Gisela G. S. Castro
Clarisse Setyon
Parece não ser possível hoje viver, assistir ou relatar
fatos sem que estes sejam permeados pelos discursos da mídia. Nossa sociedade
midiática é também conhecida como sociedade de consumo. As duas, inseparáveis,
se retroalimentam. Impossível dissociá-las. Assim como o ato de se comunicar é
condição inerente ao ser humano, também o são as práticas de consumo.
Consumimos comunicação. Comunicamos ao consumir. Para Baccega (2009, p. 3)
"consumir significa investir no pertencimento à sociedade, tornar-se
vendável". Assim sendo o consumo é algo central na vida do sujeito que
almeja viver em sociedade.
A aliança entre mídia e consumo colabora para incorporar o
indivíduo à lógica do valor discriminatório do consumo. A identificação do indivíduo,
além das dimensões fundamentais como nome, atividade ou profissão, incorpora
também a tipologia de consumo a que tem acesso, bem como suas escolhas de bens
e serviços. Everardo Rocha e Gisela Castro (2012, p. 169) ensinam que "o
consumo constitui um código por meio do qual nós nos relacionamos com nossos
pares e com o mundo a nossa volta".
Em clássico estudo sobre o consumo, Néstor Garcia Canclini
(1999, p. 79) constata que "nas sociedades contemporâneas, boa parte da
racionalidade das relações sociais se constrói, mais do que na luta pelos meios
de produção, da disputa pela apropriação dos meios de distinção
simbólica". Nesse processo, a apropriação desses símbolos visa
proporcionar a tão desejada posição de destaque no mercado social. Ainda que o consumo
seja comumente reduzido ao mero consumismo, sabemos que os processos de consumo
são bastante mais complexos do que frutos de impulsos irrefreáveis deflagrados
pelos incessantes apelos da publicidade.
A aliança entre mídia e consumo colabora para incorporar o
indivíduo à lógica do valor discriminatório do consumo. A identificação do
indivíduo, além das dimensões fundamentais como nome, atividade ou profissão,
incorpora também o que se consome
Zygmunt Bauman (2008) destaca a transformação de pessoas em
mercadorias no mundo atual. Segundo o autor, a sociedade contemporânea "se
distingue por uma reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e à
semelhança, das relações entre os consumidores e os objetos de consumo"
(p. 19). Parafraseando William Shakespeare, Bauman explica que "numa
sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a
matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas" (p. 22).
Sem compartilhar da visão excessivamente sombria do
sociólogo polonês, entendemos que o ambiente competitivo que vigora na esfera
profissional se estende para o âmbito da vida pessoal. Assim como é exigido que
o sujeito aprenda a se autogerir e que encontre as orientações para seu melhor
desempenho no mundo corporativo, também na vida social suas escolhas, suas
ações e possíveis consequências devem ser objeto de rigoroso e permanente
escrutínio.
Coerente com o ideário neoliberal, a figura do sujeito
empreendedor tornou-se modelo dominante nos mais diversos contextos. Constantes
desafios e cobranças por desempenho nos confrontam a cada momento. Em oportuna
reflexão sobre o imperativo da felicidade em nossos dias, João Freire Filho
(2010, p. 23) constata "relevantes conexões entre os projetos individuais
de cuidado pessoal e de bem-estar subjetivo e os princípios da governabilidade
neoliberal".
O sujeito empreendedor não obtém sucesso por mero acaso. Ele
precisa ser, antes de tudo, alguém que está disposto a arriscar. Em uma
sociedade regida pela incerteza e pela competição constante, a capacidade de
enfrentar desafios e superar riscos se torna quesito de sobrevivência. Nesse
tempo de acirrado culto da performance, qualquer deslize pode custar caro.
Em cada esfera da vida é necessário exibir desempenho
exemplar. Caso contrário pode-se estar condenado ao insucesso e ao ostracismo
social. Sendo assim, o sujeito empreendedor deve cuidar de sua vida pessoal com
o mesmo esmero com que gere sua vida profissional. Também nas relações sociais
o nível de exigência precisa ser alto. É preciso ostentar desempenho
superlativo para que se possa atrair interesse e admiração. A esse respeito,
Freire Filho (2010, p. 15) comenta que a "expansionista indústria do
bem-estar e do aprimoramento pessoal disponibiliza uma alentada rede de
produtos e serviços".
O ambiente competitivo que vigora na esfera profissional se
estende para o âmbito da vida pessoal. Em qualquer idade e para qualquer um,
não basta ser atraente, ativo e disponível
Tal premissa vigora até mesmo nas áreas mais íntimas da
existência, como no âmbito das práticas sexuais que interessam mais diretamente
à reflexão aqui proposta. É relevante questionar a relação entre a comunicação
midiática e o consumo de produtos e serviços destinados a potencializar o
desempenho sexual, bem como a maneira pela qual as subjetividades são chamadas
a se adaptar para que os indivíduos possam ser percebidos como inseridos no contexto
hipercompetitivo da contemporaneidade.
A mercadorização do sexual
Ao discorrer sobre as transformações na intimidade em nossos
dias, Giddens (1993, p. 73) percebe que "o cultivo de habilidades sexuais
e a capacidade de proporcionar e experimentar satisfação sexual" são hoje
indispensáveis. Como lembra o autor, a indústria do bem-estar coloca à
disposição uma "multiplicidade de fontes de informações, de aconselhamento
e de treinamento sexual" (idem) que prometem conferir "algo a mais"
nas relações sexuais atuais.
É fundamental preocupar-se constantemente em promover
um upgrade na performance sexual, como se houvesse uma espécie de esgotamento ou
tédio nas atividades sexuais mais cotidianas. Os parceiros estão em busca de
kits que lhes permitam potencializar o prazer, reduzir a monotonia de relações
mais duradouras, ou apenas mostrarem-se felizes e bem-sucedidos por dominarem
novas táticas que prometem potencializar o gozo.
Em tempos de neoliberalismo, o sujeito empreendedor se
esmera na gestão de si como se fosse, ele próprio, um produto com o objetivo de
tornar-se socialmente atraente e desejável. Como parte da engenharia
individual, uma aparência jovem, saudável e uma boa disposição física e mental
comparecem como atributos mandatórios. Para atingi-los o sujeito sai em busca
da miríade de ofertas que se apresentam. O importante é apostar todas as fichas
no autoaprimoramento para promover e ampliar seu valor social. Pode-se dizer
que há hoje certa anormalidade percebida em relação àqueles que se afastam
dessa busca.
Em qualquer idade e para qualquer um, não basta ser
atraente, ativo e disponível. Além do corpo turbinado por exercícios e próteses
de todo tipo, é preciso constituir-se como um verdadeiro atleta sexual,
apropriando-se de saberes e recursos antes restritos a profissionais do ramo. A
constituição do sexual como arena de mercado pode ser constatada em todos os
momentos, nos mais diversos ambientes. Ela é visível, sobremaneira, no discurso
midiático.
Retomando o consumidor, seus desejos, necessidades e
desafios constantes, um desempenho sexual impecável, além do esperado,
configura o leque de predicados exigidos em uma sociedade que cultua os que por
alguma razão se situam muito acima da média. O desejável seria a performance
diferenciada, desempenho e desenvoltura extraordinários, troféus a serem
exibidos para todos e por cada um. Estimula-se o consumo de produtos, serviços
e saberes na luta cotidiana contra a insegurança da mediocridade. Acessórios
como sex toys e lingerie provocante, aliados a práticas como o strip tease, a
dança do ventre ou a pole dance prometem novos e irresistíveis prazeres e
tornaram-se um must para indivíduos de qualquer idade ou posição social.
Para além da proliferação dos sex shops nas cidades
brasileiras, o erotismo tem lugar de destaque no discurso midiático. Diversas
emissoras de TV diariamente dedicam partes de sua programação a pautas
relativas à sexualidade. Frequentemente esses programas e outros conteúdos
midiáticos são legitimados por indivíduos das mais diversas áreas. São modelos,
artistas, médicos, políticos, líderes de opinião diversos que se apresentam
aptos a contar, a uma audiência em constante busca de referências para novas
ações empreendedoras e formações identitárias, algo que ainda não seja de domínio
público a respeito de práticas sexuais "da moda", mais eficientes,
irresistíveis, que proporcionem um melhor desempenho.
O cultivo de habilidades sexuais e a capacidade de
proporcionar e experimentar satisfação sexual são hoje indispensáveis. Assistimos
a consolidação da esfera sexual como arena onde se enseja a promoção de uma
vasta gama de produtos
Segundo Bauman (2008, p. 87), "há muitas áreas em que
precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma compra. Compramos
para parecer, compramos para melhorar a impressão de quem nos consome".
Nossa argumentação sugere que atualmente também na esfera das práticas sexuais
mais cotidianas tudo se transforma em mercadorias, que devem ser consumidas com
o objetivo principal de projetar uma imagem de indivíduo cuja performanceé
superior. Esse indivíduo seria percebido como mais atraente e desejável no
ultracompetitivo mercado das subjetividades contemporâneas.
Afinal é sabido que os discursos midiáticos não são
ingênuos. Parece haver um interesse por parte dos produtores dos conteúdos em
não apenas comercializar certos produtos propriamente ditos como, sobretudo,
construir sentidos sociais que enfatizam sua importância para uma eficaz gestão
de si na qualidade de vida. Devemos refletir sobre a constituição desses
sentidos, uma vez que os discursos da mídia permeiam, orientam e modulam o
contexto sociocultural e as diversas práticas de consumo.
Em tempos de neoliberalismo, o sujeito empreendedor se
esmera na gestão de si como se fosse, ele próprio, um produto com o objetivo de
tornar-se socialmente atraente e desejável
Assistimos a consolidação da esfera sexual como arena onde
se ensejam a promoção e o consumo de uma vasta gama de produtos relacionados às
práticas sexuais. Os interesses existentes por parte dos produtores de conteúdo
midiático em apresentar artigos diversos em forma de sentidos sociais encontram
eco também na indústria de bens de consumo. Néstor Garcia Canclini (1999, p.
78) destaca que "é inegável que as ofertas de bens e a indução
publicitária de sua compra não são atos arbitrários". Como ensina,
"comprar objetos, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros são
os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as
interações incertas com os demais" (1999, p. 83). Os discursos
transformadores funcionam de modo pedagógico. Sabemos do papel central desempenhado
pelos discursos midiáticos na construção da subjetividade.
Douglas Kellner » O filósofo ensina que "a cultura da
mídia é vista como um terreno de disputa que reproduz, em nível cultural, os
conflitos fundamentais da sociedade" (2001, p. 134). O autor reforça esse
pensamento quando apresenta a noção de "horizonte social" (2001, p.
137), a qual se refere "às experiências, às práticas e aos aspectos reais
do campo social que ajudam a estruturar o universo da cultura da mídia e sua
recepção" (idem). Finalmente, o autor conclui afirmando que a
"cultura veiculada pela mídia divulga imagens e cenas poderosas em termos
de identificação que podem influenciar diretamente o comportamento, criando
modelos de ação, moda e estilo" (2001, p. 142).
De acordo com Paula Sibilia, nos dias de hoje "o
produto comprado e vendido, em todos os casos, é o consumidor" (2002, p.
35). Para desbancar a competição no mercado das subjetividades, a mesma lógica
prevalece: ser o(a) mais atraente para ser o escolhido(a), ter sucesso. O principal
perigo é tornar-se falha(o) ou obsoleta(o). Daí estarmos sujeitos às
"tiranias do upgrade", expressão utilizada por Sibilia para descrever
o cruel imperativo do autoaperfeiçoamento perpétuo.
Ao escrever sobre a importância dos meios de comunicação na
formação de identidades, Douglas Kellner (2001) comenta que, diferentemente de
séculos atrás, a construção de identidades ocorre hoje como no teatro, por meio
da representação de papéis. Diz o autor "a identidade pós-moderna gira em
torno do lazer e está centrada na aparência, na imagem e no consumo"
(2001, p. 311).
Jogo » Kellner explica que o lazer ao qual se refere
poderia ser um jogo onde todos conhecem as regras e jogam de acordo com elas. O
autor encerra essa argumentação ao afirmar que "o jogador torna-se alguém
quando é bem-sucedido e obtém identidade por meio de admiração e do respeito de
outros jogadores" (Kellner, 2001, p. 311).
Para concluir
Ao que tudo indica, a mercadorização do sexual se apresenta
como forma de fornecer instrumentos para a autogestão do indivíduo, este também
como mercadoria, em um jogo descrito por Kellner. Habilidades sensuais,
conhecimentos de práticas eróticas, aquisição de sex toys, novos e antigos
saberes e condutas, tudo isso faz parte do kit de predicados indispensáveis aos
moldes de certa pedagogia midiática em vigor.
À disposição daqueles que estão prontos a investir no
constante aprimoramento da sua autoimagem, incontáveis matérias de jornais e
revistas anunciam todo tipo de serviços e produtos voltados para esse fim.
Essas ofertas não falam apenas de como o indivíduo que busca destaque deve se
posicionar. Elas ressaltam também as dificuldades e medos que devem ser
superados para se atingir esse objetivo. As soluções estariam ao alcance de
cada um, bastando uma dose certa de investimento pessoal para alcançá-las. O
sucesso, a satisfação e o bem-estar não seriam resultados do acaso ou do
destino; tornariam-se obrigação e dependeriam fundamentalmente do empenho
individual.
O sucesso, a satisfação e o bem-estar não seriam resultados
do acaso ou do destino; tornaram-se obrigação e dependeriam fundamentalmente do
empenho individual
Num contexto onde juventude, beleza, sensualidade e máxima
performance constituem chaves para o sucesso, as mais diversas práticas de
consumo se apresentam como investimentos indispensáveis no ideário do amante
irresistível.
Referências
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