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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Promíscuos por decreto

Debora Diniz
06 de abril de 2014

No dia 26 de março, o estudante Leonardo Uller foi impedido de doar sangue no Hospital 9 de Julho, sob a justificativa de ser gay. Ele insistiu, dizendo que não apresentava comportamento de risco, e conseguiu fazer a doação. O hospital pediu desculpas, mas descartou o sangue.

Gays são promíscuos e têm sangue ruim. Pessoas assim não doam sangue. Leonardo Uller sentiu-se ultrajado com o diagnóstico da médica que o atendia em um centro de doação de sangue. "Você está insinuando que eu sou promíscuo?", desafiou o rapaz. A pergunta era um espanto irônico ao critério nada científico adotado pela médica para rejeitar seu sangue: "Você não vai querer sangue ruim no seu corpo. Não vai querer sangue de gente promíscua", respondeu a médica. Leonardo é um representante do bando promíscuo, aqueles homens de sangue ruim, descritos de uma maneira inventiva pelas resoluções e pelos documentos da Anvisa e do Ministério da Saúde sobre a doação de sangue: são "homens que fazem sexo com homens". Há até uma sigla para eles, os HSHs.

Os HSHs habitam nosso planeta, são da espécie Homo sapiens, têm família, alguns estudam, outros trabalham. Estão por todos os cantos - alguns gostam de frequentar locais típicos para HSHs, outros nem se anunciam como membros do bando. Muitos têm filhos e rezam aos domingos. Leonardo estuda jornalismo e é um tipo altruísta. Costuma doar sangue. Nunca teve que descrever seu relacionamento estável com outro homem como um caso de HSH até ter tentado doar sangue no Hospital 9 de Julho, em São Paulo. Foi lá que aprendeu que os HSHs não podem doar sangue. Não adianta um HSH insistir. Leonardo soube que seu sangue foi do corpo direto para o lixo. É isso que se faz com o sangue ruim de gente promíscua como são os HSHs! É, preciso ser honesta, não sei bem se foi exatamente com esses modos que a médica se expressou - não há testemunhas, mas eu me permito assim resumir a ousadia altruística de Leonardo.

Se "sangue ruim" foi um resquício medieval de quem acredita em sangue azul, a verdade é que os HSHs são, sim, descritos como "inaptos temporários" à doação de sangue. Para a política do sangue, um HSH é um ser temporário, mas com prazo de validade: 12 meses desde a última relação sexual com outro homem. Mas o que há no sexo dos HSHs para torná-los ruins ou inaptos? A Portaria 2.712, de 2013, da Anvisa é o documento que regulamenta a política de sangue no Brasil - 83 páginas de regras, normas, determinações e classificações. 

A primeira definição que interessa é saber o que seria uma relação sexual para a política do sangue (a classificação vale para todos os representantes da espécie Homo sapiens) - "sexo anal: contato entre pênis e ânus; sexo oral: contato entre boca ou língua com vagina, pênis ou ânus de outro/outra; sexo vaginal: contato entre pênis e vagina". Sei que há uma tendência, na política baseada em evidências, de recuperar fontes bibliográficas recentes de periódicos científicos de língua inglesa, o que deve ter facilitado o esquecimento dos ensinamentos milenares do Kama Sutra sobre os usos da anatomia humana.

Mesmo sem Vatsyayana nas referências bibliográficas, aprendemos como os Homo sapiens se relacionam sexualmente. A dúvida é como os HSHs se diferenciam dos indivíduos sem sigla para serem classificados como tipos de sangue ruim. Homens e mulheres são dados de realidade para o documento, outro sinal da pouca inventividade. Como ficam os transexuais? Mas vamos lá: uma mulher, esse ser portador de vagina, pode fazer sexo anal, oral ou vaginal. Ela pode ou não ter usado camisinha nessas poucas opções anatômicas. Ela descreve seu parceiro fixo como um marido para o questionário do centro de doação de sangue. O marido até pode ser um HSH, mas ela não sabe disso.

Ou pode ser só um desses homens sem sigla, com múltiplas parceiras, mas ela também não sabe. Porém, como a pergunta não é sobre como ela se protege nas relações sexuais com o marido, e sim sobre com quem ela se relaciona sexualmente, ou melhor, com que partes da anatomia ela se relaciona sexualmente, essa mulher é uma de nossas doadoras consideradas aptas pela política do sangue. Ela rapidamente escapa ao questionário inquisitorial sobre os orifícios dos homens, pois é alguém dentro da norma das práticas sexuais não promíscuas.

Leonardo é um homem gay. Vive em um relacionamento estável há 12 meses. A pergunta que importa para as políticas de saúde é como ele se protege de doenças sexualmente transmissíveis antes de considerá-lo um homem apto à doação de sangue. A pergunta sobre proteções e cuidados sexuais deve ser feita a todas as pessoas que se apresentem como doadoras - suas posições, frequências e preferências sexuais serão monitoradas pela metodologia da janela imunológica que exige espera antes de transferir o sangue de um doador para um receptor. O inquietante é saber por que uma pergunta tão simples e óbvia para a prática científica é substituída por rodeios de linguagem. Porque a homofobia teme anunciar-se nos seus próprios termos, por isso traveste-se de cuidados de saúde pública. Não há risco inerente ao sangue de homens gays.

Mas há risco permanente na homofobia, que rejeita os corpos fora da norma sexual. Leonardo foi humilhado pelo sangue que oferecia como uma dádiva. Seu sangue salvador foi reduzido a lixo por ele ser um HSH.  


Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,promiscuos-por-decreto,1150003,0.htm. Acesso em 07 abr 2014.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Homens gays não podem doar sangue

Consultor Jurídico
21 de abril de 2012

Uma norma nacional considera inapto à doação qualquer homem que tenha se relacionado sexualmente com outro homem no período de 12 meses. O mesmo vale para heterossexuais que, no mesmo período, se relacionaram sexualmente com várias parceiras.

No entanto, em junho de 2011, o Ministério da Saúde baixou uma portaria que proíbe os hemocentros de usar a orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) como critério para seleção de doadores de sangue. “Não deverá haver, no processo de triagem e coleta de sangue, manifestação de preconceito e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, raça, cor e etnia”. Mas, na prática, os homossexuais masculinos ativos sexualmente seguem impedidos de doar sangue. Para as lésbicas, não há restrições.

O coordenador de Sangue e Hemoderivados do ministério, Guilherme Genovez, alega que a norma brasileira é avançada quando comparada à legislação de outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, um homem que tenha tido, no mínimo, uma relação sexual com outro homem fica proibido de doar sangue pelo resto da vida. “Acima de tudo, está o direito de um paciente receber sangue seguro”, alega o coordenador, lembrando que os testes não identificam imediatamente a presença de vírus em uma bolsa de sangue.

Desde o ano passado, o governo federal está implantando o NAT, sigla em inglês para teste de ácido nucleico, para tornar mais segura a análise do sangue colhido pelos hemocentros. O exame reduz a chamada janela imunológica, que é o período de tempo entre a contaminação e a detecção da doença por testes laboratoriais. Com o NAT, o intervalo de detecção do vírus HIV cai de 21 para dez dias. Até agora, 59% do sangue doado no país passam pelo NAT. A previsão é que a tecnologia chegue a todos os hemocentros até julho.

Motivado por uma campanha da empresa onde trabalha, em Belo Horizonte, o produtor cultural Danilo França, de 24 anos, decidiu doar sangue pela primeira vez. Junto com um grupo de colegas, seguiu as etapas previstas: preencheu a ficha de inscrição e foi para a entrevista com o médico do hemocentro. No momento da conversa, França descobriu que não poderia doar sangue porque mantém um relacionamento homossexual. “Fiquei atordoado, sem graça. Fiquei chateado e me senti discriminado”, disse França.

Entidades de defesa dos direitos dos homossexuais reclamam da restrição e querem reacender o debate sobre o tema. “A cada fato novo, a gente tem que abrir a discussão. Se a pessoa usa preservativo e não tem comportamento de risco, não pode ser impedida de doar”, argumenta Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).

A regra do Ministério da Saúde, que vigora há mais de sete anos e vale para todos os hemocentros, foi baseada em estudos internacionais que apontam que o risco de contágio pelo vírus da aids (HIV) é 18 vezes maior nas relações entre homossexuais masculinos, na comparação com relações entre pessoas heterossexuais. O motivo é a prática do sexo anal, que aumenta o risco de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis (DST). Foi essa determinação que fez com que a Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais (Hemominas) negasse ao produtor cultural a possibilidade de doar sangue. Com informações da Agência Brasil.


Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-abr-21/homens-gays-nao-podem-doar-sangue-apesar-proibida-discriminacao. Acesso em 04 jun 2013.