Paula Adamo Idoeta
7 de
outubro, 2013
Para a historiadora, as mulheres brasileiras do último
século conquistaram o direito de votar, tomar anticoncepcionais, usar biquíni e
a independência profissional. Mas ainda hoje são vítimas de seu próprio
machismo.
Muitas mulheres "não conseguem se ver fora da órbita do
homem" e são dependentes da aprovação e do desejo masculino, opina ela.
BBC Brasil - Você vê traços de machismo ou preconceito em
seus ambientes profissional e pessoal?
Mary Del Priore - No ambiente profissional, não vivi nenhum
problema, porque desde os anos 1980 o setor acadêmico sofreu grande
"feminilização". As mulheres formam um bloco consistente nas
disciplinas (universitárias) mais diversas.
"O fato de que elas busquem se realizar resgatando o
trabalho doméstico, manual ou artesanal é uma prova de que a singularidade
feminina tem muito a oferecer. A mulher pode, sim, realizar-se através do
trabalho doméstico e não necessariamente no público".
Mas, na sociedade, acho que o machismo no Brasil se deve
muito às mulheres. São elas as transmissoras dos piores preconceitos. Na vida
pública, elas têm um comportamento liberal, competitivo e aparentemente
tolerante. Mas em casa, na vida privada, muitas não gostam que o marido lave a
louça; se o filho leva um fora da namorada, a culpa é da menina; e ela própria
gosta de ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra
revistas femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar
todos os homens do quarteirão.
O que mais vemos, sobretudo nas classes menos educadas, é o
machismo das nossas mulheres.
BBC Brasil - Mas muitas até querem que os maridos ajudem em
casa, mas será que essas coisas do dia a dia acabam virando motivos de brigas
justamente por conta do machismo arraigado? E também há mulheres estudadas,
ambiciosas e fortes - mas também vaidosas, que ao mesmo tempo querem se sentir
desejadas por um parceiro/a que as respeite. Isso é uma conquista delas, não?
Del Priore - Ambas as questões não podem ter respostas
generalizantes. Mais e mais, há maridos interessados na gerência da vida
privada e na educação dos filhos. Quantos homens não vemos empurrando carrinhos
de bebê, fazendo cursos de preparação de parto junto com a futura mamãe ou no
supermercado? Tudo depende do nível educacional de ambos os parceiros. Quanto
mais informação e mais educação, mais transparente e igualitária é a relação.
Quanto às mulheres emancipadas, penso que preferem estar sós
do que mal acompanhadas. Chega de querer "ter um homem só para chamar de
seu". Elas estão mais seletivas e não desejam um parceiro que queira
substituir a mãe por uma esposa.
"Na vida privada, muitas se revelam não só machistas mas racistas e homofóbicas. Muitas não gostam que o marido lave a louça; se o filho leva um fora da namorada a culpa é da menina, ela própria gosta de ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra revistas femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar todos os homens do quarteirão"
BBC Brasil - Como a mulher mudou – e o que permanece igual –
no último século?
Del Priore - Temos uma grande ruptura nos anos 60 e 70 no
Brasil, que reproduz as rupturas internacionais, com a chegada da pílula
anticoncepcional. As mulheres começaram a ocupar postos nos diversos níveis da
sociedade, a ganhar liberdade sexual e financeira. Ela passa atuar como
propulsora de grandes mudanças. Quebra-se o paradigma entre a mulher da casa e
a mulher da rua.
(Mas) a mulher continua se vendo através do olhar do homem.
Ela quer ser essa isca apetitosa e acaba reproduzindo alguns comportamentos das
suas avós. Basta olhar algumas revistas femininas hoje. Salvo algumas
transformações, a impressão é de que a gente está lendo as revistas da época
das nossas avós.
A mulher não consegue se ver fora da órbita do homem,
diferentemente de algumas mulheres europeias, que são muito emancipadas. O que
ela quer é continuar sendo uma presa desejada.
A (antropóloga) Mirian Goldenberg diz que a mulher brasileira
continua correndo atrás do casamento como uma forma de realização pessoal. No
topo da agenda dela não está se realizar profissionalmente, fazer o que gosta,
viajar, conhecer o mundo – está encontrar um par e botar uma aliança no dedo.
Mesmo que o casamento dure uma semana.
Quais as amarras das mulheres atuais?
Del Priore - O machismo é uma das questões. Outra, que
talvez explique a inatividade da mulher frente a esse padrão, é que, com a
entrada num mercado de trabalho tão competitivo, com tantas crises econômicas e
uma classe média achatada, a luta pela sobrevivência se impõe sobre qualquer
outro projeto.
Essa falta de tempo para respirar, o fato de ter que bancar
filhos ou netos, isso talvez não dê à mulher tempo para se conscientizar e se
erguer acima do individualismo – outra tônica do nosso tempo – e pensar no
coletivo.
BBC Brasil - Ao mesmo tempo em que a mulher avança no
mercado de trabalho, algumas também têm perdido a vergonha de parar de
trabalhar para cuidar dos filhos; ou resgatado, como hobbies ou profissão,
antigas "tarefas de mulher", como tricô, cozinha, artes manuais.
Desse ponto de vista, existe um poder maior de escolha das mulheres?
Del Priore- Sempre apostei que as mulheres não deveriam
buscar ser "um homem de saias", mas apostar em sua diferença e
singularidade. As marcas do gênero, segundo sociólogos, são a criatividade, a
diplomacia, capacidade de dialogar, etc. O fato de que elas busquem se realizar
resgatando o trabalho doméstico, manual ou artesanal é uma prova de que a singularidade
feminina tem muito a oferecer.
A mulher pode, sim, realizar-se através do trabalho
doméstico e não necessariamente no público. Desse ponto de vista elas só
estariam dando continuidade a uma longa tradição, discreta e oculta, que é a
independência adquirida por meio de atividades desenvolvidas no lar. Nossas
avós, quando trabalhadoras domésticas, já conheceram essa situação. A
tecnologia só nos ajuda a torná-lo mais eficiente.
"Hoje o grande desafio, em qualquer idade, é o equilíbrio interior, estar bem consigo mesma. Quando começamos a envelhecer – o que é o meu caso, aos 61 anos –, é preciso olhar isso com coragem, ver isso como um investimento positivo"
BBC Brasil - Que papel a educação teve na mulher que você é
hoje?
Del Priore - Tive uma trajetória peculiar. Resolvi fazer
universidade (aos 28 anos) quando já era mãe de três filhos. A maturidade me
ajudou muito a progredir. Tive a sorte de ter na PUC-RJ e na USP um ambiente
muito receptivo, porque era um momento em que a universidade estava largando
aquela camisa de força marxista e se abrindo para estudos de cultura e
sociedade, que me interessavam.
BBC Brasil - Quais os principais desafios que você enfrenta
como mulher?
Del Priore - Hoje o grande desafio, em qualquer idade, é o
equilíbrio interior, estar bem consigo mesma. Quando começamos a envelhecer – o
que é o meu caso, aos 61 anos –, é preciso olhar isso com coragem, ver isso
como um investimento positivo. E ter tempo para a família, para as pessoas em
volta da gente.
Quando era mais jovem, eu me preocupava muito com grandes
projetos. Hoje me preocupo com o pequeno – acho que é por aí que você muda a
realidade. É no dia a dia, na maneira como você trata as pessoas à sua volta,
no respeito que você tem pelo seu bairro. Não temos condições de abraçar o
mundo. Através do micro, a gente consegue aos poucos transformar o macro.
Disponível em
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/10/131003_mulheres_priore_pai.shtml.
Acesso em 07 out 2013.