Fabiana Moraes
1 de abril de 2012
Faz um ano que Juliana Amorim, 26 anos, saiu do Hospital das
Clínicas (HC) após se submeter a cirurgia de redesignação sexual. Estava certa
que seu cotidiano se ajustaria ao corpo que finalmente traduzia por fora aquilo
o que ela era por dentro. Doze meses depois, Juliana passa por constrangimentos
parecidos com aqueles que enfrentava antes de iniciar o demorado processo de
transexualização: tem vergonha do novo corpo, está depressiva e não fica nua na
frente do próprio marido. Seu canal vaginal, aberto quando transexuais
masculinos passam para o feminino, está fechado, com o novo sexo cumprindo uma
função meramente estética. Ela procurou há meses o HC para resolver o problema
e teve uma péssima notícia: os procedimentos de transexualização, assim como
aqueles que podem ocorrer após a cirurgia, foram suspensos. Duas outras
transexuais enfrentam o mesmo problema.
O colamento das paredes (estenose) da neovagina de Juliana
foi provocado pela própria paciente. "Percebi que o canal não
foi aberto totalmente no meio, e mais à
direita. Quando eu movimentava a perna, o molde era expulso. Sentia dor para
recolocar, sentia dor quando fazia movimentos simples. Deixei fechar para que
reabrissem da maneira correta".
O molde ao qual ela se refere, um pênis
de borracha com aproximadamente 12 centímetros,
deve ser mantido dentro do canal para que a neovagina não se feche durante a cicatrização. Além de
Juliana, outras pacientes estão com o canal fechado. Joicy Melo, 51, fez duas
reaberturas para dilatar as paredes vaginais, sem sucesso. A agricultora e
cabeleireira também foi informada que não há, atualmente, um médico para
realizar a nova cirurgia. Outra paciente já operada que sofre de estenose,
segundo o HC, é a cabeleireira Cynthia Lourenço, operada em 2006.
Segundo nota enviada pelo hospital, os procedimentos foram
suspensos por conta da aposentadoria, no ano passado, do cirurgião
ginecologista Sabino Pinho, responsável por todas as 22 pacientes que
realizaram a redesignação sexual no HC. A retomada da marcação de consulta
aconteceria, diz a nota, na segunda quinzena de abril. Apesar disso, Sabino
Pinho opera, no dia 23 de abril, a transexual Graziele dos Santos, 24. A
intervenção comandada pelo cirurgião explica-se pelo fato de o médico
acompanhar a paciente há mais de dois anos. "Me comprometi com ela", diz o médico.
Seguindo a mesma lógica,
resta saber por que mulheres que necessitam de intervenções de porte bem menor, a exemplo de Juliana, Cynthia e Joicy,
estão há meses com o corpo fechado.
As transexuais foram diversas vezes, após a cirurgia, ao HC.
Juliana, semanas após a intervenção, sofreu uma infecção urinária e ainda
precisou de uma nova operação para redesenhar a vagina, já que havia excesso de
pele. Durante a recuperação, uma enfermeira esqueceu fechada a sonda posta em
Juliana e a urina se acumulou em seu organismo. "A cirurgia explodiu, ficou horrível".
Uma nova intervenção foi
feita para recompor a vagina. Juliana, porém, não ficou
satisfeita com a aparência de
seu púbis. "Vi o resultado da cirurgia
de outras meninas. Não está igual. Minha vagina está horrível, exposta, sem a
cobertura dos lábios".
Ela conta que, em uma das últimas
consultas, ao reclamar da aparência
do púbis, ouviu do cirurgião: "Se quisesse melhor, deveria ter nascido mulher". Sabino Pinho diz que,
antes do acidente, a cirurgia estava perfeita. "Fiz o melhor que pude para recompor a vagina, mas é claro que não ficou do jeito que eu operei
anteriormente. O que eu quis dizer é
que posso fazer a dilatação,
que a recomposição é o que
melhor pude fazer. Não me lembro nem como falei". A frustração
com o corpo que apenas se aproxima daquilo que Juliana sempre sonhou tem
provocado outras dificuldades na sua vida. Na semana passada, comemorava ter
conseguido um trabalho. Na quarta, pediu para sair. "Deixei o emprego para correr atrás da cirurgia. Não tem como ficar feliz por muito
tempo".
Joicy tem situação ainda mais complicada. Sem um parceiro
para apoiá-la e vivendo em Alagoinha, no Agreste, a 250 quilômetros do Recife,
a agricultora realizou a cirurgia em novembro de 2010. Em meados do ano
passado, precisou dilatar as paredes do canal vaginal. Sem os cuidados
necessários para manter o molde no local (uso de calcinhas mais apertadas) e
sem dinheiro para comprar os medicamentos que ajudariam na cicatrização (pomada
à base de fibrinolisina, cerca de R$ 50, 30 gramas), o canal fechou novamente.
Voltou ao HC e refez o procedimento. As paredes colaram mais uma vez. Joicy
serve como um forte exemplo de como a cirurgia de transexualização não pode
ser pensada apenas como uma intervenção em si: ela envolve um cuidado mais
amplo das pacientes, que precisam ser acompanhadas semanalmente após saírem do
hospital (como o Sistema Único de Saúde recomenda). A não observação deste
fator pelo HC tem causado não só o sofrimento de várias transexuais, mas custos
mais elevados ao próprio serviço público de saúde, já que as reaberturas de
canal também são feitas com verbas federais.
Identidade
O pacote da falta de cuidados atrelados à transexualização
inclui a ausência de orientação para que as novas mulheres consigam adotar o
nome social em documentos como a identidade. O hospital afirma que assessora as
pacientes após a cirurgia, mas na prática isso não acontece. De acordo com
relatos das próprias transexuais, as recomendações do HC não são as mesmas para
todas as mulheres. Tamires Gomes, 37, fez a cirurgia em dezembro mas ainda não
teve acesso ao laudo médico indicando sua condição de transexual atendida pelo
serviço público. "Fui
no HC no começo de março para
uma consulta, mas informaram que não havia médico. Também não consegui falar
sobre o laudo". Este
documento, indicando que um psiquiatra encontrou na paciente um distúrbio de identidade, é importante para que o processo
seja iniciado e corra sem grandes complicações. Joicy até hoje carrega consigo
a identidade onde lemos João Batista da Silva no lugar da assinatura. Está há
anos tentando dar conta da burocracia que acompanhou todo seu processo de
transformação em mulher. Perdeu a conta das vezes que foi ao Fórum de Alagoinha
tentando resolver a questão. Juliana procurou um advogado particular. Ele
solicitou o laudo do psiquiatra e uma xerox do prontuário para apresentar à
Justiça. "Falei com
Inalda (Lafayette, psicóloga
que acompanha as transexuais no HC) e ela conseguiu o laudo, mas não o
prontuário. Disseram que só passariam se a Justiça pedisse".
A falta de cuidado do hospital em relação às pacientes
transexuais alertou entidades como a Articulação e Movimento para Travestis e
Transexuais de Pernambuco (Amotrans) e o Núcleo de Pesquisa em Gênero e
Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco (Gema/UFPE), ambas
incluídas no Fórum LGBT de Pernambuco. Este vem colhendo informações para
entrar com um pedido de audiência pública no Ministério Público. "Temos recebido algumas denúncias de procedimentos irregulares
na readequação sexual
realizada pelo HC", diz
Tiago Corrêa, do Gema.
Cirurgia fora da lista oficial do SUS
Realizadas há 11 anos, as cirurgias de redesignação sexual
do Hospital das Clínicas (HC) não fazem parte, oficialmente, da rede do Sistema
Único de Saúde (SUS). No local, o processo de transexualização é feito com a
verba que o sistema destina para procedimentos de alta complexidade (o
tratamento, que dura mais de dois anos, custa cerca de R$ 1,3 milhão por
paciente). No Brasil, apenas quatro hospitais públicos atendem transexuais
masculinos para femininos através do SUS: Hospital das Clínicas de Porto
Alegre, Hospital Universitário Pedro Ernesto (Universidade Estadual do Rio de
Janeiro), Fundação Faculdade de Medicina/Instituto de Psiquiatria (São Paulo) e
Hospital das Clínicas de Goiás.
O Hospital das Clínicas pernambucano não foi habilitado pelo
Ministério da Saúde para as cirurgias porque não atende aos pré-requisitos exigidos
pelo SUS. O texto voltado para o tratamento de transexuais é claro: o
acompanhamento das pacientes não pode se restringir ao diagnóstico e à
intervenção cirúrgica, tem que dar conta da saúde integral das transexuais, com
ênfase na reinserção social. Dentro desse processo, está incluída a terapia
hormonal, havendo necessidade de assistência endocrinológica. "Os exames devem ser realizados com
intervalo máximo de um ano, a
fim de reduzir danos por efeitos colaterais do uso da medicação, e para viabilizar diagnósticos
precoces em relação a câncer e baixa densiometria ósseos", diz o texto do SUS, que recomenda acompanhamento pós-cirúrgico de pelo menos dois anos. Psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras e cirurgião são alguns dos profissionais que integram a equipe
multidisciplinar.
Cotado para assumir a chefia das cirurgias de redesignação
sexual do HC, o urologista Rogerson Tenório de Andrade integra, desde 2005, a
equipe de Sabino Pinho. Ele espera que a direção do HC finalize sua
transferência do Hospital Otávio de Freitas, que é estadual, para o HC gerido
pelo governo federal. Apesar de ainda não estar no cargo, o médico encaminhou à
direção do hospital projeto de criação de um Ambulatório de Sexualidade, no
qual as transexuais também seriam atendidas. Ciente das dificuldades das
pacientes que procuram o serviço, ele solicita a criação de um núcleo com
fonoaudiólogos, endocrinologista, psiquiatra. O professor adjunto de
ginecologia da UFPE José Carlos de Lima substituirá, na especialidade médica, o
cirurgião Sabino Pinho. "O
Conselho Federal de Medicina (CFM) exige vários especialistas para atender estes pacientes". Uma das transexuais que aguarda há dois anos a cirurgia e preferiu não se identificar disse que, em sua
última visita ao hospital
(dia 17) foi informada de que também não havia psiquiatra para atender novas
pacientes. Há cerca de um ano, o serviço não conta com atendimento
psiquiátrico. Os médicos Roberto Faustino e João Ricardo não foram
substituídos.
Urologista do Hospital Universitário Pedro Ernesto
(Hupe/RJ), um dos mais completos do serviço público nas cirurgias em
transexuais, Eloísio Alexsandro diz que atendimento com intenção de cirurgia de
transgenitalização, privado ou público, deve seguir recomendações da resolução
1.955/2010 do CFM. A prática no SUS segue a portaria 1.707/2008 do Ministério
da Saúde e está fundamentada na resolução do CFM. "Esta portaria determina que a equipe multidisciplinar tenha no
mínimo um cirurgião reconstrutor genital, um médico prescritor, psicólogo, psiquiatra e assistente
social". A equipe que
realiza cirurgias de transexualização
no HC, até o momento da
aposentadoria de Sabino Pinho, era formada por urologista, ginecologista e dois
residentes, de acordo com Rogerson Tenório
de Andrade. A psicóloga Inalda
Lafayette integra a equipe.
Outra diferença entre o Hupe e o HC está na orientação em
relação aos novos documentos. No centro de referência, assim que as transexuais
recebem os laudos de psicólogos e psiquiatras atestando sua condição
transexual, são encaminhadas à defensoria pública do Rio de Janeiro para
alterar pré-nome e gênero. Não precisam esperar os dois anos de tratamento
psicológico nem a cirurgia para iniciar a mudança de nome.
Especial mostra a dificuldade
A falta de acompanhamento mais eficiente e mesmo humano
entre as pacientes que tentam ou já se submeteram a cirurgia de redesignação no
HC foi um dos fios condutores da reportagem "O Nascimento de Joicy",
publicada pelo Jornal do Commercio em abril de 2011. A série, que durou três
dias, foi baseada na transexual Joicy Melo, 51 anos. Em cinco meses, foi
possível acompanhá-la a várias visitas ao serviço de ginecologia do hospital.
Detalhes em http://www2.uol.com.br/JC/especial/joicy
Disponível em http://www.ufpe.br/agencia/clipping/index.php?option=com_content&view=article&id=4655%3Ao-que-nao-deu-certo-para-elas&catid=34&Itemid=122.
Acesso em 09 fev2014.