estuda psicologia do trânsito, para entender onde nascem essas diferenças é preciso voltar a Sigmund Freud e à psicanálise. Por estar associado subjetivamente a atributos considerados viris, como velocidade e potência (idéia amplamente reforçada pela propaganda), o carro se presta melhor a ser alvo de um processo de identificação masculina. E onde há identificação, há projeção da própria personalidade. Não por acaso, o homem tende a revestir o carro de significados simbólicos, a ponto de humanizá-lo como se fosse uma garota a ser cuidada ou uma mulher a ser amada. 

Os homens – ou pelo menos grande parte deles- – se tornam incrivelmente mais profundos quando o assunto é carro: não basta olhá-lo, é preciso vivê-lo e senti-lo com os cinco sentidos. Já as mulheres se permitem usar o veículo e, quando ele deixa de ser adequado às suas necessidades práticas, não lhes parece tão doloroso trocá-lo por outro. E, na maioria dos casos, limitam-se à estética e avaliam a relação custo–benefício. Raramente se ouve falar, por exemplo, de uma mulher que “se apaixonou” por um carro antigo e empregou tempo livre e economias na tarefa de restaurar o veículo. 

COM A FAMÍLIA
Se colocarmos homens e mulheres à mesma mesa para falarem de carros, o efeito pode ser hilário, garantem os psicólogos que trabalham com marketing: enquanto eles procuram um modelo potente e veloz, elas querem um produto seguro e, de preferência, fácil de estacionar. Eles adoram o som do motor, elas querem silêncio (até porque desejam ser ouvidas quando falam). Em geral, homens se inebriam com o cheiro de carro novo; muitas mulheres ficam enjoadas com o odor. No carro deles não há quase nada; no delas, tem de tudo – de batom a guarda-chuva, de revistas a peças de roupa. Essas diferenças têm grande importância para os estudiosos da psicologia do consumo e para os especialistas em publicidade. Até há pouco tempo era tudo mais simples: o carro era usado (e adquirido) pelo “pai de família”.

Hoje, porém, não é mais assim. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), de 2006, o total de mulheres chefes de família no Brasil aumentou 79% em dez anos, passando de 10,3 milhões, em 1996, para 18,5 milhões no ano passado. No mesmo período, o número de homens responsáveis pela família aumentou 25%. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), houve crescimento acentuado no número de mulheres casadas que assumem as rédeas da família. Esse percentual saltou de 9,1% em 1996 para 20,7% em dez anos. E quem tem o dinheiro também é, na maior parte das ocasiões, quem decide quando e como gastá-lo. Portanto, é preciso oferecer um veículo que responda às expectativas do potencial comprador – um mecanismo denominado personalização. 

Assim, as propagandas de carros “femininos” trazem referência a valores como amizade, bem-estar e elegância; apresentam mulheres esguias e charmosas (mas nunca excessivamente belas, apenas o suficiente para que a consumidora se identifique com a modelo). Por outro lado, nos comerciais de carros mais “masculinos”, os automóveis superequipados viajam por entre belas paisagens, sugerindo o quanto pode ser emocionante e desafiador descobrir novos caminhos. 

Em linhas gerais, a mensagem que a publicidade tenta passar toma por base a teoria freudiana: o homem anseia por ser forte e livre – e cultiva intimamente a fantasia, trazida da infância, de que poderá experimentar a completude, sem que nada possa detê-lo. Entre essas duas formas tão diversas de olhar para o automóvel coloca-se um novo alvo que vem tirando o sono de muitos publicitários: o carro da família. O que há de convidativo num carro em que devem caber cadeirinhas de segurança para crianças, o carrinho de bebê, a sacola de fraldas e um monte de bichos de pelúcia?

O carro para a família fez nascer, na mente dos psicólogos de marketing, um novo modelo masculino, o do homem de terno, obviamente com uma mulher jovem e bonita ao seu lado (mas não tão sensual a ponto de criar antipatias inconscientes nas companheiras que colaboram com a compra). E, claro, não podem faltar os filhos sorridentes; esse novo homem saboreia a liberdade, mas quer partilhar seus melhores momentos com a família, desfrutando o conforto que a tecnologia oferece. Essa espécime contemporânea deve saber que a verdadeira essência do macho não está em mergulhar em águas barrentas para apanhar um jacaré com as próprias mãos – mas em recuperar um coelho de pelúcia que a menina chorosa perdeu. Para depois retornar triunfante para seu domesticado off-road 4x4.

COMO SE FOSSE A CASA
Que demonstre mais ou menos seus sentimentos, pouco importa: em geral, o homem dedica ao próprio meio de transporte atenções que não reserva para nenhum outro objeto. O mesmo indivíduo que nem sonharia em dar uma enxaguada nos pratos sujos na pia num fim de semana é capaz de ficar debaixo de um sol escaldante aguardando para deixar brilhante o tão amado veículo. A mulher, por mais que seja preocupada com limpeza e atenta à organização doméstica, raramente se porta da mesma forma em relação ao carro: na maioria das vezes, leva o veículo para ser lavado quando está sujo e não se incomoda em acompanhar cada etapa do serviço. Afinal, para ela, a casa é uma parte de si, mas o carro absolutamente não é.

A mania por brilho, tipicamente masculina, também fez florescer uma verdadeira indústria de detergentes, ceras e polidores, sem falar nos sprays para painéis com “cheirinho de novo”, exatamente aquele cheiro “eau de plástico” que as mulheres realmente não suportam. Já os homens dificilmente toleram os perfumes para ambientes, tão bem aceitos por elas. 

Essas diferenças foram estudadas também com métodos científicos: recentemente, um grupo de psicólogos da Universidade Harvard mostrou para homens e mulheres imagens de carros brilhantes e sujos, novos e velhos, e assim por diante, e pediu-lhes que definissem o caráter do proprietário com base no aspecto do automóvel. Para os homens um carro limpo e brilhante está associado ao sucesso social, à estabilidade financeira e ao cuidado com a propriedade. Para as mulheres, um carro sujo é sinônimo de pessoa atarefada, que tem pouco tempo para detalhes insignificantes (mas dentro de certos limites: se o carro, além de sujo, for também velho e tiver a carroceria danificada, ele passa a ser identificado com um fracassado social).

O sexo de um pretenso comprador também influencia os meios usados pelos vendedores das concessionárias, como demonstra um curioso estudo realizado por pesquisadores da Escola de Economia da Universidade Yale e publicado na American Economic Review. Os psicólogos da universidade americana instruíram 300 voluntários de ambos os sexos e de várias etnias (brancos, negros e hispânicos) a negociar a compra de um carro usado. Conclusão: os vendedores tendem a aumentar os preços para as minorias e para as mulheres, ao passo que os homens brancos, valendo-se da mesma negociação, conseguem oferta melhor. E não é só isso: contando com a provável ignorância feminina sobre o assunto, os vendedores “empurram” a elas os carros em pior estado ou modelos menos valorizados pelo mercado.

“Esse fenômeno contradiz as leis da economia, já que, em todos os outros setores, quanto mais abastado parecer o comprador, mais alto será o preço que conseguirá”, observa o pesquisador Ian Ayres, um dos autores do estudo. Segundo ele, no caso de carros, porém, há aspectos específicos a serem considerados. “Cria-se uma espécie de aliança entre o homem comprador e o homem vendedor: ambos deixam-se enredar em intermináveis discussões sobre as qualidades do veículo, da mecânica à carroceria, e desse modo os papéis se confundem: da simpatia nasce o desconto. Para as mulheres e, às vezes, também para as minorias étnicas, se instaura um mecanismo oposto. É como se o vendedor olhasse o carro e dissesse: ´Pobre criatura, em que mãos vai acabar!´.”

VIDAS NO LIMITE
A forma como dirigimos pode ser vista como uma representação de nosso funcionamento psicológico, revelando não só escolhas, hábitos e crenças – muitas delas originadas na infância –, mas também aspectos reprimidos ou disfarçados de nossa personalidade. Há, porém, uma explicação neurobiológica para o fascínio pelas altas velocidades: a consciência (ainda que parcial) do risco desencadeia no organismo reações neurológicas e hormonais. A elevação dos níveis de adrenalina induz à hiperatividade do sistema nervoso e confere uma espécie de euforia artificial que, para alguns, pode resultar em satisfação. 

É o que acontece aos protagonistas do premiado Crash, de David Cronenberg, de 1996, adaptado do polêmico romance homônimo de James Ballard, que está sendo reeditado no Brasil. Nesse caso, os personagens buscam satisfação sexual ao correr como loucos e provocar acidentes.

Parece haver na história a simbologia de uma “contaminação” do ser humano pela máquina, sugerida pela metáfora do carro como prótese do corpo, como fusão entre metal e carne, numa realidade em que as pessoas, para escapar do achatamento afetivo, precisam de uma experiência violenta levada às últimas conseqüências. No filme, as cenas de sexo são frias e mecânicas, não há troca de olhares e, sobretudo, o que satisfaz nunca é o encontro afetivo. As emoções mais intensas são vividas quando os personagens assistem aos vídeos de acidentes.
- Associado subjetivamente a atributos considerados viris, como velocidade e potência (idéia reforçada pela propaganda), o carro se tornou alvo da identificação masculina. 

- A forma como dirigimos pode ser uma representação de nosso funcionamento psicológico, revelando não só escolhas, hábitos e crenças (muitas delas originadas na infância), mas também aspectos reprimidos ou disfarçados de nossa personalidade. 

- O fascínio pelas altas velocidades pode ter explicações neurobiológicas: a consciência (ainda que parcial) do risco desencadeia no organismo reações neurológicas e hormonais. A elevação dos níveis de adrenalina induz à hiperatividade do sistema nervoso e confere uma espécie de euforia artificial que, para alguns, pode resultar em sensação de satisfação.

A identificação do homem com um meio de transporte não é um fenômeno novo: numa época em que o carro nem sequer havia sido remotamente imaginado, a mitologia criou a figura do centauro, um ser de tronco humano num corpo de cavalo. Ao cavalgá-lo era possível adquirir os mesmos dons de velocidade e potência que hoje atribuímos ao carro. Pois, no fundo, existe a consciência de que essas qualidades não pertencem completamente ao homem – mas podem ser comandadas (como uma prótese); surge aí a ilusão de onipotência que faz aquele que guia se sentir capaz de superar qualquer obstáculo. Esse olhar psicológico evoca de imediato a triste realidade dos massacres nas estradas, que quase sempre se devem ao excesso de velocidade e à imprudência.

“Voltando a Freud, podemos pensar que a escolha de chegar até o limite máximo de velocidade do automóvel é, para algumas pessoas, uma forma de compensação, utilizada para nivelar traços pessoais deficitários e ostentar potência e força”, afirma Albanese. O pesquisador alerta, porém, que essa atitude revela um ato falho implícito. “Esses motoristas demonstram exatamente o contrário, pois já é de domínio do senso comum que quem é realmente forte não precisa demonstrá-lo de forma tão acintosa. Ao passarem em alta velocidade, colocando em risco a própria vida e a dos outros, esses indivíduos desafiam a lei, a física e também a morte. O próprio desejo de possuir carros barulhentos remete ao espírito do guerreiro ancestral: seria possível incutir medo no exército inimigo se não produzíssemos nenhum som?”

Talvez não por acaso o potente centauro da Antigüidade estava a serviço de Marte, deus da guerra, e era, com efeito, violento e arrogante. “De fato, de carro a maioria das pessoas se sentem muito mais prontas para suas próprias guerras pessoais (quaisquer que sejam elas). Nesse nicho nos sentimos protegidos, escondidos da visão dos demais pelos vidros, pelos reflexos e pela própria distância física, como se estivéssemos num tanque de guerra. O outro lado da moeda é que o outro tampouco estará completamente visível para nós e, portanto, não é identificado como uma pessoa digna de respeito ou piedade.”


Comportamento humano no trânsito. Maria Helena Hoffmann, Roberto Moraes Cruz e João Carlos Alchieri. Casa do Psicólogo, 2003.

Psicologia do trânsito: conceitos e processos básicos. Reinier J. Rozestraten. Epu/Edusp, 1998.

Psicologia ambiental e psicologia do trânsito: uma agenda de trabalho. H. Günther. Série Textos de Psicologia Ambiental, nº 8. Laboratório de Psicologia Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), 2004. Disponível em www.unb.br/ip/lpa/pdf/08PAePT.pdf.

Disponível em <http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/carros_paixao_masculina.html>. Acesso em 01 out 2012.