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sábado, 6 de dezembro de 2014

Reflexões acerca do transtorno de identidade de gênero frente aos serviços de saúde: revisão bibliográfica

Fernanda Resende Maksoud; Xisto Sena Passos; Renata Fabiana Pegoraro
Revista Psicologia e Saúde, v. 6, n. 2, jul. /dez. 2014, p. 47-55


Resumo: O objeto do estudo é o transtorno de identidade de gênero relacionado ao diagnóstico, aos serviços de saúde, abordando também a visão dos profissionais de saúde. Trata-se de uma pesquisa descritivo-exploratória, com abordagem qualitativa através da revisão bibliográfica de artigos nacionais identificados por meio de buscas efetuadas nas bases LILACS e Scielo. Os estudos sobre transexualidade referidos aos serviços de saúde e profissionais sugerem que o assunto ainda é alvo de muito preconceito e que já existem serviços de saúde especializados a fim de diagnosticar e tratar esses pacientes. A análise dos estudos permite concluir que a transexualidade ainda é tratada com desconhecimento por alguns profissionais de saúde, uma vez que os transexuais devem ser acolhidos e tratados com respeito e valorização de sua diversidade.



sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Equívocos de autoimagem, transtornos e qualidade de vida

Cassiana Perez, Janaina Quitério, Juliana Passos
10/11/2013

O excesso de preocupação com a própria imagem tornou-se um fator moral de grande relevância. Quem afirma é o psicanalista e professor livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, que, pegando emprestadas as palavras do historiador norte-americano Christopher Lash, afirma que nos tornamos uma cultura do narcisismo, em suas várias vertentes, ao vivenciar a espetacularização generalizada (Guy Debord), a tirania da intimidade (Richard Sennet), a liquidez das relações (Zygmunt Bauman) e a localização da verdade na sexualidade (Michel Foucault): “Estar insatisfeito com a própria imagem é, em muitos sentidos, querer ‘ser outro’, e isso é uma das formas mais contemporâneas de querer, ou seja, de desejar”, explica.

A imagem pessoal, como um construto multidimensional formado por aspectos fisiológicos, cognitivos e sociais, além de desejos e atitudes emocionais em relação a si mesmo e aos outros, está sujeita a uma série de interferências que, em situações extremas, pode acarretar em transtornos complexos e de difícil tratamento. Em alguns casos, as distorções de autoimagem podem até trazer benefícios em curto prazo, mas comumente são danosas aos indivíduos e causam problemas de relacionamento e angústia extrema ao longo do tempo.

As ilusões positivas estão fortemente presentes em pessoas cuja percepção é supervalorizada em relação às suas habilidades e capacidades. Ao cumprir tarefas rotineiras, creem se sair melhor do que atestariam medidas objetivas de eficiência, com bem-estar pessoal momentâneo. Segundo evidenciou um estudo de Richard Robins e Jennifer Beer, ambos da Universidade da Califórnia, as ilusões positivas não raro aparecem relacionadas ao Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), cuja principal característica é a necessidade de admiração e de aprovação constante do indivíduo pelos que o cercam. Em sua forma patológica, os narcisistas se voltam para si mesmos a fim de compensar o complexo de inferioridade, comportando-se de maneira arrogante.

Contudo, é normal que as ilusões positivas desfaçam-se uma vez que o indivíduo não seja capaz de alcançar metas às quais julgava ser merecedor. A mudança da autopercepção, a partir desse ponto, pode ocasionar desmotivação na sequência de um projeto, por exemplo, e expor a baixa autoestima latente no TPN, causando profunda frustração. Dessa forma, em longo prazo, essas pessoas evitam situações em que são testadas e podem tornarem-se socialmente defensivas e inseguras em relação a si mesmas.

Embora os narcisistas patológicos sejam capazes de perceber o que é importante para as pessoas ao seu redor, isso não lhes causa empatia, pois estão completamente voltados para si e para a proteção de seu próprio ego. Segundo o filósofo Luiz Felipe Pondé, o narcisista não é autossuficiente, porém a única forma de relação que estabelece é aquela na qual os outros estão lá para servi-lo.

As causas dessa distorção de autoimagem, que afeta diretamente o convívio social, parecem ser, de acordo com estudo publicado na revista Journal of Psychiatric Researchem junho deste ano, uma anomalia estrutural no córtex cerebral, com redução da matéria cinzenta (importante componente do sistema nervoso central), exatamente na área do cérebro responsável por processar e gerar sentimentos de compaixão. O grupo de estudos liderado por Stephan Röpke, da Universidade de Medicina de Berlim, busca agora entender como o cérebro dos narcísicos trabalha, a fim de desenvolver um tratamento efetivo para esse transtorno.

É importante ressaltar que, para o psicanalista da USP Christian Dunker, o narcisismo se configura tanto como o momento de constituição do eu, entre 18 e 36 meses de idade, quanto a um funcionamento intersubjetivo mais permanente. “Como estrutura, podemos inferir algumas dificuldades de alguém para quem o narcisismo não se instalou a contento. Seria alguém que não consegue se reconhecer muito bem nas emoções, nas palavras e nos desejos de outros.” Portanto, para ele, até certo ponto, o narcisismo é uma estrutura fundamental e benéfica para sustentar o funcionamento social do indivíduo.

Diferentemente do Transtorno de Personalidade Narcisista e das ilusões positivas associadas, o Transtorno de Identidade de Gênero (TIG), ou transexualidade, pode ser de difícil tratamento e causa de sofrimento e angústia ao longo da vida. O TIG é caracterizado pela não identificação com o gênero biológico, com consequente sentimento de inadequação ao papel social que se espera. Para os transexuais, o corpo não corresponde à forma como pensam, e a adequação pode ser realizada de diversas maneiras, desde tratamentos psicológicos ou hormonais à cirurgia de redesignação de gênero.

O TIG não tem relação com a orientação sexual, porém o estigma da perversão cerca os transexuais e dificulta ainda mais o convívio social e bem-estar psicológico. Em entrevista à jornalista Marília Gabriela, a modelo transexual brasileira Lea T. afirmou crer que nunca será realmente uma mulher, ainda que se sinta assim. Para ela, os transexuais são vistos como “o lixo da sociedade” e não têm lugar garantido mesmo após a realização da cirurgia de redesignação de gênero. O desconforto de estar preso a um corpo biologicamente inadequado é comparado pela modelo àquele causado ao calçar os sapatos nos pés trocados, com a diferença de que os transexuais permanecem nessa situação por toda a vida.

A definição do TIG como um distúrbio de autopercepção, no entanto, não é consensual entre os profissionais da área de saúde mental e, em 2012, a transexualidade deixou de ser considerada patologia pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic e Statistic Manual of Mental Disorders), da American Psychiatric Association, e passou a ser visto como questão de identidade. Seguindo essa linha de interpretação, muitos psicólogos defendem que a autorrealização do transexual deva ser a aceitação plena de quem ele é, de corpo e mente, e somente após a consolidação da identidade seria possível optar ou não pela realização da cirurgia de transgenitalização. No Brasil, no entanto, o TIG é considerado patologia, o que garante aos pacientes acesso a tratamentos hormonais, psicoterápicos e à cirurgia.

Em busca do corpo perfeito

“A imensa valorização que a aparência recebe em nossa sociedade, e por expressar valores construídos socialmente e compartilhados, é capaz de afetar globalmente a maneira como aprendemos a lidar com nosso corpo. A cultura dá os subsídios constituintes de nossa subjetividade e direciona os processos de socialização e simbolização do corpo”, analisa a socióloga e professora da Universidade Federal do Paraná Rubia Giordani.

A necessidade de mudanças no próprio corpo com a finalidade de alterar a imagem corporal está presente, por exemplo, na Dismorfofobia, ou Transtorno Dismórfico Corporal (TDC). Esse distúrbio psicológico é caracterizado pela preocupação obsessiva com um defeito físico inexistente ou mínimo que o paciente percebe a despeito de sua aparência. O período da primeira manifestação do TDC é, em geral, o início da adolescência, época de mais atenção à aparência física devido às mudanças corporais e psicológicas típicas da fase.

Analisando o TDC sob a perspectiva comportamental, as psicólogas Josy Moriyama e Vera Lúcia do Amaral, da PUC-Campinas, constataram que o comportamento de fuga ou esquiva dos pacientes em relação aos eventos, ocasiões e contextos em que suas preocupações e sentimentos aversivos sobre a aparência poderiam ocorrer é um traço comum. E, ao se esquivarem de situações potencialmente desagradáveis, reforçam o comportamento, prejudicando sua vida social de forma que resulte em isolamento e depressão. As autoras notaram ainda traços comuns nas histórias de vida dos pacientes, com grande incidência de práticas educativas coercitivas, baixa habilidade social, grande valorização da aparência por pessoas com as quais conviveram durante a infância e eventos desagradáveis relacionados à parte do corpo com que se preocupavam.

Os indivíduos com TDC dificilmente procuram auxílio psicológico, sendo mais comum a busca por consultórios de medicina estética, uma vez que acreditam que seus problemas advêm diretamente do defeito físico. A realização de procedimentos estéticos, no entanto, ao contrário de aliviar os sintomas do TDC e melhorar a qualidade de vida, causa mais transtornos, já que, em geral, promete resultados tão irreais quanto o defeito imaginado. Manchas na pele, formato do nariz, tamanho do bumbum e cicatrizes estão entre os motivos que levam a desenvolver o transtorno. As pesquisadoras também mostraram que a TDC não está ligada ao critério de renda e de escolaridade.

A anorexia é a terceira doença crônica psiquiátrica mais comum em meninas adolescentes e com um índice de mortalidade de 5,6%, de acordo com dados da Associação de Psiquiatria Americana (APA). A distorção da imagem corporal e a compulsão pela magreza são associadas a inúmeras explicações, desde a influência dos meios de comunicação, baixa autoestima, ansiedade e também a fatores genéticos, embora desencadeados por fatores externos.

Tratar o distúrbio alimentar como modo de vida foi observado pela doutora em psicologia Andreia Giacomozzi em artigo publicado na revista Psicologia, Saúde e Doenças, em 2012, ao analisar o comportamento das jovens em comunidades do Orkut. “Pelo que observei, as participantes das comunidades não reconhecem anorexia e bulimia como doenças, mas como estilo de vida para atingir a perfeição, que, para elas, significa ter sucesso pessoal e felicidade. O problema é que, em alguns casos, elas não conseguem parar de fazer as dietas e se tornam 'escravas' desse estilo de vida”.

Bárbara tem 18 anos e diz que não se lembra de quando começou a "miar" (provocar vômitos). "Acho que com sete ou oito anos de idade". Para a capixaba, a busca pela magreza ou "perfeição" não é uma doença, e sim uma opção de vida. Ela chegou a ser internada no começo do ano, quando contou à mãe sobre a situação. A adolescente já fez terapia por dois meses, mas diz que prefere usar apenas seu blog para desabafar com outras garotas que também consideram Ana e Mia (como chamam anorexia e bulimia) como um modo de viver. 

No diário virtual, ela relata períodos com quantidades mínimas de comida ou jejum absoluto – identificados pelos termos no food (NF) e low food (LF). Bárbara faz ginástica rítmica todos os dias e já desmaiou duas vezes durante um treino. Na segunda, foi hospitalizada. Em seu blog, uma imagem com a tabela de "peso ideal" indica que, para sua estatura de 1,65 metro, ela deveria pesar 40 quilos. Nesse cálculo, o Índice de Massa Corpórea (IMC) fica em 14, enquanto o mínimo ideal é 18,5.

“Nesse imaginário patológico, o desafio é resistir à fome e seguir emagrecendo. É insustentável biológica e emocionalmente, e a “queda” é inevitável. Dificilmente se contentam, e há uma tendência de as metas de perda de peso se tornarem cada vez mais difíceis. Quando esses processos severos se perpetuam, levam inexoravelmente à desnutrição e às alterações bioquímicas sérias no organismo”, comenta a pesquisadora Rubia Giordani. O peso insuficiente (85% do nível normal ou inferior) provoca interrupção do ciclo menstrual, pode levar à infertilidade, queda de cabelo e da temperatura do corpo – a pessoa sente muito frio –, anemia e arritmias cardíacas.

A profissional de educação física Renata, de 27 anos, refuta a ideia de opção de vida: “Não falo Ana/Mia porque são doenças, e não amiguinhas para as quais dou apelidinhos. Acho ridículo nomear doenças tão sérias com nomes carinhosos”, diz. Mesmo reconhecendo como doença, ela luta diariamente para fazer todas as refeições e não consegue acreditar, como seus pais e amigos dizem, que está magra. “Vejo gorduras e tudo sobrando, coisas que adoraria mudar”. Após três anos de tratamento, Renata recebeu alta, mas continua em acompanhamento por seu caso ser crônico. Ela também mudou a área de atuação profissional por conta do transtorno alimentar. Ter um corpo perfeito não é a única cobrança que ela faz de si mesma: “Eu gostaria de ser perfeita, em tudo. Sempre acho que poderia fazer melhor, então sou extremamente rigorosa comigo em todos os aspectos”, conta.

É importante ressaltar que o público masculino também tem preocupações relativas à corporeidade, o que influencia na forma como se alimentam, na prática de exercícios físicos e mesmo na adesão de dietas radicais, como observou a psicóloga e mestre em ciências pela USP de Ribeirão Preto Thais Fonseca de Andrade, cuja dissertação foi baseada em homens com transtornos alimentares. Ela faz uma alerta: “É fundamental o papel dos profissionais de saúde, de professores e, ainda, da mídia no sentido de orientar a sociedade e encorajar adolescentes, jovens e adultos do sexo masculino a conversarem sobre suas preocupações acerca da imagem corporal e do peso. É importante sempre assegurar que tais questões são comuns em ambos os sexos, já que os homens tendem a não falar abertamente, como as mulheres, sobre conflitos corporais e emocionais”, aponta.

Para ela, o tratamento deve ser realizado por uma equipe interdisciplinar, uma vez que o transtorno alimentar é uma doença que abrange o corpo e a mente. “A psicoterapia psicanalítica, por meio do vínculo entre terapeuta e paciente, é um espaço de confiança e criatividade, no qual as emoções primitivas e muitas vezes obscuras do paciente podem ser sentidas, expressas e pensadas”, conclui.


Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=93&id=1151. Acesso em 13 nov 2013.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Relações homoafetivas: avanços e resistências

Maria Consuêlo Passos
junho de 2011

Há algumas semanas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou a lei que regulamenta a união estável entre pessoas do mesmo sexo, tornando-a, do ponto de vista legal, equivalente à de casais heterossexuais. Isto significa a validação no plano jurídico de várias conquistas civis: o direito à herança do companheiro, ou companheira, pensão alimentícia em caso de separação, possibilidade de fazer declaração conjunta do imposto de renda e – um passo fundamental – o direito à adoção de filhos, o que antes era permitido apenas a um dos membros do casal.

A medida modifica o contexto nebuloso e enigmático das relações homoafetivas, conferindo a elas caráter de legitimação jurídica, o que não é pouco quando se trata da vida conjugal e familiar, em grande medida regulada por diretrizes do Estado. Entretanto, é preciso ter cautela em relação a esses ganhos, já que as transformações psicossociais engendradas nestes mesmos parâmetros jurídicos exigem um processo lento e contínuo de superação de resistências e preconceitos. Essa constatação nos leva a antever um longo e difícil tempo de tensões e conflitos até que seja possível o reconhecimento social de qualquer tipo de escolha amorosa e de constituição de família – desde que essa escolha não negue a responsabilidade ética de respeitar o direito do outro, um código fundamental da convivência humana.

Não é possível ignorar, por exemplo, as dificuldades enfrentadas há várias décadas, quando os casais heterossexuais conquistaram o direito de se separar e constituir novas famílias. Nessa época – assim como agora em relação aos direitos recém-conquistados pelos homossexuais – havia não só muitos preconceitos que fragilizavam moralmente aqueles que de forma legítima buscavam saídas para os casamentos infelizes, mas também muitos estigmas -  recaíam sobre os filhos, vistos como problemáticos. Não raro, eram dirigidos a essas crianças e adolescentes presságios de adoecimentos morais e psíquicos. Passados vários anos, estamos hoje muito longe da confirmação de tais vaticínios, embora seja possível reconhecer que a separação dos pais pode resultar em maior ou menor sofrimento para os filhos, dependendo da maneira como os desenlaces conjugais são vividos e resolvidos.

Face à legalização da união estável entre casais homossexuais, uma pergunta não para de reverberar: o que este ganho jurídico pode mudar, do ponto de vista psicossocial, na vida dos casais e famílias até então envoltos em estigmas, violências e proibições morais de exercer seus legítimos direitos de constituir relações amorosas e viver com as pessoas que escolheram para reinventar a vida?

Em meio à vibração dos militantes pelos direitos das minorias e mesmo dos simpatizantes da igualdade dos direitos civis entre cidadãos, observamos certa exacerbação das resistências à aprovação da lei. No Congresso Nacional, poucos dias depois, alguns deputados se insurgiram contra a emenda que criminaliza a homofobia no país, tumultuando o debate e inviabilizando a votação da proposta. Essa reação certamente tem muitos adeptos. Volta e meia vemos grupos que praticam atrocidades contra homossexuais, como as - registradas por câmeras na avenida Paulista, em São Paulo. No país inteiro encontramos verdadeiras cruzadas - homofóbicas que tentam exterminar aquele cujo “crime” é praticar o exercício da sexualidade nem sempre aceita socialmente.

Diante dessas constatações podemos indagar: por que o desejo do outro nos ameaça tanto? Há mais de um século a psicanálise revelou que nossos grandes temores não vêm do outro, daquele que é diferente de nós (embora muitas vezes pareça que sim), mas daquilo que desconhecemos em nós mesmos, e, exatamente por isso, repudiamos aquele que é diferente, depositamos nele algo de “maldito”, algo de que tentamos nos libertar. Se levarmos em conta essa inflexão, precisamos encarar a homofobia como uma impossibilidade de aceitação do que há em nós, como a rejeição de uma parte negada e temida de nós mesmos.

Ao mesmo tempo é possível pensar que os homossexuais ameaçam os heterossexuais também pela forma como buscam ser felizes em suas relações, enfrentando as adversidades e tentando encontrar nelas saídas para os conflitos e rejeições a que são expostos. Isso parece conferir certa autonomia associada à vida dos casais homoafetivos. Sem querer romantizar experiências, a liberdade de seguir um caminho (pelo menos aparentemente) alternativo, expressa por gays e lésbicas, é muitas vezes ameaçadora. E tais temores são de difícil erradicação, pois mostram o que há de enigmático em nós mesmos. Embora várias frentes revelem mudanças importantes na forma de viver o afeto e o erotismo, ainda prevalece o tabu que, em grande parte das sociedades, envolve o exercício da sexualidade.

À medida que surge maior abertura nos contornos sociais, verificamos uma visão mais libertária do novo e, em consequência, -possibilidades mais amplas de conviver com o diferente – tanto em nós quanto no outro. Exemplo disso é o sistema patriarcal que por muitos anos nos impôs a autoridade exclusiva do pai e a verticalização das relações no interior da família. Hoje, perdido o poder hegemônico, vemos as relações afetivas se tornar cada vez mais horizontais, e a autoridade se diversifica revelando diferentes (e ricas) facetas.

É preciso considerar também que transformações de valores culturais e mentalidades se dão lentamente: dependem, sobretudo, dos processos de socialização, em particular os primários, vividos nas relações com nossos pais, responsáveis pelas primeiras transmissões mediadas pelos afetos. Dito de outro modo, os valores chegam até nós no momento em que somos totalmente dependentes afetivamente daqueles que nos apresentam esses princípios e, portanto, estamos nessa fase incapazes de contestá-los. Se, por um lado, essas condições facilitam a internalização de valores, por outro, mais tarde dificultam sua erradicação. Crescemos com aquilo que herdamos ainda na infância e só muito devagar nos libertamos de alguns conceitos que assimilamos – pelo menos inicialmente –, impossibilitados de questionar. Possíveis mudanças dependem da capacidade de flexibilizar-se, e isto, por sua vez, advém da estrutura psíquica de cada um e até mesmo do grau de saúde mental e da habilidade de “reinventar-se” de forma mais livre. Em outras palavras, as transformações processadas na sociedade não são simultaneamente introjetadas. É preciso, antes, amadurecer as novas ideias.

De qualquer modo, é na articulação entre os âmbitos jurídico, cultural e psíquico que surgem grandes metamorfoses na sociedade. Provavelmente veremos isso a partir de agora, quando a legitimação da união estável tornar mais visíveis as relações homoafetivas, facilitando as diferentes formas de concepção dos filhos e o reconhecimento dessas crianças, sem que seja necessário cobri-las com o manto da dissimulação e da vergonha que até então as acolhia. Penso que, enquanto não promovermos um desarmamento moral, capaz de suportar o potencial humano para ser diferente, estaremos sempre vulneráveis à violência e à solidão. Os ganhos, agora conferidos aos homossexuais, só tornam mais evidentes as perguntas que deveríamos nos fazer cotidianamente: que direito temos nós de condenar o desejo do outro, uma vez que esse desejo é, também, parte de nós mesmos? Que direito temos de dizer ao outro como deve conduzir sua vida afetiva?

A maneira de conviver com a homossexualidade modificou-se ao longo dos anos. Comportamentos vistos como absolutamente normais na Antiguidade foram rotulados de degenerados no século 19. E só recentemente essa expressão da sexualidade deixou de ser considerada uma doença mental. Na edição de 1968 do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), obra de referência para psiquiatras, a atração por pessoas do mesmo sexo aparecia no capítulo sobre desvios, classificada como um tipo de aberração.

Foram os próprios gays que, cansados de ser taxados de aberrações, começaram a defender a ideia de que sua orientação não era patológica. Um momento histórico na transformação dessa forma de pensar ocorreu após uma violenta ação policial no Stonewall Inn, bar gay no Greenwich Village, em Nova York, em 28 de junho de 1969. Nos cinco dias seguintes, uma multidão continuou a se reunir no local, protestando contra a discriminação e exigindo direitos iguais para homossexuais. Conhecido como rebelião de Stonewall, o evento é considerado a marca inicial para a maior aceitação cultural da homossexualidade no mundo todo.

Quatro anos mais tarde, a Associação Americana de Psiquiatria (AAP) começou a reavaliar essa questão. Uma comissão liderada pelo médico Robert L. Spitzer, da Universidade de Colúmbia, recomendou que o termo “homossexualidade” fosse retirado da edição seguinte do DSM, mas a sugestão não surtiu efeitos práticos. Pouco depois de os dirigentes da AAP votarem a favor da alteração, 37% dos psiquiatras consultados sobre o tema disseram ser contrários à mudança. Alguns chegaram a acusar a associação de “sacrificar princípios científicos em nome dos direitos civis”.

Nos anos 90, grande parte dos psicólogos ainda argumentava que a homossexualidade era um distúrbio psíquico. Para defender esse ponto de vista, muitos se apoiavam na penúltima edição da Classificação internacional de doenças (CID-9), de 1985, que considerava essa orientação formalmente patológica. Atualmente, porém, os conselhos regionais de psicologia (CRPs) são claros em orientar os profissionais da área para que não tratem a homossexualidade como distúrbio, a manifestação de preconceitos pode deflagrar processos e punições.

O preconceito em relação à homossexualidade muitas vezes é dissimulado e, apesar das transformações culturais, em certos meios persiste a ideia de que essa orientação é uma doença que precisa ser “curada”. Alguns defensores de terapias que se propõem a isso buscam respaldo na teoria de Sigmund Freud (1856-1939), cujas palavras foram tantas vezes descontextualizadas e interpretadas de maneira tendenciosa. As formulações do autor passaram por diferentes momentos e sofreram acréscimos significativos ao longo de sua obra, o que permite variadas interpretações, dependendo do texto que for tomado como referência. Em artigo de 1930 no qual discute o caso de uma moça que se apaixona por uma jovem senhora da sociedade, por exemplo, Freud considera que, quando uma mulher escolhe outra como objeto de amor, revela uma fixação infantil – não necessariamente decepção com o pai. Fixações, entretanto, não são exclusividade dos homossexuais – nem podemos procurar “culpados” por elas. As diferentes preferências – e consequentes escolhas ou negações – revelam singularidades e fatores inconscientes de cada pessoa.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/relacoes_homoafetivas_avancos_e_resistencias.html. Acesso em 29 jun 2013.

sábado, 24 de março de 2012

Dicas impressas 9: Imitação; Grupos; Desorientação

FLORACK, Arnd et al. Cada vez mais parecidos Muitas vezes, imitamos inconscientemente a entonação da voz, a escolha das palavras e o gestual de outras pessoas; também adotamos seus pontos de vista e os introjetamos como se fossem originalmente nossos; esse comportamento é útil para a convivência social. Mente e Cérebro, Ano XVIIII, n.º 222, pp. 20-27.

JETTEN, Jolanda et al. O poder terapêutico dos grupos O convívio em vários círculos sociais torna as pessoas mais felizes, saudáveis e ajuda a viver mais; além de proporcionar trocas afetivas e intelectuais, o hábito funciona como vacina para fortalecer a saúde física e mental, e ainda costuma ser bastante divertido. Mente & Cérebro, ano XVII, nº 208, maio de 2010, pp. 36-43.

PASSOS, Maria Consuêlo. Por um mundo melhor Lipovetsky e Serroy abordam sintomas da ‘desorientação da sociedade’, causada pela falência de valores fundamentais e pela mudança de referências. Mente & Cérebro, ano XIX, nº 229, fevereiro de 2012, pp. 78-79.

sábado, 3 de março de 2012

Dicas impressas 6: Ciúme; Moral; Paradoxo

DIEGUEZ, Sebastian. Otelo e a doença da suspeitaHá mais de 400 anos o personagem – marcado pelo ego frágil, controle emocional falho e visão distorcida da realidade – causa fascínio, a ponto de ter motivado a criação de um conceito psiquiátrico: o ciúme patológico. Mente e Cérebro, ano XVIII, n.º 221, pp. 64-69.

FADEL, Maria Maura. Até onde podemos ir? Há situações em que a busca por reconhecimento e valorização sufoca valores morais a ponto de homens e mulheres comuns se tornarem capazes de infligir grande sofrimento a alguém apenas porque o identificam como diferente ou desejam agradar a figuras de autoridade. Mente e Cérebro, Ano XVIII, n.º 219, pp. 20-23.

PASSOS, Maria Consuêlo. Reinvenção da vida A sociedade contemporânea nos impõe um paradoxo: somos seduzidos por um mundo sem fronteiras e, ao mesmo tempo, limitados pela impossibilidade de seguir ao encontro do outro sem tantas defesas – talvez a alternativa para superar essas ameaças seja investir no afeto. Mente e Cérebro Especial, n.º 29, pp. 38-41.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Dicas impressas 3: Homens/Mulheres; Ansiedade; Homoafetividade

HUECK, Karin. Homens – mulheres Eles não são mais os mesmos: nascem frágeis, vão mal na escola, pior na faculdade e perderam terreno nas empresas. Elas, por sua vez, ainda não sabem jogar com as regras que o mundo privilegia. Entenda aqui o que está acontecendo com os sexos e quais são nossas diferenças. E por que, na verdade, são os homens que falam mais. Superinteressante, n.º 292, pp. 48-57.

LEAHY, Robert L.. O tormento da ansiedade Muitos de nossos medos estão atrelados a preocupações ultrapassadas; por isso, tantas vezes respondemos a estímulos de maneiras que nos prejudicam; questionar crenças pode ajudar a evitar fobias e inquietações exageradas. Mente e Cérebro, ano XVIII, n.º 219, pp. 24-33.

PASSOS, Maria Consuêlo. Relações homoafetivas: avanços e resistências Com a nova legislação, casais homossexuais passam a ser considerados família e ganham a possibilidade de adotar crianças; o preconceito, porém,não será apagado tão facilmente – é preciso construir o espaço psíquico para tolerar a diferença. Mente e Cérebro, Ano VIII, n.º 222, pp. 42-45.