Cassiana Perez, Janaina Quitério, Juliana Passos
10/11/2013
O excesso de preocupação com a própria imagem tornou-se um fator
moral de grande relevância. Quem afirma é o psicanalista e professor
livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
Christian Dunker, que, pegando emprestadas as palavras do historiador
norte-americano Christopher Lash, afirma que nos tornamos uma cultura do
narcisismo, em suas várias vertentes, ao vivenciar a espetacularização
generalizada (Guy Debord), a tirania da intimidade (Richard Sennet), a liquidez
das relações (Zygmunt Bauman) e a localização da verdade na sexualidade (Michel
Foucault): “Estar insatisfeito com a própria imagem é, em muitos sentidos,
querer ‘ser outro’, e isso é uma das formas mais contemporâneas de querer, ou
seja, de desejar”, explica.
A imagem pessoal, como um construto multidimensional formado
por aspectos fisiológicos, cognitivos e sociais, além de desejos e atitudes
emocionais em relação a si mesmo e aos outros, está sujeita a uma série de
interferências que, em situações extremas, pode acarretar em transtornos
complexos e de difícil tratamento. Em alguns casos, as distorções de autoimagem
podem até trazer benefícios em curto prazo, mas comumente são danosas aos
indivíduos e causam problemas de relacionamento e angústia extrema ao longo do
tempo.
As ilusões positivas estão fortemente presentes em pessoas
cuja percepção é supervalorizada em relação às suas habilidades e capacidades.
Ao cumprir tarefas rotineiras, creem se sair melhor do que atestariam medidas
objetivas de eficiência, com bem-estar pessoal momentâneo. Segundo evidenciou
um estudo de Richard Robins e Jennifer Beer, ambos da Universidade da
Califórnia, as ilusões positivas não raro aparecem relacionadas ao Transtorno
de Personalidade Narcisista (TPN), cuja principal característica é a
necessidade de admiração e de aprovação constante do indivíduo pelos que o
cercam. Em sua forma patológica, os narcisistas se voltam para si mesmos a fim
de compensar o complexo de inferioridade, comportando-se de maneira arrogante.
Contudo, é normal que as ilusões positivas desfaçam-se uma
vez que o indivíduo não seja capaz de alcançar metas às quais julgava ser
merecedor. A mudança da autopercepção, a partir desse ponto, pode ocasionar
desmotivação na sequência de um projeto, por exemplo, e expor a baixa
autoestima latente no TPN, causando profunda frustração. Dessa forma, em longo
prazo, essas pessoas evitam situações em que são testadas e podem tornarem-se
socialmente defensivas e inseguras em relação a si mesmas.
Embora os narcisistas patológicos sejam capazes de perceber
o que é importante para as pessoas ao seu redor, isso não lhes causa empatia,
pois estão completamente voltados para si e para a proteção de seu próprio ego.
Segundo o filósofo Luiz Felipe Pondé, o narcisista não é autossuficiente, porém
a única forma de relação que estabelece é aquela na qual os outros estão lá
para servi-lo.
As causas dessa distorção de autoimagem, que afeta
diretamente o convívio social, parecem ser, de acordo com estudo publicado na
revista Journal of Psychiatric Researchem junho deste ano, uma anomalia
estrutural no córtex cerebral, com redução da matéria cinzenta (importante
componente do sistema nervoso central), exatamente na área do cérebro
responsável por processar e gerar sentimentos de compaixão. O grupo de estudos
liderado por Stephan Röpke, da Universidade de Medicina de Berlim, busca agora
entender como o cérebro dos narcísicos trabalha, a fim de desenvolver um
tratamento efetivo para esse transtorno.
É importante ressaltar que, para o psicanalista da USP
Christian Dunker, o narcisismo se configura tanto como o momento de
constituição do eu, entre 18 e 36 meses de idade, quanto a um funcionamento
intersubjetivo mais permanente. “Como estrutura, podemos inferir algumas
dificuldades de alguém para quem o narcisismo não se instalou a contento. Seria
alguém que não consegue se reconhecer muito bem nas emoções, nas palavras e nos
desejos de outros.” Portanto, para ele, até certo ponto, o narcisismo é uma
estrutura fundamental e benéfica para sustentar o funcionamento social do
indivíduo.
Diferentemente do Transtorno de Personalidade Narcisista e
das ilusões positivas associadas, o Transtorno de Identidade de Gênero (TIG),
ou transexualidade, pode ser de difícil tratamento e causa de sofrimento e
angústia ao longo da vida. O TIG é caracterizado pela não identificação com o
gênero biológico, com consequente sentimento de inadequação ao papel social que
se espera. Para os transexuais, o corpo não corresponde à forma como pensam, e
a adequação pode ser realizada de diversas maneiras, desde tratamentos
psicológicos ou hormonais à cirurgia de redesignação de gênero.
O TIG não tem relação com a orientação sexual, porém o
estigma da perversão cerca os transexuais e dificulta ainda mais o convívio
social e bem-estar psicológico. Em entrevista à jornalista Marília Gabriela, a
modelo transexual brasileira Lea T. afirmou crer que nunca será realmente uma
mulher, ainda que se sinta assim. Para ela, os transexuais são vistos como “o
lixo da sociedade” e não têm lugar garantido mesmo após a realização da
cirurgia de redesignação de gênero. O desconforto de estar preso a um corpo
biologicamente inadequado é comparado pela modelo àquele causado ao calçar os
sapatos nos pés trocados, com a diferença de que os transexuais permanecem
nessa situação por toda a vida.
A definição do TIG como um distúrbio de autopercepção, no
entanto, não é consensual entre os profissionais da área de saúde mental e, em
2012, a transexualidade deixou de ser considerada patologia pelo Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic e Statistic Manual
of Mental Disorders), da American Psychiatric Association, e passou a ser visto
como questão de identidade. Seguindo essa linha de interpretação, muitos
psicólogos defendem que a autorrealização do transexual deva ser a aceitação
plena de quem ele é, de corpo e mente, e somente após a consolidação da
identidade seria possível optar ou não pela realização da cirurgia de
transgenitalização. No Brasil, no entanto, o TIG é considerado patologia, o que
garante aos pacientes acesso a tratamentos hormonais, psicoterápicos e à
cirurgia.
Em busca do corpo perfeito
“A imensa valorização que a aparência recebe em nossa
sociedade, e por expressar valores construídos socialmente e compartilhados, é
capaz de afetar globalmente a maneira como aprendemos a lidar com nosso corpo.
A cultura dá os subsídios constituintes de nossa subjetividade e direciona os
processos de socialização e simbolização do corpo”, analisa a socióloga e
professora da Universidade Federal do Paraná Rubia Giordani.
A necessidade de mudanças no próprio corpo com a finalidade
de alterar a imagem corporal está presente, por exemplo, na Dismorfofobia, ou
Transtorno Dismórfico Corporal (TDC). Esse distúrbio psicológico é
caracterizado pela preocupação obsessiva com um defeito físico inexistente ou mínimo
que o paciente percebe a despeito de sua aparência. O período da primeira
manifestação do TDC é, em geral, o início da adolescência, época de mais
atenção à aparência física devido às mudanças corporais e psicológicas típicas
da fase.
Analisando o TDC sob a perspectiva comportamental, as
psicólogas Josy Moriyama e Vera Lúcia do Amaral, da PUC-Campinas, constataram
que o comportamento de fuga ou esquiva dos pacientes em relação aos eventos,
ocasiões e contextos em que suas preocupações e sentimentos aversivos sobre a
aparência poderiam ocorrer é um traço comum. E, ao se esquivarem de situações
potencialmente desagradáveis, reforçam o comportamento, prejudicando sua vida
social de forma que resulte em isolamento e depressão. As autoras notaram ainda
traços comuns nas histórias de vida dos pacientes, com grande incidência de
práticas educativas coercitivas, baixa habilidade social, grande valorização da
aparência por pessoas com as quais conviveram durante a infância e eventos
desagradáveis relacionados à parte do corpo com que se preocupavam.
Os indivíduos com TDC dificilmente procuram auxílio
psicológico, sendo mais comum a busca por consultórios de medicina estética,
uma vez que acreditam que seus problemas advêm diretamente do defeito físico. A
realização de procedimentos estéticos, no entanto, ao contrário de aliviar os
sintomas do TDC e melhorar a qualidade de vida, causa mais transtornos, já que,
em geral, promete resultados tão irreais quanto o defeito imaginado. Manchas na
pele, formato do nariz, tamanho do bumbum e cicatrizes estão entre os motivos
que levam a desenvolver o transtorno. As pesquisadoras também mostraram que a
TDC não está ligada ao critério de renda e de escolaridade.
A anorexia é a terceira doença crônica psiquiátrica mais
comum em meninas adolescentes e com um índice de mortalidade de 5,6%, de acordo
com dados da Associação de Psiquiatria Americana (APA). A distorção da imagem
corporal e a compulsão pela magreza são associadas a inúmeras explicações,
desde a influência dos meios de comunicação, baixa autoestima, ansiedade e
também a fatores genéticos, embora desencadeados por fatores externos.
Tratar o distúrbio alimentar como modo de vida foi observado
pela doutora em psicologia Andreia Giacomozzi em artigo publicado na revista
Psicologia, Saúde e Doenças, em 2012, ao analisar o comportamento das jovens em
comunidades do Orkut. “Pelo que observei, as participantes das comunidades não
reconhecem anorexia e bulimia como doenças, mas como estilo de vida para
atingir a perfeição, que, para elas, significa ter sucesso pessoal e
felicidade. O problema é que, em alguns casos, elas não conseguem parar de
fazer as dietas e se tornam 'escravas' desse estilo de vida”.
Bárbara tem 18 anos e diz que não se lembra de quando
começou a "miar" (provocar vômitos). "Acho que com sete ou oito
anos de idade". Para a capixaba, a busca pela magreza ou
"perfeição" não é uma doença, e sim uma opção de vida. Ela chegou a
ser internada no começo do ano, quando contou à mãe sobre a situação. A
adolescente já fez terapia por dois meses, mas diz que prefere usar apenas seu
blog para desabafar com outras garotas que também consideram Ana e Mia (como
chamam anorexia e bulimia) como um modo de viver.
No diário virtual, ela relata
períodos com quantidades mínimas de comida ou jejum absoluto – identificados
pelos termos no food (NF) e low food (LF). Bárbara faz ginástica rítmica todos
os dias e já desmaiou duas vezes durante um treino. Na segunda, foi
hospitalizada. Em seu blog, uma imagem com a tabela de "peso ideal"
indica que, para sua estatura de 1,65 metro, ela deveria pesar 40 quilos. Nesse
cálculo, o Índice de Massa Corpórea (IMC) fica em 14, enquanto o mínimo ideal é
18,5.
“Nesse imaginário patológico, o desafio é resistir à fome e
seguir emagrecendo. É insustentável biológica e emocionalmente, e a “queda” é
inevitável. Dificilmente se contentam, e há uma tendência de as metas de perda
de peso se tornarem cada vez mais difíceis. Quando esses processos severos se
perpetuam, levam inexoravelmente à desnutrição e às alterações bioquímicas
sérias no organismo”, comenta a pesquisadora Rubia Giordani. O peso
insuficiente (85% do nível normal ou inferior) provoca interrupção do ciclo
menstrual, pode levar à infertilidade, queda de cabelo e da temperatura do
corpo – a pessoa sente muito frio –, anemia e arritmias cardíacas.
A profissional de educação física Renata, de 27 anos, refuta
a ideia de opção de vida: “Não falo Ana/Mia porque são doenças, e não
amiguinhas para as quais dou apelidinhos. Acho ridículo nomear doenças tão
sérias com nomes carinhosos”, diz. Mesmo reconhecendo como doença, ela luta
diariamente para fazer todas as refeições e não consegue acreditar, como seus
pais e amigos dizem, que está magra. “Vejo gorduras e tudo sobrando, coisas que
adoraria mudar”. Após três anos de tratamento, Renata recebeu alta, mas continua
em acompanhamento por seu caso ser crônico. Ela também mudou a área de atuação
profissional por conta do transtorno alimentar. Ter um corpo perfeito não é a
única cobrança que ela faz de si mesma: “Eu gostaria de ser perfeita, em tudo.
Sempre acho que poderia fazer melhor, então sou extremamente rigorosa comigo em
todos os aspectos”, conta.
É importante ressaltar que o público masculino também tem
preocupações relativas à corporeidade, o que influencia na forma como se
alimentam, na prática de exercícios físicos e mesmo na adesão de dietas
radicais, como observou a psicóloga e mestre em ciências pela USP de Ribeirão
Preto Thais Fonseca de Andrade, cuja dissertação foi baseada em homens com
transtornos alimentares. Ela faz uma alerta: “É fundamental o papel dos
profissionais de saúde, de professores e, ainda, da mídia no sentido de
orientar a sociedade e encorajar adolescentes, jovens e adultos do sexo
masculino a conversarem sobre suas preocupações acerca da imagem corporal e do
peso. É importante sempre assegurar que tais questões são comuns em ambos os
sexos, já que os homens tendem a não falar abertamente, como as mulheres, sobre
conflitos corporais e emocionais”, aponta.
Para ela, o tratamento deve ser realizado por uma equipe
interdisciplinar, uma vez que o transtorno alimentar é uma doença que abrange o
corpo e a mente. “A psicoterapia psicanalítica, por meio do vínculo entre
terapeuta e paciente, é um espaço de confiança e criatividade, no qual as
emoções primitivas e muitas vezes obscuras do paciente podem ser sentidas,
expressas e pensadas”, conclui.
Disponível em
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=93&id=1151.
Acesso em 13 nov 2013.