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sábado, 19 de outubro de 2013

Sou travesti, venci o preconceito e me tornei uma chefe de cozinha

Iran Giusti
11/09/2013

Há pouco mais de um mês, Kathya Hondjaccoff , 26, recebeu uma promoção no restaurante japonês em que trabalha na cidade de Barretos (SP), o Naka Naka Sushi Bar. A paulista deixou de ser assistente e tornou-se uma chefe de cozinha. Para chegar a esse posto, ela teve que percorrer um caminho árduo, numa trajetória comum a qualquer profissional no meio da gastronomia. A grande diferença é que Kathya enfrentou um desafio a mais: o fato de ser uma travesti numa sociedade e num mercado de trabalho ainda muito preconceituosos.

Nós temos que nos valorizar, não importa que as empresas sejam fechadas. É preciso ser uma boa profissional, batalhar, fazer faculdade para não ter que ir para rua (Kathya Hondjaccoff)

“O começo não foi nada fácil. Perdi a conta de quantas vezes fui rejeitada, de quantos ‘nãos’ ouvi. Mas sou persistente, sempre tive foco no que eu queria para mim”, lembra Kathya, que sempre recusou a ocupação que, muitas vezes, infelizmente, é a única oferecida às travestis, a prostituição.

Kathya defende que as transgêneros mantenham a autoestima, mesmo com os percalços que aparecem no caminho. “A vida na rua é muito sofrida, não tenho nada contra quem se prostitui, mas essa nunca foi uma opção para mim. Nós temos que nos valorizar, não importa que as empresas sejam fechadas. É preciso ser uma boa profissional, batalhar, fazer faculdade para não ter que ir para rua”, argumenta.

O primeiro emprego dela foi como faxineira na Santa Casa de Misericórdia de Barretos, aos 17 anos, pouco tempo depois de ter assumido sua identidade feminina. Em três meses, ela foi promovida ao cargo de auxiliar de cozinha. Foram seis anos no hospital, de onde saiu como gerente do serviço de higiene e conservação.

A carreira na gastronomia começou como um segundo emprego, na intenção de juntar dinheiro para fazer uma cirurgia de implante de silicone. Sócio de um restaurante, um amigo médico a convidou a trabalhar com ele. “Trabalhava das 7h às 17h na Santa Casa e das 18h às 1h no sushi bar”, descreve Kathya.

Com o tempo, o segundo emprego ganhou status de principal e Kathya deixou o hospital para se dedicar ao restaurante, onde acabou se tornando uma chefe de cozinha. Ela diz que o apoio da família foi fundamental em sua trajetória. “Eles me deram força para que eu pudesse lutar com toda a garra”.

Nome de mulher no crachá e no e-mail

Lamentavelmente, a analista de sistemas Luiza Abreu , 34, não pode contar o mesmo suporte familiar quando decidiu assumir sua identidade feminina. “Apenas a minha mãe ficou ao meu lado, todos os outros me abandonaram”, relata.

Após terminar o curso técnico de Análise de Sistemas, quando estava com 22 anos, Luiza decidiu que já hora de se assumir como mulher. E em oposição à rejeição da família, ela encontrou apoio dos colegas de trabalho, numa empresa de tecnologia no Rio de Janeiro.

“Todos reagiram muito bem quando eu passei a trabalhar usando trajes adequados ao meu gênero. Teve apenas um funcionário que se recusou a usar meu nome social”, conta Luiza, ressaltando a importância do apoio das empresas, que precisam adotar a identidade feminina da transgênero em crachás, cartões e endereços de e-mail.

“Juridicamente, um contrato precisa ter o mesmo nome do documento. Mas em um crachá, que é usado apenas como identificação, não tem problema colocar seu nome social. É um gesto simples que faz muita diferença”, explica Luiza, lembrando que o processo para mudar do nome legalmente costuma ser demorado e trabalhoso.

Profissão de mulher

Muito antes de se assumir, a travesti Jussara Meirelles , 34, sonhava em trabalhar com beleza. Quando criança, ela vivia brincando com os cabelos das amigas, imaginando que era cabeleireira. “Apanhei muito da minha mãe por causa disso, ela dizia que essa era uma profissão de mulher”, recorda Jussara, que mesmo assim não desistiu da carreira, nem de adotar a identidade feminina.

“A primeira pessoa que me empregou foi uma mulher, em um salão a de bairro aqui em Natal”, conta Jussara, que tinha então 16 anos. “No início, havia muito preconceito. As mulheres não deixavam que seus maridos fossem sozinhos cortar os cabelos. Mas, com o tempo, fui conquistando meu espaço, mostrando que estava ali para trabalhar, que não era vulgar”, completa a potiguar.

Respeitada e trabalhando hoje num grande centro de beleza em Natal, Jussara ainda quer mais e planeja um futuro como empresária. “Quero ter o meu próprio salão, quero dar a mesma oportunidade que eu tive. Todas as minhas funcionárias serão transexuais”, projeta ela.

Alguns governos municipais e ONGs têm desenvolvido programas para facilitar o acesso dos travestis e transexuais ao mercado formal de trabalho. Desenvolvido pela prefeitura do Rio de Janeiro desde 2003, o projeto Damas se destaca nacionalmente neste sentido.

O Damas promove aulas de direitos civis e cidadania, oficinas de trabalho e orientação vocacional. Além disso, profissionais da medicina fornecem orientação sobre questões de saúde, como o uso correto de hormônios por transgêneros, por exemplo.

Chefe da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da prefeitura do Rio de Janeiro, responsável pelo Damas, Carlos Tufvesson aponta um grande empecilho na inserção das travestis no mercado de trabalho. “O preconceito é grande na hora da contratação, lutamos diariamente contra essa realidade. Meu sonho é que as empresas contratem seus funcionários por sua competência e currículo, não pelo sexo”, revela o coordenador.

Com previsão de início para janeiro de 2014, a próxima turma do Damas está recebendo pré-inscrições. A Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual da cidade de São Paulo está desenvolvendo um projeto semelhante, que deve começar a funcionar no ano que vem.


Disponível em http://igay.ig.com.br/2013-09-11/sou-travesti-venci-o-preconceito-e-me-tornei-uma-chefe-de-cozinha.html. Acesso em 14 out 2013.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Crianças transgênero: mais do que um desafio teórico

Natacha Kennedy – University of London/Inglaterra
Cronos - Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da UFRN
v o l u m e 1 1 - n ú m e r o 2 - 2 0 1 0

Resumo: Este trabalho sugere que uma significante maioria de pessoas transgênero toma consciência de sua identidade de gênero em tenra idade. Assim, a maioria das crianças trans passa maior parte, ou todo período escolar, sentindo que têm uma identidade de gênero que é diferente daquela que têm que representar. Crianças transgênero são caracterizadas como “Não Aparentes” e “Aparentes”, com a vasta maioria tendendo à última categoria. Argumenta-se que o longo período de ocultação e supressão pode levar a problemas. Este projeto apresenta uma análise de evidências sugerindo que este é o caso, e considera que as implicações formam o ponto de vista do modo que as crianças entendem, racionalizam e atuam nestas situações e dão sentido às expectativas de transtorno de gênero. Os consequentes sentimentos de culpa e vergonha parecem representar problemas significativos a estas crianças quanto a seus fracassos na educação e em outras áreas de suas vidas.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Pensamentos perigosos

Arnd Florack; Martin Scarabis

Há um teste simples, concebido pelos psicólogos sociais Andreas Klink e Ulrich Wagner. Na calçada, uma jovem pergunta qual o caminho até a rodoviária. A maioria dos passantes lhe dá a informação; somente uns poucos mal-educados ou apressados seguem adiante, ignorando-a. Um pouco mais tarde, ela retorna ao local para fazer a mesma pergunta. Com uma diferença: a jovem agora veste roupas orientais e um véu lhe recobre a cabeça. Os professores querem verificar se ela será tratada de forma diferente. 

Infelizmente, o resultado dessa pesquisa de campo dos professores das universidades Jena e Marburg, na Alemanha, comprova com todas as letras: o número de pessoas que agora ignoram a suposta estrangeira mais que duplica. Em outros experimentos, os dois psicólogos solicitaram a pessoas com nomes estrangeiros que respondessem a anúncios imobiliários e de emprego, e observaram nos concidadãos o mesmo comportamento de repulsa. A causa, evidente, é uma só: preconceito.

A psicologia atual caracteriza o preconceito como a presença, profundamente arraigada na memória, de associações negativas vinculadas a pessoas de culturas estrangeiras. Estudos realizados em muitos países evidenciam que todo ser humano nutre semelhantes reservas e age em consonância com elas. Nesse contexto, a violência praticada contra estrangeiros, que não exclui sequer assassinatos, é apenas a ponta do iceberg. Como mostra o teste de Klink e Wagner, o comportamento discriminatório se manifesta sobretudo em situações cotidianas. Os estereótipos, entretanto, não dificultam a vida apenas dos grupos estigmatizados. 

Com razão, os psicólogos sociais americanos Robert A. Baron e Donn Byrne observam que pessoas com atitudes preconceituosas vivem em ambiente social carregado de conflitos e medos desnecessários. Sentem constante temor, por exemplo, de ser atacadas ou molestadas por estrangeiros supostamente hostis. Ou seja, essa postura redunda em considerável queda da qualidade de vida - argumento suficiente para atuar no combate a hábitos socialmente nocivos do cérebro. Mas como fazer isso? Começando a debater o tema? Reeducando os portadores de preconceitos, ou seja, todos nós? Infelizmente, não é tão fácil assim. Se abordado de forma equivocada, o combate aos estereótipos pode, na melhor das hipóteses, ser inócuo. Na pior, levar a uma rejeição ainda maior. Quem deseja de fato acabar com os preconceitos deve compreender que papel eles desempenham em nosso pensamento.

John Dovidio e colegas da Universidade Colgate, nos Estados Unidos, estudam a interação de grupos sociais. Em um de seus experimentos constataram que os preconceitos atuam no plano inconsciente. A associação entre grupos de pessoas e características negativas é estabelecida numa esfera sobre a qual não temos controle.

Como descobrimos juntamente com Herbert Bless, esse fenômeno não se restringe à questão de brancos e negros nos Estados Unidos. Em experiências semelhantes, estudantes alemães também revelaram associações negativas vinculadas a grupos estrangeiros - nesse caso, voltando sua desconfiança contra turcos e poloneses.

Todos os estudos relevantes indicam que o poder dos preconceitos se assenta primordialmente no modo como nossa memória funciona. Tão logo deparamos com um representante de um grupo étnico estranho, a memória põe de imediato à nossa disposição valorações e convicções estereotípicas. A elas podemos recorrer com reduzido esforço cognitivo, e sua influência se faz sentir em nosso juízo e comportamento. Não obstante, processos inconscientes não servem como explicação ou, menos ainda, como desculpa para o comportamento hostil em relação a estrangeiros. Afinal, para que uma postura automatizada se transforme em opinião expressa ou até mesmo em ação direcionada, é necessário que os preconceitos passem pelo crivo da consciência. É o que se verifica com freqüência quando questionamos universitários sobre sua opinião em relação ao tema. Em geral, eles manifestam postura neutra ou positiva no tocante a grupos estrangeiros. A razão é evidente: eles têm controle consciente sobre uma eventual opinião negativa.

Na maioria das vezes, podemos decidir a que informação dar peso maior, se às associações evocadas de forma automática ou aos fatos reais - como, por exemplo, quando um estrangeiro nos devolve a carteira que tínhamos perdido. Mas há uma limitação: se somos pressionados pelo tempo curto, estamos cansados ou por alguma outra razão nosso julgamento não resulta de reflexão, em geral os preconceitos se impõem. Ao que tudo indica, a categorização automática atua como uma espécie de mecanismo poupador de energia com o auxílio do qual nosso cérebro processa informações com maior eficiência.

É o que demonstra um experimento de Galen von Bodenhausen, da Universidade Noroeste, de Chicago. O psicólogo, que investiga as bases cognitivas dos estereótipos, pediu a estudantes que avaliassem casos fictícios de colegas que teriam supostamente cometido um ato ilícito, isto é, colado na prova final, traficado drogas ou agredido alguém fisicamente. Os participantes deveriam indicar a probabilidade de cada colega ter cometido um desses atos. As infrações em questão foram escolhidas com base no estereótipo vinculado a certos grupos étnicos. A venda de drogas associava-se à imagem do negro americano; a trapaça no exame, ao tipo esportivo, de baixo desempenho acadêmico; e a agressividade, aos latinos.

Singular nesse experimento foi o fato de que os estudantes foram chamados a participar em horários específicos: às 9 da manhã, às 3 da tarde e às 8 da noite. Paralelamente, Von Bodenhausen depreendeu, por meio de um questionário, o ritmo diário de cada participante, identificando tanto os madrugadores quanto os de péssimo humor matinal. O resultado foi claro. Estudantes com dificuldade para acordar deixaram-se levar por seus preconceitos sobretudo de manhã. Nesse horário, mostraram o maior grau de certeza de que os inculpados haviam de fato cometido o ato ilícito. Mais tarde, ao longo do dia, revelaram juízo mais claro, baseando-se predominantemente nos fatos descritos. O oposto se verificou em relação aos madrugadores, que, em especial no período da noite, tatearam rumo à armadilha das próprias idéias preconcebidas.

A isso se soma o fato irônico de que, com o tempo, o preconceito reprimido pressiona cada vez mais por expressão. Você já tentou conter uma observação desagradável em relação a seu parceiro ou parceira? E não aconteceu de, no fim, o comentário escapar assim mesmo, talvez no momento menos apropriado? Esses acidentes cognitivos acontecem em breves momentos de desmotivação ou quando estamos menos alertas. A esse respeito, Neil Macrae, do Dartmouth College, em Hanover, Estados Unidos, conduziu uma pesquisa juntamente com Alan Milne, da Universidade de Aberdeen, e com Von Bodenhausen. 

Macrae e colegas investigaram a influência exercida por estereótipos sobre o pensamento e, em particular, de que maneira inibimos pensamentos impróprios. Em seu experimento, os participantes foram convocados a julgar uma pessoa. A fim de motivá-los a reprimir seus preconceitos, os voluntários foram acomodados diante de uma câmera de vídeo e podiam contemplar a própria imagem numa tela de televisão. De fato, esse truque induziu ao menos alguns deles a encobrir seus preconceitos, até o momento em que a câmera foi desligada. Então, sob a alegação de que um defeito técnico havia ocorrido, a experiência foi repetida. Justamente pessoas que antes haviam conseguido controlar seus preconceitos passaram a dar vazão entusiasmada a estereótipos. O contragolpe da repetição as pegou desprevenidas.

Mas de onde vem essa nossa estranha predileção por padrões de pensamento inexatos e, amiúde, até mesmo danosos? Uma das vantagens, nós já vimos aqui: os estereótipos nos poupam do esforço da reflexão, por simplificar o processamento da informação. Em certas situações, servem também de escudo para a preservação da auto-estima, como já demonstraram Steven Fein, do Williams College, em Massachusetts, e Steven Spencer, da Universidade de Waterloo, no Canadá. E estudos sociopsicológicos do passado já revelaram indícios de que pessoas com postura positiva em relação a si mesmas externam menos preconceitos a grupos estrangeiros.

Convém, no entanto, evitar conclusões precipitadas. Os meios de comunicação têm por prática demasiado freqüente partir do pressuposto de que frustrações pessoais conduziriam à discriminação de minorias: "Quanto maior o desemprego, tanto maior a hostilidade aos estrangeiros". Essa tese, no entanto, é refutada por estudos conduzidos por Jennifer Crocker, da Universidade de Michigan, bastante dedicada ao estudo de estigmas sociais. Segundo a psicóloga, a elevação da auto-estima pela via do preconceito funciona, paradoxalmente, apenas para as pessoas que já possuem auto-imagem positiva. As que se têm em baixa conta pouco lançam mão desse recurso. Para elas, desemprego ou insucesso costumam redundar em depressões ou auto-agressões.

Por outro lado, é inconteste o fato de que a integração a um grupo pode fortalecer a auto-estima. Como deixam claro numerosos estudos, nós nos definimos acima de tudo com base nessas unidades sociais, destacadas positivamente de outras. Isso por vezes leva o indivíduo a dar preferência a pessoas de seu próprio meio e a desvalorizar as demais. O significado fundamental desse mecanismo revela-se até na linguagem verbal. Palavras que caracterizam o próprio grupo ("nós", por exemplo) revestem-se comprovadamente de carga positiva maior que aquelas vinculadas a outro grupo (como "vocês"). No passado, pensava-se que apenas o conflito por bens materiais desencadeasse esse antagonismo entre grupos - ou seja, a tão propalada pilhagem da previdência social ou a disputa por postos de trabalho, percebida como intensa. Pesquisas comprovam que isso de fato ocorre, uma vez que estrangeiros sempre levam a pior nessa situação. 

Mas o que se revelou com o tempo foi que tamanha pressão externa não é sequer necessária. Participantes de um estudo divididos por psicólogos em grupos aleatórios revelaram imediata preferência pelos componentes do próprio grupo, embora de início não compartilhassem nenhuma experiência comum. O mero estabelecimento de um grupo basta para lançar as bases do preconceito.

Desde que começaram a estudar a interação entre grupos, os psicólogos sociais repetem a mesma pergunta: o que leva seres humanos a praticar crueldades incompreensíveis contra semelhantes - como a opressão brutal imposta às minorias, as "faxinas étnicas", as torturas e os estupros sistemáticos? Isso está de alguma forma relacionado aos preconceitos e à auto-estima dos perpetradores? Os pesquisadores americanos Sheldon Solomon, Jeff Greenberg e Tom Pyszczynski propõem uma explicação com sua Terror Management Theory (teoria do gereciamento do terror). O cerne dessa teoria é o medo que os humanos têm da própria morte - aquilo que é chamado de terror. A fim de se proteger disso, o homem esboça, no âmbito de sua cultura, um sistema de regras de comportamento e de escalas de valores. Viver em conformidade com essas regras lhe dá segurança e o faz sentir-se valoroso. Além disso, muitas culturas prometem aos obedientes uma existência após a morte.

Assim, se estranhos põem em questão a veracidade desse sistema de valores, como propõem os três pesquisadores, isso mexerá com o medo arcaico da própria finitude. Para estabilizar seu mundo, o homem, agora inseguro, reagirá com preconceitos e comportamento discriminatório.

Ainda que soe algo mística à primeira vista, essa teoria tem sido confirmada por numerosas pesquisas. Um ramo delas concentrou-se em examinar de que forma a auto-estima reduz o medo. Num experimento realizado pelo grupo de Greenberg, os participantes foram convocados a assistir a um filme sobre autópsias. Testes psicológicos revelaram que o filme lhes despertou medo. Havia, porém, uma possibilidade de neutralizar tal efeito, com o fortalecimento prévio da auto-estima, usando feedback positivo direcionado para cada personalidade.

Outro ramo da pesquisa voltou-se para as conseqüências do medo existencial. Quando nos sentimos inseguros, vemos com outros olhos pessoas em posições políticas ou religiosas diferentes da nossa? A resposta é sim. Ao se chamar a atenção de cristãos, por exemplo, para sua mortalidade, sua reação foi desvalorizar os judeus em relação aos demais cristãos - algo que, sem o componente da insegurança, não haviam feito. Os pesquisadores também chegaram a interrogar voluntários na calçada em frente a uma funerária e a provocar medo em torcedores holandeses às vésperas de um jogo contra a seleção alemã, para, depois, solicitar seu palpite quanto ao resultado.

Mas o que dizer do estupro, da tortura e do assassinato? Crimes dessa natureza, afirmam Solomon, Greenberg e Pyszczynski com toda a clareza, não se explicam apenas pela teoria do gerenciamento do terror. A maioria das culturas demanda que estranhos sejam tratados de forma humana e justa, razão pela qual criminosos de guerra desrespeitam, na verdade, seus próprios valores. Nesse caso fica evidente a ação de outro mecanismo: a chamada exclusão moral. A pessoa percebe os membros do grupo estrangeiro como seres desprovidos de humanidade, aos quais já não se aplica o preceito do tratamento humanitário. Tal mentalidade se reflete em concepções como a do ser "subumano" ou da "pureza étnica".

Se examinados à luz de critérios objetivos, os preconceitos logo se reduzem àquilo que de fato são: conclusões atabalhoadas e simplificadoras. Ainda assim, somos ao menos capazes de refreá-los mediante o controle e a análise crítica de nossos posicionamentos. Sabemos, porém, que isso com freqüência resulta numa luta árdua, que não exclui a possibilidade de reveses ou contragolpes.

O melhor é acabar com padrões de pensamento como esse de uma vez por todas, mas isso é mais fácil falar que fazer. Psicólogos sociais, entretanto, identificaram uma série de mecanismos responsáveis pelo preconceito:
  • para justificar nosso preconceito, recorremos a uma amostra distorcida;
  • contemplamos o grupo a que pertencemos como diferenciado; os demais, como massa homogênea;
  • o que contraria o estereótipo é visto como exceção;
  • buscamos informações que corroborem nosso juízo e desconsideramos aquelas que o questionam;
  • uma mesma ação é interpretada de maneiras diferentes, dependendo de quem a pratica;
  • portadores e vítimas de preconceitos comportam-se de modo a confirmar os estereótipos.

Examinemos esses pontos um a um. Em primeiro lugar, o fato de que os seres humanos são péssimos estatísticos. Um exemplo simples. Num pequeno país, vivem dois grupos de pessoas. Um deles, de mil habitantes, compõe a maioria da população, ao passo que o outro é constituído de apenas cem pessoas. Supondo que cem membros da maioria e dez da minoria sejam condenados por delitos, você decerto dirá que a criminalidade é idêntica nos dois grupos afinal, o número de criminosos perfaz 10% em ambos os casos. No dia-a-dia, porém, não dispomos de cifras tão elucidativas. Em vez disso, percebemos esses acontecimentos isoladamente, seja pelo jornal, seja pelo que ouvimos dizer - e aí falha nossa lógica: como demonstram inúmeros estudos, mesmo em casos bastante simples, geralmente não somos capazes de, a partir de dados isolados, inferir a freqüência real e atribuímos à minoria uma taxa de criminalidade maior. Caso ela de fato infrinja a lei com maior assiduidade, esse dado costuma ser superestimado. 

Psicólogos sociais denominam essa distorção perceptiva de correlação ilusória. Tanto as minorias como os delitos atraem sobremaneira nossa atenção. Armazenamos melhor na memória fatos assim, o que significa evocá-los com maior facilidade - terreno ideal para que o preconceito viceje.

Esse efeito é ainda reforçado por nossa tendência acentuada a, em se tratando de outros grupos, tirar conclusões gerais baseadas em observações isoladas. A crença é de que "nós somos diferentes um do outro, mas eles são todos iguais". É possível que isso se deva ao fato de conhecermos melhor o grupo a que pertencemos e suas diferenças, enquanto o grupo estranho nos parece um bloco monolítico. Paradoxal é que não generalizemos num único caso: quando a experiência que temos vai de encontro a nossos preconceitos. Vivências positivas são logo interpretadas como exceções - o negro que integra nosso círculo de amizades é "negro de alma branca", a mulher que estacionou o carro muito bem teve "sorte" e o professor dedicado é "excêntrico". Esse mecanismo funciona tanto melhor quanto mais os outros nos surpreendem. E, por fim, essa dialética da exceção acaba por preservar todos nossos preconceitos. O ser humano precisa de tanto tempo para rever sua opinião preconcebida porque almeja sobretudo confirmá-la. Ele busca informações que corroborem sua opinião e suprime as experiências que a refutam - ou então as avalia de modo a preservar o estereótipo.

Preconceitos têm a tendência traiçoeira de se confirmar. Isso pode ocorrer sob a forma da "profecia que se cumpre a si mesma", quando nossa postura influencia imperceptivelmente o próprio comportamento - e o daquele com quem interagimos. Além disso, os estigmatizados contribuem também para o juízo negativo que fazemos deles, e justamente porque temem ser reduzidos a um estereótipo. Essa relação foi demonstrada por um grande número de experimentos conduzidos por Claude Steele, psicólogo da Universidade Stanford.

Ao que parece, nosso aparato cognitivo faz de tudo para preservar os preconceitos. Temos, portanto, de nos arranjar com eles, fadados a nos vigiar constantemente? A conclusão soa pessimista demais. Mais eficaz seria não permitir sequer o surgimento de estereótipos. Os psicólogos sociais Baron e Byrne vão direto ao ponto quando dizem que crianças não nascem preconceituosas: o preconceito é, portanto, aprendido. É por essa razão que ambos os pesquisadores incentivam pais, pedagogos e professores a deixar de transmitir opiniões estereotipadas. Mas há um problema aí: cada um de nós considera suas opiniões corretas e livres de preconceito. Algo semelhante, portanto, funcionará somente se pais e demais envolvidos forem sensibilizados para as próprias opiniões preconcebidas.

Muitos psicólogos defendem o ponto de vista de que o contato com os discriminados diminui os preconceitos pouco a pouco. Com o intuito de investigar essa idéia, os psicólogos sociais de Marburg, Wagner e sua equipe, se valeram de estatísticas de criminalidade e de dados provenientes de amplos levantamentos. Verificou-se que precisamente os moradores de regiões com alta porcentagem de estrangeiros são as que menos nutrem opiniões estereotipadas. Violência contra estrangeiros ou slogans xenófobos, por outro lado, aparecem sobretudo onde a possibilidade de intercâmbio é quase inexistente. Esses dados, contudo, não constituem prova definitiva de que o contato realmente contribui para a eliminação dos preconceitos. Talvez fosse possível concluir, antes disso, que lugares com grande variedade cultural tendem a atrair pessoas simpáticas às culturas estrangeiras.

Provas mais contundentes são oferecidas por estudos realizados em salas de aula. Nelas, pode-se ensinar as crianças de forma direcionada, em conjunto com minorias ou separadamente delas. Todavia, como se verificou nos Estados Unidos e em outros países, esse contato nem sempre obtém o êxito desejado. Por vezes, ele apenas intensifica o conflito, piorando a situação dos grupos estigmatizados. Somente sob certas condições a luta contra os preconceitos é bem-sucedida - às vezes com resultados surpreendentes. Por um lado, é indispensável que as autoridades, a direção da escola e sua política apóiem esse modelo educacional. É necessário, por exemplo, que recursos sejam disponibilizados em quantidade suficiente ou, pelo menos, que se dê total respaldo aos pedagogos envolvidos em projetos dessa natureza.

Além disso, a interação entre grupos de alunos precisa ser bastante intensa: intercâmbios superficiais não bastam. Ajuda muito, por exemplo, se membros dos diferentes círculos já tiverem relação de amizade. Na aula em si, trata-se de propor aos alunos um objetivo comum ou tarefas a serem realizadas em grupos mistos. Do contrário, os alunos de uma classe tenderão a se compor outra vez de acordo com sua origem. Por fim, desempenha papel decisivo o modo como os grupos se vêem no início de um projeto pedagógico como esse. É imperativo não vigorar entre eles nenhuma diferença de status - condição, aliás, que raras vezes se verifica. Se algum domínio é exercido por um grupo de alunos, isso resultará em conflitos que apenas fortalecerão medos e reservas preexistentes. Havendo hostilidade prévia entre os grupos, é quase certo que o projeto fracassará.

No entanto, na presença dos pressupostos necessários, o que se verifica entre as classes ou os grupos de trabalho mistos é um fenômeno que lança no esquecimento todas as diferenças e visões preconcebidas: a chamada recategorização. Os estudantes passam a se ver não mais como "nativos" e estrangeiros, mas apenas como membros de uma mesma equipe. E, fora da sala de aula, esse mecanismo funciona da mesma maneira. Assim é que um torcedor de determinado time de futebol pode torcer também por um jogador de outro time quando esse jogador está atuando na seleção nacional. Da mesma forma, os habitantes de um bairro com características multiculturais se identificam com todos os demais grupos étnicos moradores da "sua" rua.

Mas e o próprio indivíduo, o que pode fazer? A ele cabe exercitar sua autocrítica com tenacidade e lutar por juízos objetivos. Importante é como se comporta nosso ambiente social, pois apenas quando os meios de comunicação e a experiência cotidiana nos esfregam na cara que nossas idéias preconcebidas não se aplicam, e nós mesmos enfim o percebemos, tornamo-nos capazes de modificá-las. Somente assim é possível combater a discriminação.

Disponível em <http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/pensamentos_perigosos.html>. Acesso em 15 nov 2012.

sábado, 6 de outubro de 2012

A mudança de nome em indivíduos transgêneros em pauta na Conferência Internacional de Aids

Karen Schwach

Atentos à situação de vulnerabilidade vivenciada pelos indivíduos transgêneros e cientes da importância do nome deles, enquanto direito fundamental inerente a pessoa humana, o SOS Dignidade representou, desde 2009, 51 indivíduos transgêneros (45 homem para mulher e 6 mulheres para homens) em Ações de Retificação de Registro Civil, oferecidas perante as Varas de Registros Públicos da Comarca Central da Capital do Estado de São Paulo, 15 delas ainda em trâmite e 36 já concluídas com sucesso. 

Além do êxito nas demandas jurídicas, o SOS Dignidade constatou a importância que a mudança do nome representa para a auto-estima dos indivíduos transgêneros, refletindo, positivamente, em diversos aspectos da vida dessas pessoas.

A retificação dos registros civis dos transgêneros é o tratamento do indivíduo em conformidade com o ditame constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana, com impacto profundo na auto-estima desta população. Constata-se uma enorme importância do nome na auto-estima, representando um meio de inclusão social. Cem por cento dos indivíduos que responderam o questionário apresentado pelo SOS Dignidade relataram aumento na auto-estima e qualidade de vida, e 75% disseram que passaram a sentir menor ansiedade com relação a cirurgia de transgenitalização, concluindo-se que esta operação deixa de ser vista como a única forma de inclusão social.

A dificuldade suportada pelos transgêneros e a situação vexatória a que são expostos, quando da apresentação dos documentos com o nome de registro em total discrepância com a aparência e personalidade de seu respectivo portador, enseja o questionamento acerca da aceitação legal e social da classificação de gênero pelo sexo biológico. 

Já foram relatados por diversos transgêneros o tratamento marginalizado a que são submetidos, chegando ao ponto de serem, até mesmo, impossibilitados de fazerem uso de cartão de crédito, tudo porque o atendente não acredita que o indivíduo é o mesmo daquele cujo nome consta no cartão e demais documentos de identificação, sendo que muitas vezes tais situações culminaram no Distrito Policial. 

Em razão da relevância dos resultados obtidos, o SOS Dignidade foi selecionado para apresentar este projeto na 19ª Conferência Internacional de Aids, que ocorre entre os dias 22 e 27 de julho em Washington, nos Estados. Nossa apresentação será no dia 25 de julho.

Esperamos que a apresentação deste trabalho e respectivos resultados obtidos possam chamar a atenção da sociedade mundial para a importância da auto-estima na transformação da sociedade e consolidação de uma sociedade fundamentada nos direitos humanos. 

O SOS Dignidade é um projeto de direitos humanos, idealizado por Dr. Barry Michael Wolfe, que, através do Instituto Cultural Barong, promove desde 2008 serviços jurídicos para pessoas transgêneras. A partir de uma parceria com o Ambulatório de Assistência Integral para Transgêneros do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids de São Paulo, o SOS Dignidade presta atendimento jurídico semanal.

Disponível em <http://agenciaaids.com.br/artigos/interna.php?id=396>. Acesso em 03 out 2012.

domingo, 27 de maio de 2012

Sair do armário não é garantia de felicidade

Mente e Cérebro
02 de abril de 2012

Pesquisas recentes apontam que pessoas que assumem sua orientação sexual publicamente apresentam aumento da autoestima e redução do risco de depressão e de suicídio. Mas nem sempre é o que acontece, segundo estudo publicado na Social Psychology and Personality Science. Psicólogos da Universidade de Essex constataram que o bem-estar em afirmar a própria sexualidade depende do contexto social em que a pessoa está inserida. 

Os pesquisadores entrevistaram 161 homossexuais de ambos os sexos e bissexuais com idade entre 18 e 65 anos sobre o nível de bemestar que sentiram ao afirmar sua orientação em cinco círculos sociais: amigos, parentes, colegas, companheiros de escola e comunidades religiosas. Os participantes, recrutados em debates públicos pelos direitos dos homossexuais, em redes sociais e em listas de e-mails de estudantes universitários, responderam aos pesquisadores por meio da internet e de forma anônima. 

Foram observados, em média, maior desconforto e, não raro, sintomas associados à ansiedade e depressão quando os voluntários se referiram à experiência de assumir sua orientação em comunidades religiosas (69%), escola (50%) e trabalho (45%). Mais de 35% dos participantes relataram sentir hostilidade por parte da família e apenas 13% disseram ter constrangimento em se abrir com os amigos. Os pesquisadores concluem que, independentemente do sexo e da idade, cada pessoa faz um balanço inconsciente entre a possível resistência que poderá enfrentar em alguns de seus círculos sociais e o apoio que encontrará em outros.

Disponível em <http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/sair_do_armario_nao_e_garantia_de_felicidade.html>. Acesso em 23 mai 2012.