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domingo, 7 de julho de 2013

Atraente, confiante, competente

Gisela G. S. Castro
Clarisse Setyon

Parece não ser possível hoje viver, assistir ou relatar fatos sem que estes sejam permeados pelos discursos da mídia. Nossa sociedade midiática é também conhecida como sociedade de consumo. As duas, inseparáveis, se retroalimentam. Impossível dissociá-las. Assim como o ato de se comunicar é condição inerente ao ser humano, também o são as práticas de consumo. Consumimos comunicação. Comunicamos ao consumir. Para Baccega (2009, p. 3) "consumir significa investir no pertencimento à sociedade, tornar-se vendável". Assim sendo o consumo é algo central na vida do sujeito que almeja viver em sociedade.

A aliança entre mídia e consumo colabora para incorporar o indivíduo à lógica do valor discriminatório do consumo. A identificação do indivíduo, além das dimensões fundamentais como nome, atividade ou profissão, incorpora também a tipologia de consumo a que tem acesso, bem como suas escolhas de bens e serviços. Everardo Rocha e Gisela Castro (2012, p. 169) ensinam que "o consumo constitui um código por meio do qual nós nos relacionamos com nossos pares e com o mundo a nossa volta".

Em clássico estudo sobre o consumo, Néstor Garcia Canclini (1999, p. 79) constata que "nas sociedades contemporâneas, boa parte da racionalidade das relações sociais se constrói, mais do que na luta pelos meios de produção, da disputa pela apropriação dos meios de distinção simbólica". Nesse processo, a apropriação desses símbolos visa proporcionar a tão desejada posição de destaque no mercado social. Ainda que o consumo seja comumente reduzido ao mero consumismo, sabemos que os processos de consumo são bastante mais complexos do que frutos de impulsos irrefreáveis deflagrados pelos incessantes apelos da publicidade.

A aliança entre mídia e consumo colabora para incorporar o indivíduo à lógica do valor discriminatório do consumo. A identificação do indivíduo, além das dimensões fundamentais como nome, atividade ou profissão, incorpora também o que se consome

Zygmunt Bauman (2008) destaca a transformação de pessoas em mercadorias no mundo atual. Segundo o autor, a sociedade contemporânea "se distingue por uma reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e à semelhança, das relações entre os consumidores e os objetos de consumo" (p. 19). Parafraseando William Shakespeare, Bauman explica que "numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas" (p. 22).

Sem compartilhar da visão excessivamente sombria do sociólogo polonês, entendemos que o ambiente competitivo que vigora na esfera profissional se estende para o âmbito da vida pessoal. Assim como é exigido que o sujeito aprenda a se autogerir e que encontre as orientações para seu melhor desempenho no mundo corporativo, também na vida social suas escolhas, suas ações e possíveis consequências devem ser objeto de rigoroso e permanente escrutínio.

Coerente com o ideário neoliberal, a figura do sujeito empreendedor tornou-se modelo dominante nos mais diversos contextos. Constantes desafios e cobranças por desempenho nos confrontam a cada momento. Em oportuna reflexão sobre o imperativo da felicidade em nossos dias, João Freire Filho (2010, p. 23) constata "relevantes conexões entre os projetos individuais de cuidado pessoal e de bem-estar subjetivo e os princípios da governabilidade neoliberal".

O sujeito empreendedor não obtém sucesso por mero acaso. Ele precisa ser, antes de tudo, alguém que está disposto a arriscar. Em uma sociedade regida pela incerteza e pela competição constante, a capacidade de enfrentar desafios e superar riscos se torna quesito de sobrevivência. Nesse tempo de acirrado culto da performance, qualquer deslize pode custar caro.

Em cada esfera da vida é necessário exibir desempenho exemplar. Caso contrário pode-se estar condenado ao insucesso e ao ostracismo social. Sendo assim, o sujeito empreendedor deve cuidar de sua vida pessoal com o mesmo esmero com que gere sua vida profissional. Também nas relações sociais o nível de exigência precisa ser alto. É preciso ostentar desempenho superlativo para que se possa atrair interesse e admiração. A esse respeito, Freire Filho (2010, p. 15) comenta que a "expansionista indústria do bem-estar e do aprimoramento pessoal disponibiliza uma alentada rede de produtos e serviços".

O ambiente competitivo que vigora na esfera profissional se estende para o âmbito da vida pessoal. Em qualquer idade e para qualquer um, não basta ser atraente, ativo e disponível

Tal premissa vigora até mesmo nas áreas mais íntimas da existência, como no âmbito das práticas sexuais que interessam mais diretamente à reflexão aqui proposta. É relevante questionar a relação entre a comunicação midiática e o consumo de produtos e serviços destinados a potencializar o desempenho sexual, bem como a maneira pela qual as subjetividades são chamadas a se adaptar para que os indivíduos possam ser percebidos como inseridos no contexto hipercompetitivo da contemporaneidade.

A mercadorização do sexual

Ao discorrer sobre as transformações na intimidade em nossos dias, Giddens (1993, p. 73) percebe que "o cultivo de habilidades sexuais e a capacidade de proporcionar e experimentar satisfação sexual" são hoje indispensáveis. Como lembra o autor, a indústria do bem-estar coloca à disposição uma "multiplicidade de fontes de informações, de aconselhamento e de treinamento sexual" (idem) que prometem conferir "algo a mais" nas relações sexuais atuais.

É fundamental preocupar-se constantemente em promover um upgrade na performance sexual, como se houvesse uma espécie de esgotamento ou tédio nas atividades sexuais mais cotidianas. Os parceiros estão em busca de kits que lhes permitam potencializar o prazer, reduzir a monotonia de relações mais duradouras, ou apenas mostrarem-se felizes e bem-sucedidos por dominarem novas táticas que prometem potencializar o gozo.

Em tempos de neoliberalismo, o sujeito empreendedor se esmera na gestão de si como se fosse, ele próprio, um produto com o objetivo de tornar-se socialmente atraente e desejável. Como parte da engenharia individual, uma aparência jovem, saudável e uma boa disposição física e mental comparecem como atributos mandatórios. Para atingi-los o sujeito sai em busca da miríade de ofertas que se apresentam. O importante é apostar todas as fichas no autoaprimoramento para promover e ampliar seu valor social. Pode-se dizer que há hoje certa anormalidade percebida em relação àqueles que se afastam dessa busca.

Em qualquer idade e para qualquer um, não basta ser atraente, ativo e disponível. Além do corpo turbinado por exercícios e próteses de todo tipo, é preciso constituir-se como um verdadeiro atleta sexual, apropriando-se de saberes e recursos antes restritos a profissionais do ramo. A constituição do sexual como arena de mercado pode ser constatada em todos os momentos, nos mais diversos ambientes. Ela é visível, sobremaneira, no discurso midiático.

Retomando o consumidor, seus desejos, necessidades e desafios constantes, um desempenho sexual impecável, além do esperado, configura o leque de predicados exigidos em uma sociedade que cultua os que por alguma razão se situam muito acima da média. O desejável seria a performance diferenciada, desempenho e desenvoltura extraordinários, troféus a serem exibidos para todos e por cada um. Estimula-se o consumo de produtos, serviços e saberes na luta cotidiana contra a insegurança da mediocridade. Acessórios como sex toys e lingerie provocante, aliados a práticas como o strip tease, a dança do ventre ou a pole dance prometem novos e irresistíveis prazeres e tornaram-se um must para indivíduos de qualquer idade ou posição social.

Para além da proliferação dos sex shops nas cidades brasileiras, o erotismo tem lugar de destaque no discurso midiático. Diversas emissoras de TV diariamente dedicam partes de sua programação a pautas relativas à sexualidade. Frequentemente esses programas e outros conteúdos midiáticos são legitimados por indivíduos das mais diversas áreas. São modelos, artistas, médicos, políticos, líderes de opinião diversos que se apresentam aptos a contar, a uma audiência em constante busca de referências para novas ações empreendedoras e formações identitárias, algo que ainda não seja de domínio público a respeito de práticas sexuais "da moda", mais eficientes, irresistíveis, que proporcionem um melhor desempenho.

O cultivo de habilidades sexuais e a capacidade de proporcionar e experimentar satisfação sexual são hoje indispensáveis. Assistimos a consolidação da esfera sexual como arena onde se enseja a promoção de uma vasta gama de produtos

Segundo Bauman (2008, p. 87), "há muitas áreas em que precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma compra. Compramos para parecer, compramos para melhorar a impressão de quem nos consome". Nossa argumentação sugere que atualmente também na esfera das práticas sexuais mais cotidianas tudo se transforma em mercadorias, que devem ser consumidas com o objetivo principal de projetar uma imagem de indivíduo cuja performanceé superior. Esse indivíduo seria percebido como mais atraente e desejável no ultracompetitivo mercado das subjetividades contemporâneas.

Afinal é sabido que os discursos midiáticos não são ingênuos. Parece haver um interesse por parte dos produtores dos conteúdos em não apenas comercializar certos produtos propriamente ditos como, sobretudo, construir sentidos sociais que enfatizam sua importância para uma eficaz gestão de si na qualidade de vida. Devemos refletir sobre a constituição desses sentidos, uma vez que os discursos da mídia permeiam, orientam e modulam o contexto sociocultural e as diversas práticas de consumo.

Em tempos de neoliberalismo, o sujeito empreendedor se esmera na gestão de si como se fosse, ele próprio, um produto com o objetivo de tornar-se socialmente atraente e desejável

Assistimos a consolidação da esfera sexual como arena onde se ensejam a promoção e o consumo de uma vasta gama de produtos relacionados às práticas sexuais. Os interesses existentes por parte dos produtores de conteúdo midiático em apresentar artigos diversos em forma de sentidos sociais encontram eco também na indústria de bens de consumo. Néstor Garcia Canclini (1999, p. 78) destaca que "é inegável que as ofertas de bens e a indução publicitária de sua compra não são atos arbitrários". Como ensina, "comprar objetos, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros são os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os demais" (1999, p. 83). Os discursos transformadores funcionam de modo pedagógico. Sabemos do papel central desempenhado pelos discursos midiáticos na construção da subjetividade.

Douglas Kellner » O filósofo ensina que "a cultura da mídia é vista como um terreno de disputa que reproduz, em nível cultural, os conflitos fundamentais da sociedade" (2001, p. 134). O autor reforça esse pensamento quando apresenta a noção de "horizonte social" (2001, p. 137), a qual se refere "às experiências, às práticas e aos aspectos reais do campo social que ajudam a estruturar o universo da cultura da mídia e sua recepção" (idem). Finalmente, o autor conclui afirmando que a "cultura veiculada pela mídia divulga imagens e cenas poderosas em termos de identificação que podem influenciar diretamente o comportamento, criando modelos de ação, moda e estilo" (2001, p. 142).

De acordo com Paula Sibilia, nos dias de hoje "o produto comprado e vendido, em todos os casos, é o consumidor" (2002, p. 35). Para desbancar a competição no mercado das subjetividades, a mesma lógica prevalece: ser o(a) mais atraente para ser o escolhido(a), ter sucesso. O principal perigo é tornar-se falha(o) ou obsoleta(o). Daí estarmos sujeitos às "tiranias do upgrade", expressão utilizada por Sibilia para descrever o cruel imperativo do autoaperfeiçoamento perpétuo.

Ao escrever sobre a importância dos meios de comunicação na formação de identidades, Douglas Kellner (2001) comenta que, diferentemente de séculos atrás, a construção de identidades ocorre hoje como no teatro, por meio da representação de papéis. Diz o autor "a identidade pós-moderna gira em torno do lazer e está centrada na aparência, na imagem e no consumo" (2001, p. 311).

Jogo » Kellner explica que o lazer ao qual se refere poderia ser um jogo onde todos conhecem as regras e jogam de acordo com elas. O autor encerra essa argumentação ao afirmar que "o jogador torna-se alguém quando é bem-sucedido e obtém identidade por meio de admiração e do respeito de outros jogadores" (Kellner, 2001, p. 311).

Para concluir

Ao que tudo indica, a mercadorização do sexual se apresenta como forma de fornecer instrumentos para a autogestão do indivíduo, este também como mercadoria, em um jogo descrito por Kellner. Habilidades sensuais, conhecimentos de práticas eróticas, aquisição de sex toys, novos e antigos saberes e condutas, tudo isso faz parte do kit de predicados indispensáveis aos moldes de certa pedagogia midiática em vigor.

À disposição daqueles que estão prontos a investir no constante aprimoramento da sua autoimagem, incontáveis matérias de jornais e revistas anunciam todo tipo de serviços e produtos voltados para esse fim. Essas ofertas não falam apenas de como o indivíduo que busca destaque deve se posicionar. Elas ressaltam também as dificuldades e medos que devem ser superados para se atingir esse objetivo. As soluções estariam ao alcance de cada um, bastando uma dose certa de investimento pessoal para alcançá-las. O sucesso, a satisfação e o bem-estar não seriam resultados do acaso ou do destino; tornariam-se obrigação e dependeriam fundamentalmente do empenho individual.

O sucesso, a satisfação e o bem-estar não seriam resultados do acaso ou do destino; tornaram-se obrigação e dependeriam fundamentalmente do empenho individual

Num contexto onde juventude, beleza, sensualidade e máxima performance constituem chaves para o sucesso, as mais diversas práticas de consumo se apresentam como investimentos indispensáveis no ideário do amante irresistível.

Referências
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Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/45/artigo279543-1.asp. Acesso em 29 jun 2013.