Revista Forum
02/02/2012
Se depender de membros do Legislativo, a iniciativa do
Executivo sobre a cirurgia de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
não acontecerá. Miguel Martini (PHS-MG) protocolou na Mesa Diretora da Casa um
projeto de decreto legislativo que interfere na identidade sexual de milhares
de pessoas: a realização do chamado “processo transexualizador” – ou cirurgia
de mudança de sexo – por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
O deputado quer suspender a Portaria 1.707, publicada em
agosto deste ano pelo Ministério da Saúde, que prevê a inclusão desse tipo de
cirurgia entre os procedimentos custeados pelo SUS. Caso seja aprovado pela
Câmara e pelo Senado, o decreto pode frustrar a expectativa das 500 pessoas
que, segundo o Coletivo Nacional de Transexuais, aguardam na fila da rede
pública para trocar de sexo.
“Ora, se o SUS não tem condições de atender as mulheres
durante o pré-natal, se não tem condições de fazer cirurgias, se não tem
condições de atender pacientes oncológicos, como poderá fazer cirurgia para
mudança de sexo, em detrimento daqueles que não têm condições de viver nem de
sobreviver?”, questionou Martini, integrante da Comissão de Seguridade Social e
Família da Câmara.
Um dos principais representantes no Congresso do movimento
Renovação Carismática, da Igreja Católica, Martini já articula o apoio da
Frente Parlamentar Evangélica para derrubar a norma, o que deve deflagrar mais
um embate entre religiosos e homossexuais no Parlamento, a exemplo do que já
ocorre na discussão do projeto de lei que torna crime a discriminação por
orientação sexual.
O presidente da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara,
João Campos (PSDB-GO), condena veementemente a possibilidade de mudança de sexo
por meio de procedimento bancado pelos SUS. “Isso é um absurdo. O SUS não está
tendo dinheiro para financiar políticas públicas curativas, ou de combate a
epidemias, vai ter dinheiro para atender a questões pontuais, individuais, de
alguns cidadãos brasileiros?”, protestou Campos, para quem a coletividade será
desrespeitada se esse tipo de cirurgia for realizado pelo SUS.
“Quantas pessoas estão esperando na fila para fazer cirurgia
de câncer de mama, por exemplo, e não conseguem? Isso é dissenso, uma falta de
juízo, uma excrescência”, completou o deputado, acrescentando que as
“conveniências” de determinados cidadãos não pode ser bancada pelo Estado sem
que esteja caracterizada a necessidade. “Quem quiser [fazer a cirurgia de troca
de sexo] que pague de seu próprio bolso. Além disso, homossexualidade não é
doença.”
João Campos afirma que, se todas as reivindicações dos
grupos homossexuais e congêneres fossem atendidas, o país viverá “uma ditadura
dos homossexuais”. “Se todas as demandas dos gays do país têm de ser
consideradas legais, tudo o que for contrário a elas será visto como
irregularidade”, declarou o tucano.
Já o presidente do grupo Estruturação (grupo LGBT –
Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros – de Brasília), Milton Santos, avalia
que a objeção dos deputados revela mais uma preocupação religiosa e falta de
conhecimento do que apreço pelo interesse público.
“Acho que alguns parlamentares se baseiam em fundamentos
bíblicos, religiosos, para questionar direitos conquistados pelo grupo LGBT”,
criticou Milton, dizendo que já enfrentou situações semelhantes envolvendo
congressistas. “Em geral, o Congresso tem um olhar para a população não se
baseando no que a Constituição rege. Alguns parlamentares não se preocupam em
se informar a respeito de certos assuntos.”
Religião
Miguel Martini contesta que sua iniciativa seja baseada em
questões religiosas. Segundo o deputado, motivos não faltam para barrar a
realização de cirurgias de mudança de sexo pelo SUS.
“É um motivo lógico, de um claro bom senso, e diria que
quase ético. Na medida em que o governo está buscando recursos para a saúde,
com vários problemas no setor, uma coisa dessas é uma ofensa à população”,
disse o líder do PHS, apelando à realidade social para reforçar sua
argumentação. “Eu presido uma entidade oncológica. As pessoas com câncer não
conseguem fazer as cirurgias previstas no SUS”, acrescentou.
Outra razão apontada por Martini é o custo da cirurgia de
mudança de sexo (cerca de R$ 1,5 mil), além da suposta falta de premência do
problema. “É uma coisa caríssima, um processo muito complexo. E quem é
homossexual não tem risco de morte porque é homossexual”, alegou o deputado,
dizendo ser até compreensível que países desenvolvidos, com eficiente estrutura
de saúde pública, ofereçam o serviço aos cidadãos.
“Mas é inaceitável em um país com os problemas do Brasil.
Isso [a operação] é um luxo, uma agressão à sociedade. Isso é um acinte contra
o povo brasileiro, contra o cidadão que não tem dinheiro, não tem atendimento,
está sofrendo dor, muitos estão morrendo nas filas do SUS”, arrematou o
deputado, acrescentando que o procedimento contraria o artigo 129 do Código
Penal Brasileiro – o Decreto Lei n.º 2.848, que define pena de detenção de três
meses a um ano para quem “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”.
Além disso, argumenta Martini, o segundo parágrafo do artigo
129 também estabelece que a pena é de “reclusão de dois a oito anos” se a lesão
corporal é resultado, entre outras hipóteses, de “perda ou inutilização de
membro, sentido ou função”.
Segundo a assessoria do ministério da Saúde, o argumento de
Miguel Martini é questionável. “Não há motivo para que o Estado não assista
pessoas que sofrem física e emocionalmente, quando o assunto é a necessidade em
saúde”, argumenta o ministério. Além disso, segundo a assessoria, o próprio
Conselho Federal de Medicina reconhece que a cirurgia de mudança de sexo não é
mais vista como procedimento experimental, e sim como prática clínica.
Disponível em http://revistaforum.com.br/blog/2012/02/deputados_querem_barrar_mudanca_de_sexo_pelo_sus-2/.
Acesso em 25 ago 2013.