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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Certificações do sexo e gênero: a produção de verdade nos pedidos judiciais de requalificação civil de pessoas transexuais

Lucas Freire
Mediações, Londrina, v. 20. n. 1, jan/jun 2015

Resumo: Este artigo apresenta algumas reflexões sobre como distintos documentos são capazes de produzir, dar materialidade e estabilizar a realidade sobre o sexo e gênero de pessoas transexuais ao classificar indivíduos em determinadas categorias, atestar alguns aspectos da vida dos sujeitos, comprovar certas experiências e construir narrativas e trajetórias concisas. Além disso, a produção da verdade sobre o sexo e o gênero se dá em meio a disputas e apropriações de teorias formuladas em diversos campos do saber, que são fundamentais para o acesso ao direito de alteração de nome e/ou sexo no registro civil. Os dados aqui analisados são oriundos de uma etnografia realizada no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos, da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro. 



sábado, 29 de março de 2014

A sexualidade: de Kardec a Foucault, um olhar de transcendência e contemporaneidade

Vilmar Antonio Bohnert
Universidade Estadual de Goiás
Quirinópolis, GO
Anais do III Simpósio Nacional de História da UEG / Iporá – Goiás / Agosto/2013


Resumo: Esta pesquisa não é uma extensa análise entre Kardec e Foucault e, sim, uma interface possível sobre a homossexualidade. Neste contexto, pretende-se, todavia, iniciar o leitor ao estudo do tema tão relevante e direcionar o assunto para a esfera acadêmica em relação à homossexualidade, de forma especial, ou qualquer outra forma de expressão sexual do indivíduo. Problematiza-se o cotidiano: Como conviver com essa árdua tarefa diária de respeito mútuo, de ver meu semelhante como ele é, ou se apresenta? Como encarar as conquistas na área jurídico-social como o casamento gay e a adoção de filhos por parte desses casais? Na presente pesquisa propõe-se dar à questão um olhar transcendental e contemporâneo. Busca-se mediante o método da pesquisa bibliográfica, elementos e subsídios que ofereçam uma abordagem teórica sobre o tema. Na visão transcendental será dado um enfoque especial sob a ótica da Doutrina Espírita por meio das obras de Allan Kardec, e outros autores, contrapondo teoricamente com a visão contemporânea de Michel Foucault: História da Sexualidade, volumes I, II e III.







sábado, 8 de fevereiro de 2014

A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia

Daniel Welzer-Lang
Estudos Feministas
Ano 9 - 2º Semestre - 2/2001

Resumo: A partir de definições de homofobia e de heterossexismo, este artigo explora a profundidade heurística das relações sociais de sexo transversais ao conjunto de pessoas e grupos de gênero, no interior de um quadro teórico que rompe com definições naturalistas e/ ou essencialistas dos homens. O texto analisa os esquemas, o habitus, o ideal viril, homofóbico e heterossexual que constroem e fortalecem a identidade e a dominação masculina. Para desenvolver este argumento, o autor faz uma vasta revisão bibliográfica da literatura feminista francesa contemporânea.





quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Relações de gêneros e liderança nas organizações: rumo a um estilo andrógino de gestão

Jean Carlo Silva dos Santos
Elaine Di Diego Antunes
Gestão Contemporânea, Porto Alegre, ano 10, n. 14, p. 35-60, jul./dez. 2013

Resumo: Trata-se de um ensaio teórico, realizado com base em pesquisa bibliográfica, com o objetivo analisar e descrever como os estereótipos, as diferenças e as desigualdades de gênero constroem barreiras para a ascensão de mulheres a cargos de liderança nas organizações. O ensaio discute também as implicações da gestão andrógina (KARK, 2004) como alternativa de igualdade de oportunidades para homens e mulheres ascenderem como líderes. Por meio da teoria da identidade do papel sexual,são demonstrados os estereótipos socialmente construídos sobre o papel masculino e feminino, os quais estabelecem barreiras para a ascensão da mulher a cargos de prestígio e poder nas organizações, mesmo com a inserção maciça de mulheres no mercado de trabalho. Conclui-se que o estilo andrógino de gestão constitui uma alternativa para o estabelecimento de relações de igualdade de condições e de oportunidades entre homens e mulheres, ao mesmo tempo em que transpõe a polarização existente entre os gêneros e promove sua integração. Enfim, o estilo andrógino de gestão pode ser considerado uma atitude de mudança cultural e comportamental no que diz respeito ao papel social do gênero. O avanço nas pesquisas sobre a liderança andrógina suscita novos caminhos e possibilidades de análise sobre como os indivíduos andróginos percebem e exercem sua liderança e proporciona novas perspectivas para o entendimento dos constructos sociais do papel de gênero e das barreiras que impedem a ascensão profissional das mulheres.





quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O eu no nós: reconhecimento como força motriz de grupos

Axel Honneth
Sociologias, Porto Alegre, ano 15, no 33, mai./ago. 2013, p. 56-80

Resumo: Neste texto, analisam-se o conceito de grupo e suas manifestações, buscando contrapor às perspectivas categoriais da psicanálise e da teoria sociológica, consideradas incompletas em razão de estilizações unilaterais que impedem uma conexão conceitual básica entre as duas disciplinas, uma terminologia que, de partida, seja neutra frente às alternativas positiva e negativa de inserção do eu no grupo. Para tanto, o grupo, independentemente de seu tamanho e tipo, inicialmente deve ser compreendido como um mecanismo social fundado na necessidade ou no interesse psíquico do indivíduo, porque o auxilia na estabilidade e ampliação pessoais. O artigo descreve, em linhas gerais, o arcabouço categorial unificado, recorrendo ao conceito do reconhecimento. Num primeiro passo, apresenta-se brevemente a premissa de que a dependência individual de experiências de reconhecimento social explica por que o sujeito individualmente aspira a ser membro em diferentes modelos de agrupamentos sociais. Num segundo passo, tenta-se corrigir a imagem idealizada de grupo anteriormente introduzida, ao tematizar as tendências regressivas que frequentemente codeterminam a vivência no grupo. Por fim, segue-se a ideia de retirar gradativamente aquelas idealizações que estavam na base da premissa inicial de uma diluição harmônica do eu no nós do grupo.

texto completo

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A produção discursiva e normativa em torno do transexualismo: do verdadeiro sexo ao verdadeiro gênero

Rafaela Cyrino
Crítica e Sociedade
Revista de Cultura Política

Resumo: Este artigo realiza uma incursão histórico-epistemológica no aparato discursivo das primeiras formulações do conceito de gênero, com o objetivo de analisar as mudanças que se processaram na maneira de pensar e conceituar a diferença sexual no meio médico norte-americano entre os anos 1950/1970. Através de uma análise de conteúdo, centrada no discurso de médicos e na autobiografia de indivíduos transexuais, discute-se como a formulação do conceito de gênero representou uma ruptura com o determinismo biológico na explicação do nosso comportamento sexual, contribuindo com o processo de legitimação das cirurgias de mudança de sexo. Entretanto, este artigo mostra que, se o conceito de gênero contribuiu para o enfraquecimento da importância da biologia, seus fundamentos teórico-empíricos permaneceram atribuindo uma importância fundamental à diferença sexual. Deste modo, propõe-se que, através da teoria do gênero, houve uma mudança na tônica do discurso sobre a diferença sexual: do verdadeiro sexo descrito por Foucault (2001), supostamente cravado na verdade da biologia a ser decifrada por médicos especialistas, ao verdadeiro gênero, experiência subjetiva, verdade íntima que pertence ao individuo e que deve, de acordo com o discurso médico emergente, servir como parâmetro fundamental para confirmar ou até mesmo refutar o determinismo biológico.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Cooperar ou desertar

Tiago José Benedito Eugênio

Boas conversas surgem em uma mesa de bar ou diante das estantes de livros. É comum no final de um happy hour as pessoas dividirem as despesas e, mais comum ainda, alguém não ter dinheiro para ajudar a pagar a conta. Nessa hora, sempre existe um amigo que coopera e empresta o dinheiro. "Prometo que pago você amanhã, obrigado" é a resposta mais corriqueira para tal ato de camaradagem. Doce ilusão, o tempo passa e o devedor nunca mais toca no assunto, enquanto que quem emprestou nunca esquece. Será que em outra situação, no futuro, este devedor receberá ajuda do seu amigo?

Ou, então: um amigo chega à sua casa. Diante dos seus livros, você faz uma apresentação dos assuntos que está estudando e trabalhando. Após alguns comentários, seu amigo avista um livro que lhe chama atenção. Depois de folhear e elogiar o livro, ele o pede emprestado e promete que devolverá, assim que terminar de lê-lo. Os meses se passam e o livro emprestado não é devolvido. Você comunica o seu amigo, envia um e-mail dizendo que está precisando da obra. Mas ele diz que sempre se esquece de devolvê-lo ou, então, simplesmente ignora seu pedido e não responde. O que sente o indivíduo que gentilmente emprestou o livro? Ele emprestará outro livro para seu amigo?

Há uma infinidade de situações como essas, afinal, a cooperação e a trapaça estão no centro do comportamento social humano. Mas, afinal, por que o ser humano apresenta essa bipolaridade? Por que em algumas situações nos comportamos como mocinho, em outras, somos o vilão da história? Até meados do século XX, a sociedade e sua ordem eram compreendidas como uma entidade orgânica e coesa, e seus cidadãos, meras partes. Nesta vertente, os indivíduos eram negligenciados e a mente que importava era aquela pertencente ao grupo. A negação da autonomia da cultura em relação às mentes individuais também foi articulada pelo fundador da sociologia, Emile Durkheim (1858-1917), que escreveu: "A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais que o precederam, e não entre os estados de consciência individual" (Pinker, 2004, p. 46). Assim, justificavam-se as diferenças entre os grupos étnicos exclusivamente com base nas diferenças culturais. Logo, a partir desta perspectiva, o comportamento social do ser humano não poderia ser explicado por mecanismos e propriedades inatas da mente.

Até meados do século XX, a sociedade e sua ordem eram compreendidas como uma entidade orgânica e coesa

Perspectiva evolucionista

Nas últimas décadas, contudo, tem havido uma renovação fascinante da literatura no que concerne à origem e à evolução desse sistema de normas nas sociedades. Uma série de evidências aponta que o comportamento humano parece também ser um produto de forças e propósitos evolutivos, isto é, influenciado pelas predisposições biológicas moldadas durante a evolução da espécie para lidar com as demandas ecológicas impostas, sobretudo, aos nossos ancestrais. Interpretações modernas sobre a evolução da ordem social e cooperação têm-se centrado no estudo comparativo com outras espécies e na evolução de estratégias reprodutivas dos indivíduos, as quais dependem do tamanho, estruturação dos grupos e dos padrões de interação entre os integrantes do grupo. Essa perspectiva vislumbra a ordem social como um subproduto da evolução das estratégias individuais engendradas por um longo processo histórico-evolutivo.

Nesse sentido, as normas sociais, sob esta nova óptica, são vistas, portanto, como um produto e não causa das ações dos indivíduos. O cerne desta perspectiva encontra-se nas ideias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies. Para Darwin (1859/1996), o ambiente seleciona os indivíduos que detêm características que trazem mais benefícios do que custos - concedendo-lhes mais chances de sobrevivência e de reprodução -, e isso implica uma seleção natural, a qual é responsável pela modificação das espécies ao longo do tempo e do espaço. A seleção natural é, dessa forma, o processo através do qual variantes favorecidas em uma população sobrevivem e se reproduzem mais. Nesse processo, o ambiente seleciona os indivíduos - passando esse conjunto de traços para as gerações seguintes (Cronin, 1995).

Do abstrato ao lógico
Imagens: ShutterStock
Para testar suas hipóteses, primeiramente, os pesquisadores aplicaram em estudantes universitários a tarefa de seleção de Wason. Esse teste consiste na apresentação de quatro cartões mostrando, por exemplo, os caracteres "A", "B", "3" e "4"; é explicado que cada carta possui, em uma face, uma letra e, na outra, um número, e a regra condicional é: "Se uma carta tem uma vogal de um lado, tem um número par do outro. Nesse caso, o participante deve dizer quais cartas ele deve virar, no mínimo, para confirmar a regra". As primeiras constatações foram de que em relações que envolviam o raciocínio lógico e abstrato a maioria dos estudantes não acertava na escolha dos cartões. Entretanto, o desempenho dos estudantes mudava quando a hipótese condicional se referia a uma regra social não abstrata. Nessa versão, foi solicitado aos estudantes que se imaginassem como um barman, o qual deveria cumprir uma lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de 20 anos. Dessa forma, as cartas representavam os fregueses: "bebendo cerveja", "bebendo refrigerante" (que equivaleriam às letras "A" e "B", respectivamente), com "16 anos" e com "22 anos" - que equivaleriam as "3" e "4", respectivamente. Esse experimento permitiu aos pesquisadores concluírem que, na espécie humana, teriam evoluído adaptações específicas que tornariam o homem mais habilidoso para detectar possíveis trapaças no seu meio social a partir de contratos sociais e não abstratos.

Se aceitarmos os pressupostos da teoria da evolução, os quais alegam que características, tais como órgãos e dentes, são produtos da seleção natural, por que não admitir que a nossa mente também seja um produto do processo evolutivo? Esta é a proposta central da Psicologia Evolucionista, que se utiliza de conceitos e da lógica darwinista para compreender como as pressões ambientais moldaram o cérebro humano ao longo do tempo. Nesse sentido, a perspectiva evolucionista amplia o estudo do comportamento humano para além da análise física e de suas causas próximas - mecanismos fisiológicos - e passa a considerar e investigar também os mecanismos psicológicos evoluídos. Para tanto, se debruça sobre o seu surgimento na história da vida, adotando o método comparativo com outras espécies, entre indivíduos e entre os sexos, e procura compreender a sua função ou o valor para a sobrevivência e reprodução do indivíduo.

● A mente e o contratualismo ●
A Teoria da Mente é proposta inicialmente pelos primatologistas Premack e Wooddruff em 1978 e é definida, em Psicologia, como a capacidade para imputar estados mentais aos outros e a si próprio. Nesse sentido, ela é essencial quer para a autorreflexão como para a coordenação da ação social. A Teoria do Contrato Social ou contratualismo é uma teoria sobre o contrato social que se difundiu entre os séculos XVI e XVIII e que tenta explicar os caminhos que levam as pessoas a formar Estados e/ou manter a ordem social. Thomas Hobbes (1651), John Locke (1689) e Jean-Jacques Rousseau (1762) são os mais famosos filósofos do contratualismo.

Sob o ponto de vista evolutivo, o ato de cooperar implica em custos para o executor e em benefícios gerados para quem recebe a ajuda, enquanto a trapaça é compreendida quando alguém não retribui um favor ou àqueles que retribuem, mas oferecem muito menos do que recebem; ou, ainda, quando alguém usufrui de um benefício sem pagar os devidos custos. É dessa forma que podemos compreender a cooperação e a trapaça como extremos de um continum que envolve as relações e os jogos sociais. Desta forma, os mecanismos psicológicos existentes atualmente teriam evoluído para resolver problemas vivenciados por nossos ancestrais caçadores- coletores há milhões de anos e são esses mecanismos que, modelados pelo ambiente, subjazem o comportamento humano.

Partindo do pressuposto que somos seres essencialmente sociais, é esperado que, durante a evolução da espécie humana, tenha evoluído um sistema de normas de convivência a fim de regular as interações assim como as trocas sociais entre os indivíduos. Assim, mecanismos emocionais e cognitivos, tais como detecção de trapaça, senso de justiça, vigilância; teoria da mente e reputação, teriam originado e evoluído para regular nossa natureza humana social benevolente e egocêntrica.

Teoria do Contrato Social

Os pesquisadores John Tooby e Leda Cosmides, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, propuseram a Teoria do Contrato Social para explicar a evolução dos mecanismos reguladores das trocas sociais e da cooperação na espécie humana. Para tanto, levantaram a hipótese da existência de adaptações cognitivas específicas para regular as trocas sociais, entre elas: capacidade de identificar e reconhecer diferentes indivíduos; relembrar diversos aspectos históricos de interações com os indivíduos; detectar possíveis sujeitos violadores das regras sociais na população; expressar e compreender os desejos e as necessidades dos outros e representar os custos e benefícios nas trocas sociais dos mais diversos itens (veja quadro Do abstrato ao lógico).

● Teoria dos jogos●
É uma teoria matemática utilizada para o estudo da tomada de decisão e interação de dois ou mais indivíduos. Para isso, faz uso de diferentes jogos para compreender as estratégias dos indivíduos para alcançar o melhor desempenho, maximizando os seus ganhos. A aplicação dessa teoria à Psicologia tem sido importante para o estudo empírico do comportamento social, sobretudo da cooperação em humanos.

Após os estudos com o teste de seleção de Wason, novas questões foram feitas pelos psicólogos evolucionistas. Por exemplo, o que afeta a cooperação em um grupo? Quais são os mecanismos psicológicos e emocionais evoluídos para coibir a trapaça? Para responder a essas questões, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, estudaram o comportamento moral de crianças por meio de um jogo, conhecido como bens públicos - um dos famosos modelos propostos pela Teoria dos Jogos. Nesse jogo, cada criança recebia três chocolates e decidia quantos ela doaria para um fundo comum. Para cada chocolate doado era acrescentado mais dois no bem comum e, no final do jogo, este era dividido igualmente entre todos os indivíduos. As crianças foram separadas em grupos pequenos e grandes. Foi observado que nos grupos menores a generosidade foi maior, pois os indivíduos monitoravam o comportamento dos colegas. Entretanto, nos grupos maiores, em que não é fácil perceber quem doa, a cooperação caiu rapidamente, mostrando que o egoísmo prevalece quando o indivíduo não percebe um ambiente propício para a cooperação (Alencar, Siqueira e Yamamoto, 2008).

Uma série de evidências aponta que o comportamento humano parece ser um produto de forças e propósitos evolutivos

O estudo feito em campo reproduz de forma elegante um descompasso temporal, uma vez que no ambiente ancestral da espécie humana a organização social provavelmente era igualitária, sem privilégios para alguns membros e nem ocorrência de trapaceiros. O tamanho reduzido do grupo proporcionava uma fiscalização mais rigorosa do comportamento de cada um (Broom, 2006). Nesse sentido, a fiscalização era importante para coibir os trapaceiros; aqueles indivíduos que usufruem do benefício, mas não pagam o custo devido pelo mesmo (Trivers, 1971). Com o tempo, entretanto, os grupos foram crescendo e, por consequência, a identificação dos trapaceiros se tornou uma tarefa mais difícil (veja quadro Vigilância).

A capacidade de expressar e compreender os desejos e as necessidades dos outros é outra adaptação cognitiva específica para regular as trocas sociais. Premack e Woodruff (1978) estudaram o comportamento de chimpanzés que, assim como os humanos, pensam em seus coespecíficos. Assim, cunharam a expressão "Teoria da Mente", que significa a capacidade para imputar estados mentais aos outros e a si próprio. Neste sentido, ela é essencial quer para a autorreflexão como para a coordenação da ação social.

Com humanos, é empregado o clássico experimento "Problema da Sally-Anne", no qual é exibida uma cena para os sujeitos. Primeiramente, Sally entra, guarda uma bola em um local, por exemplo, atrás do sofá, e sai da cena. Entra em cena a Anne, que retira a bola de trás do sofá, a coloca em outro local, por exemplo, dentro de uma caixa, e sai. Sally retorna em busca da bola - nesse ponto a cena é interrompida. Em seguida, pergunta-se para o sujeito: "Onde Sally irá procurar pela bola?"

Vigilância

Pistas sutis de vigilância parecem também influenciar o comportamento dos indivíduos. Rigdon e colaboradores (2009) solicitaram para alguns sujeitos compartilharem um recurso de forma arbitrária com outros, que deveriam aceitar de forma passiva a oferta. Devido a esse caráter, esta situação é conhecida na literatura como jogo do ditador. Os pesquisadores, no momento da tomada de decisão, entregaram para os "ditadores" um cartão com três pontos - dispostos como uma face (figura a). Em outra condição, os ditadores viam o mesmo estímulo, no entanto, rotacionado 180º (figura b). Observou-se que os participantes ditadores alocaram mais recurso para os receptores quando eram submetidos à condição de vigilância. Os pontos distribuídos como se fosse uma face parecem ativar a área fusiforme do cérebro - responsável pelo reconhecimento de faces - sendo, portanto, suficiente para modificar o comportamento social dos ditadores.

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a = Pontos dispostos como uma face (condição de vigilância). b = Pontos rotacionados 180o (condição neutra). Adaptado de Rigdon et al., (2009)

Recurso cognitivo

Os pesquisadores observaram que, até três anos de idade, as crianças apresentam dificuldades de entender que diferentes pessoas podem ter representações distintas de uma mesma realidade. Nesse caso, essas crianças respondem, em geral, que Sally irá procurar a bola dentro da caixa. Todavia, quando a mesma pergunta era feita para crianças com mais de seis anos, quase todas as crianças respondiam corretamente, que Sally iria procurar no local onde tinha deixado a bola, isto é, atrás do sofá. No que se refere à idade crítica no desenvolvimento da "Teoria da Mente", há divergências entre os pesquisadores (Ottoni, Rodriguez & Barreto, 2006).

No entanto, é inegável que, com tal recurso cognitivo, o ser humano pôde, por exemplo, planejar estratégias e tomar decisões críticas numa situação social. Além disso, tornou-se possível ao Homo sapiens prever que ideia os outros estariam formando a seu respeito, bem como tornou mais sofisticadas as relações e a comunicação intra e intergrupo, habilitando-o a entender artifícios da expressão humana como a ironia, a dissimulação, o sofrimento, o interesse e a falsidade.

Pode ser verdade que nossa moralidade é, em última análise, um meio pelo qual os indivíduos induzem o moralismo no próximo para satisfazer seus próprios interesses (Cartwright, 2000) e que, por mais niilista que seja isso, somos hospedeiros de genes egoístas usurpadores, cujo objetivo maior é sobreviver e se reproduzir. Mas assumir isso não nos inviabiliza o planejamento e a criação de contextos que burlem os desígnios da nossa essência genética e egocêntrica. Somos seres humanos imbuídos em um mundo social: viemos ao mundo equipados com predisposições para aprender a cooperar, a distinguir o justo e virtuoso do traiçoeiro, a praticar e prezar pela lealdade, a conquistar boa reputação diante dos nossos semelhantes, intercambiar produtos e informações, a dividir o trabalho e a modelar sua individualidade e vínculos sociais a partir das reações do outro. Nisso, somos uma espécie única.

Referências
Alencar, A. I., Siqueira, J. O, & Yamamoto, M. E. (2008). "Does group size matter? Cheating and cooperation in Brazilian school children". Evolution and human behavior, 29, 42-48. Broom, D. M. (2006). "The evolution of morality". Applied Animal Behavioral Science, 100, 20-28. Cartwright, J. (2000). Evolution and human behavior. London: MacMillan Press. Cosmides, L. & Tooby, J. (1992). "Cognitive adaptations for social exchange". In: H. J. Barkow, L. Cosmides & J. Tooby. The adapted mind: Evolutionary psychology and the generation of culture (p. 163-228). New York: Oxford University Press. Cronin, H. (1995). A formiga e o pavão: altruísmo e seleção sexual de Darwin até hoje. Campinas: Papirus. Darwin, C. (1859/1996). The origin of species. Oxford: Oxford University Press. Hamlin, J. K., Wynn, K., & Bloom, P. (2007). "Social evaluation by preverbal infants". Nature, 450, 557-559. Nowak, M. A., Page, K. M., & Sigmund, K. (2000). "Fairness versus reason in the ultimatum game". Science, 289, 1773-1775. Pinker, S. (2004). Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras. Ottoni, E. B., Rodriguez, C. F. & Barreto, J. C. (2006). "Teoria da Mente e compreensão da representação gráfica de conteúdos mentais (balões de pensamento)". Interação em Psicologia, 10, 225-234. Rigdon, M., Ishii, K., Watabe, M. & Kitayama, S. (2009). "Minimal social cues in the dictator game". Journal of Economic Psychology, 30, 358-367. Trivers, R. (1971). "The evolution of reciprocal altruism". Quarterly Review of Biology, 46, 35-57.


Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/73/artigo244856-1.asp. Acesso em 25 ago 2013.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Homofobia e homofobia interiorizada: produções subjetivas de controle heteronormativo?

Márcio Alessandro Neman do Nascimento
Athenea Digital - núm. 17: 227-239 (marzo 2010)

Resumo: O artigo problematizará, teoricamente, algumas questões emblemáticas que circunscrevem as homossexualidades na história, partindo de um posicionamento teórico-metodológico marcado pelos estudos culturais e de gênero realizados por autores pós-estruturalistas. Na atualidade, há muitos avanços e conquistas, no âmbito sócio-político, relacionadas à diversidade sexual. Entretanto, essa mesma visibilidade tem produzido disparadores para práticas sociais violentas demonstradas em crimes e discursos de ódio, intolerância e interdições veladas contra homossexuais. Assim, pretende-se apresentar a construção social da homofobia e, subseqüentemente, da homofobia interiorizada, uma vez que seus pilares formadores se sustentam por processos de subjetivação heteronormativa pulverizados em contextos sociais cotidianos.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Percepções sobre a assexualidade por pessoas não assexuais

Elisabete Regina Baptista de Oliveira
7 de junho de 2012

O artigo sobre o qual falaremos hoje é um dos poucos artigos acadêmicos sobre assexualidade escritos em espanhol. De autoria do Professor Luis Álvarez Munárriz, catedrático de Antropologia Social da Universidade de Murcia, na Espanha, o trabalho apresenta reflexões sobre assexualidade, bem como alguns resultados de entrevistas feitas por ele com o objetivo de conhecer um pouco mais sobre o que as pessoas pensam sobre esse tema.

Fiz um recorte dos temas do artigo para focar somente na pesquisa empírica feita pelo professor, bem como seus resultados e conclusões. Nesta pesquisa empírica, Munárriz conversou com diversos entrevistados, na universidade na qual leciona, para conhecer a percepção que estes tinham sobre a assexualidade, ou seja, como veem falta de desejo sexual na perspectiva da orientação sexual. No restante do artigo - que não será abordado nesta postagem - o antropólogo analisa algumas falas de assexuais em postagens na internet, analisado-as a partir de alguns referenciais teóricos da antropologia.

Primeiramente, Munárriz entrevistou, na própria universidade, 12 pessoas que não se consideram assexuais, com o objetivo de saber sua opinião sobre o conceito de assexualidade. Nesses contatos, o pesquisador deparou-se com diferentes visões, entre elas, pessoas incrédulas, que não acreditam que uma pessoa normal não sinta desejo sexual ou que não tenha fantasias sexuais. Uma informante declarou: “Não consigo imaginar uma jovem de 18 anos que seja assexual.”

Outro entrevistado disse: “Isso é contraditório porque todas as pessoas têm desejo sexual, isso é impossível!” Outro declarou: “Se a pessoa não faz sexo, fica ruim da cabeça!” Outro perguntou ao entrevistador, em tom irônico: “E você, é assexual? Tudo bem, ser assexual.” Uma entrevistada mostrou-se indiferente à pergunta e respondeu: “OK, e daí?”, afirmando, em seguida, que ignorava que existisse esse tipo de pessoa, mas que não era surpresa e que não tinha nenhum interesse ou preocupação com esse assunto. Um entrevistado homossexual respondeu: “Todas as condutas deveriam ser consideradas normais, eu acho que é positivo que os assexuais se sintam atraídos por outras pessoas, mas não tenham a necessidade de ter relação sexual.”

Nesta primeira aproximação, Munárriz constatou o enorme desconhecimento e estranhamento sobre a assexualidade que predomina sobre a população entrevistada, mas também uma tentativa de compreensão da assexualidade feita por um entrevistado pertencente a uma minoria sexual. Esse desconhecimento também foi constatado nos três grupos de discussão que ele realizou com estudantes universitários, com o mesmo objetivo, ou seja, saber o que pensam sobre o conceito de assexualidade. Um deles declarou:

A assexualidade é algo absurdo, impossível, já que a sexualidade está no ser humano. Só se a pessoa nasceu com um defeito genético, ou houve algum problema que inibiu seu desejo sexual, caso contrário é totalmente impossível a existência dessa orientação sexual. Eu acho que assexuais não existem.

Essas primeiras entrevistas serviram de base para que o antropólogo elaborasse um questionário simples, que tinha três objetivos: 1) calcular o percentual aproximado de assexuais entre os entrevistados; 2) saber o grau de conhecimento dessas pessoas sobre a assexualidade; e 3) obter uma definição aproximada de pessoa assexual.

Com esses objetivos, o estudioso aplicou o questionário a alunos de diferentes faculdades e campus da Universidade de Murcia. Recebeu 145 questionários respondidos, sendo 79 de mulheres e 66 de homens.

Uma das perguntas feitas pelo pesquisador era sobre a orientação sexual dos respondentes, incluindo as alternativas heterossexual, homossexual, bissexual e assexual. O objetivo dessa pergunta era saber se havia pessoas que se identificavam como assexuais entre os entrevistados. O resultado é que nenhum dos 145 respondentes se identificou como assexual em sentido estrito. Somente um respondente selecionou duas alternativas ao mesmo tempo: heterossexual e assexual. Todos os outros respondentes escolheram uma das outras três alternativas: heterossexual, ou homossexual ou bissexual. Esse resultado pode indicar o total desconhecimento da assexualidade como orientação sexual, ao menos como possibilidade de identificação.

Outra pergunta do questionário dizia respeito ao grau de conhecimento dos respondentes sobre a assexualidade. O resultado comprovou que existe um enorme desconhecimento sobre as pessoas assexuais, podendo isso ter reflexo nos resultados da primeira pergunta. A questão seguinte indagava sobre o grau de interesse dos respondentes pela atividade sexual. Como esperado, considerando que os respondentes eram todos jovens, a maioria revela ter muito interesse pela atividade sexual.

Em uma questão, Munárriz abordou a definição de assexualidade, a partir de duas perspectivas diferentes: a do desejo sexual e da resposta sexual, entendendo o desejo sexual como uma experiência subjetiva dos indivíduos e a resposta sexual como uma resposta biológica do corpo a um estímulo, também conhecida como libido. A esta pergunta, todos os entrevistados afirmaram possuir os dois, desejo e resposta. É altamente significativa a coerência que aparece nas respostas: todos os que têm desejo sexual também afirmam experimentar resposta do corpo a estímulos interpretados como sexuais. O pesquisador não fez nenhuma pergunta em relação à existência ou inexistência de atração sexual – que seria o direcionamento do desejo para outra pessoa - normalmente definida por muitos assexuais como característica de sua orientação sexual. Não está claro se ele compreende desejo e atração como sinônimos. Também não faz indagações sobre existência ou não de orientação afetiva, que também constitui uma parte importante da identidade assexual.

A última pergunta era aberta e indagava a opinião dos respondentes sobre a assexualidade. Um dos entrevistados respondeu da seguinte forma:

Acho que a sexualidade é parte fundamental do ser humano, é algo natural e permite a perpetuação da espécie. A assexualidade pode ter a ver com o medo, talvez o medo do desconhecido, medo dos riscos do sexo.

Em sua pesquisa nas comunidades assexuais na internet, Munárriz revela que não captou esse medo descrito por este respondente nos discursos dos assexuais, muito pelo contrário, os assexuais lhe pareceram bastante confiantes com a identificação como assexual. De qualquer modo, o resultado de sua pesquisa empírica mostra o quanto a assexualidade é desconhecida até mesmo por estudantes universitários, que têm acesso a tecnologias de informação e comunicação, que dirá da população geral que pode não ter esse acesso? E que implicações pode ter esse desconhecimento nas vidas daqueles e daquelas que se identificam como assexuais?

O pesquisador não fornece respostas claras aos objetivos formulados por ele na realização das entrevistas. Munárriz reconhece, no final do texto, as dificuldades em se reconhecer a assexualidade como uma orientação sexual, pois este reconhecimento significaria um grande abalo em tudo o que a ciência e a cultura construíram historicamente sobre sexualidade. Mas seu texto revela uma resistência muito grande por parte do pesquisador em perceber a assexualidade na perspectiva da orientação sexual. Para ele, não existe base suficiente para se aceitar a existência de uma nova identidade sexual e muito menos base para que a assexualidade possa se constituir no motor de uma verdadeira revolução sexual.

Texto comentado
Munárriz, L. A. La identidad “asexual”. Gazeta de Antropologia, no. 26/2, 2010, Articulo 40

Matéria intitulada Trajetória de jovens assexuais é tema de doutorado na USP, que noticia pesquisa, feita pela Agência Universitária de Notícias, da USP:http://www.usp.br/aun/antigo/www/_reeng/materia.php?cod_materia=1205211


Disponível em http://assexualidades.blogspot.com.br/2012/06/percepcoes-sobre-assexualidade-por.html. Acesso em 09 jul 2013.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Múltiplas inteligências

Daniele Fanelli
agosto de 2007

O ser humano tem muitos tipos de inteligência. A hipótese do psicólogo Howard Gardner, formulada em 1982, o tornou conhecido mundialmente. Passados 25 anos, ele sustenta haver, além das reconhecidas habilidades lingüística e lógico-matemática, outras seis formas de inteligência: espacial (mais presente em navegantes e engenheiros); corporal-cinestésica (desenvolvida em atletas ou dançarinos); interpessoal (representada pela capacidade de compreensão dos sentimentos do outro); intrapessoal (expressa pelo autoconhecimento); naturalística (referente à relação da pessoa com a natureza) e musical. Professor da Universidade Harvard, Gardner é considerado um dos “demolidores” do conceito de quociente de inteligência (QI). Suas teorias, entretanto, têm pequena aceitação entre neurobiólogos. Resenha publicada recentemente na revista Educational Psychologist menciona a insuficiência de comprovação empírica. A possibilidade de medir a inteligência pela aplicação de testes simples parece ser um critério para validação das hipóteses.

Artigo publicado em 2004 pela revista Nature Neuroscience relacionava o desenvolvimento de competências a fatores socioeconômicos e a aspectos biológicos como dimensões do cérebro, duração da memória de curto prazo, velocidade de transmissão sináptica e metabolismo neuronal. No mesmo ano foi observada correlação entre o QI de bebês e a velocidade de crescimento do córtex cerebral. Tais descobertas não parecem perturbar o prolífico Gardner, que tem sua teoria aplicada com eficácia em escolas de todo o mundo. Nesta entrevista, ele declara-se mais interessado em estimular virtudes e talentos humanos do que em medi-los.

Mente&Cérebro: O senhor poderia resumir sua teoria da inteligência múltipla?
Howard Gardner: A visão tradicional a respeito da inteligência, que prevalece há centenas de anos, sustenta que em nosso cérebro existe um único computador, de capacidade muito geral. Quando funciona bem, a pessoa é inteligente e capaz de destacar-se em qualquer atividade. Se o desempenho for apenas razoável, o portador consegue resultado satisfatório em diversas circunstâncias. Mas se funcionar mal, o dono desse equipamento é um tolo, incapaz de estabelecer relações coerentes. Discordo disso tudo. Creio que a relação cérebro-mente pode ser descrita como um conjunto de oito ou nove sistemas distintos de elaborações fundamentais. Um deles pode atuar muito bem enquanto outro apresenta rendimento mediano e um terceiro funciona mal. Qualquer observador admitiria que na patologia há fenômenos que sustentam minha hipótese. Existem pessoas dotadas de grande talento artístico ou com habilidade para números e xadrez que, no entanto, são incapazes de compreender os outros e manter relacionamentos. A medicina oficial as considera casos patológicos, mas eu sustento que esses fenômenos são normais.

M&C: Vejamos um exemplo: como o senhor avalia a sua mente?
Gardner: Com base na teoria da inteligência múltipla eu sou, certamente, do tipo lingüístico-musical. Minha lógica é boa, mas jamais fará de mim um matemático. Fisicamente não sou nada especial e sou medíocre na inteligência espacial, mas me viro bem com um mapa. A inteligência interpessoal, diferentemente de outras, pode ser melhorada. Assim, espero continuar aprimorando minha capacidade de compreender outros.

M&C:Uma das principais objeções à sua teoria é a impossibilidade de medir as oito formas de inteligência.
Gardner: Se eu estivesse de fora observando meu trabalho, é provável que dissesse a mesma coisa. Trata-se de uma crítica bem razoável. Mas estou certo de que, se minhas idéias forem um dia levadas a sério, algum pesquisador desenvolverá instrumentos capazes de medir as várias inteligências. Mas para mim isso jamais foi uma prioridade. Não me dediquei ao tema. Robert J. Sternberg [pai da teoria “triárquica”, segundo a qual a inteligência se manifesta em três modalidades distintas: analítica, criativa e prática] tentou fazê-lo no âmbito de sua pesquisa, mas os resultados não me pareceram muito convincentes. Posso deduzir que ou suas teorias são equivocadas, ou medir as diversas inteligências humanas é tarefa mais complicada do que parece.

M&C: Mas a psicometria clássica faz medições. As pontuações que a pessoa obtém nos diversos testes verbais e lógicos estão correlacionadas, o que sugere a existência de uma inteligência “geral”. O QI está vinculado a diversos parâmetros biológicos. O que o senhor pensa sobre isso?
Gardner: Levo a sério essa questão e, se tivesse de reescrever meu livro sobre a inteligência múltipla, trataria mais do tema. Mas há fenômenos que esses estudos não explicam, em particular as razões que nos tornam tão diferentes uns dos outros. Um cientista pode passar a vida tentando acumular provas da existência de uma inteligência geral, mostrando como esta se correlaciona a este ou aquele fator; ou pode tentar explicar por que as pessoas têm habilidades tão diversas, quais as causas dessas diferenças e a que servem.

M&C: Mas as duas coisas não se contradizem. Podemos fazer uma analogia com os músculos do corpo, que se desenvolvem de forma desigual em cada pessoa. Isso não impede que algumas pessoas possuam – graças à combinação de genes, alimentação e exercícios físicos – estrutura muscular bem mais desenvolvida e potente que outras. Nem todos podem se tornar um Schwarzenegger. O que vale para os músculos não poderia valer para os neurônios?
Gardner: Tenho a mente aberta em relação à questão. Caso eu viva mais 30 ou 40 anos e a ciência identifique uma propriedade biológica fundamental – por exemplo, a velocidade de transmissão nervosa ou a plasticidade das conexões entre os neurônios – que explique uma parte maior ou menor das diferenças de inteligência, estarei pronto a rever meu pensamento. Mas isso não esclarece as razões para alguém ser mais capaz em certos setores que em outros. A resposta pode ser simplesmente que a vida humana não é infinita, e, portanto, não podemos ser excelentes em tudo. Penso que a explicação mais plausível esteja na predisposição genética e nas experiências infantis capazes de “estimular” e potencializar um dos computadores mentais de que dispomos. Um gênio poliédrico como Leonardo da Vinci é exceção, e não regra. E devemos explicar ainda a origem das diferenças nos perfis e talentos.

M&C: O senhor usa os termos “inteligência” e “talento” como sinônimos. Mas, para a maioria das pessoas, esses termos se referem a conceitos bem distintos.
Gardner: De fato. Mas, ao privilegiar o termo “inteligências” em vez de “talentos” ou “habilidades”, fiz um movimento retórico importante. Todos reconhecem a existência de diferentes talentos e habilidades humanas, e provavelmente eu não estaria aqui sendo entrevistado se tivesse usado essas palavras em vez de “inteligências”.

M&C: O que o senhor entende por inteligência?
Gardner: O ponto é que a definição de inteligência não é óbvia. Trata-se de algo debatido por estudiosos e leigos. Segundo minha análise, os pesquisadores orientados pela cultura escolástica se concentraram nas habilidades verbais e lógicas, denominando as “inteligência”. É uma questão de retórica e lingüística. Não é “a” resposta correta. As pessoas com bom desempenho em línguas e lógica são, em geral, bons alunos, e nós as classificamos inteligentes. Nada tenho contra isso, desde que se fale em “inteligência escolástica”. Se, porém, sairmos da escola e estudarmos a inteligência de arquitetos, bailarinos ou comerciantes, descobriremos que podem ser excelentes naquilo que fazem, independentemente do desempenho escolar. Se os homens de negócio tivessem inventado o QI, a avaliação mediria, provavelmente, atitude em relação a risco, iniciativa e capacidade de vender. Nenhuma dessas coisas é medida pelos testes clássicos de inteligência.

M&C: Mas isso não ameaça relativizar o conceito de inteligência, esvaziando-o de seu significado intuitivo e científico?
Gardner: A ciência não deve, necessariamente, reforçar o senso comum, muitas vezes equivocado. Minhas pesquisas, além disso, atingem o campo das ciências sociais, diferentes da física ou da biologia, justamente porque devem sempre elucidar os próprios conceitos, propondo definições novas e mais adequadas. O filósofo Bertrand Russell disse certa vez que as idéias de todos os grandes pensadores podem ser resumidas em uma ou duas frases: o que os torna notáveis é a estrutura argumentativa que criaram para sustentar as afirmações e defendê-las das críticas. Se eu transmitir às pessoas apenas o conceito de que, além da escolástica, existem outras formas de inteligência, já será um enorme progresso. Creio que já alcancei algo nesse sentido. Mas Daniel Goleman conseguiu ainda mais, pois seu conceito de “inteligência emocional” tem apelo intuitivo, aludindo às experiências do cotidiano, sobretudo no mundo do trabalho. O gerente de uma empresa pode ter a mente perfeitamente organizada e revelar-se um desastre para motivar funcionários. A diferença entre nossas pesquisas é que estabeleci oito critérios a serem atendidos por uma suposta inteligência.

M&C: Há poucos anos o senhor identificou a existência de uma oitava inteligência, a naturalística. Pensa em acrescentar outras?
Gardner: Escrevi bastante a respeito da possibilidade de uma inteligência moral. Até há pouco tempo era cético quanto a isso, mas mudei de idéia depois de algumas leituras, em particular o livro escrito pelos neurobiólogos Jean-Pierre Changeaux e Antonio Damásio. Avalio a possibilidade de uma inteligência existencial, mas o problema é saber se é diferente de qualquer outra capacidade filosófica. Se não for, poderá ser explicada pelas inteligências lingüística e lógica. As provas nesse sentido ainda não são conclusivas.

M&C:Haveria em nosso DNA genes que a seleção natural favoreceu, proporcionando assim a inteligência naturalística ou a existencial?
Gardner: Certamente. Há genes para a inteligência naturalística e, provavelmente, para todas as formas de inteligência que menciono. Creio, porém, que cada um desses tipos possui subcomponentes. Na inteligência lingüística, por exemplo, não haveria só um gene, mas centenas. Alguns deles podem predispor às línguas estrangeiras, outros, à poesia e assim por diante. Mas se dissesse em meus livros que há 500 inteligências, ninguém me levaria a sério.

M&C: Falemos de seu último livro, Five minds for the future. O senhor descreve com precisão as cinco mentes que devemos desenvolver para viver na futura sociedade: sintética, respeitosa, ética, disciplinada e criativa. Que mentes não deveríamos cultivar?
Gardner: Ninguém me havia feito esta pergunta até agora. No livro falo, sobretudo, do mau uso que se pode fazer de cada tipo de mente. Temo particularmente e penso que não deveríamos cultivar a mente fundamentalista, aquela determinada a não mudar de idéia sobre as coisas. É uma postura muito mais comum do que pensamos. Basta perguntar a alguém se recentemente mudou de idéia a respeito de algo. Provavelmente dirá que sim, mas se pedirmos um exemplo, terá dificuldade em responder. Sem perceber, nos aferramos facilmente a nossas convicções.

M&C: Permita-me uma provocação. O que o senhor diz é sem dúvida correto. Qualquer um concordaria que é bom ser mais disciplinado, respeitoso, razoável e assim por diante. Qual é, assim, a novidade da mensagem de seu livro?
Gardner: É uma pergunta legítima. Objetivamente, há aspectos da natureza humana sobre os quais é difícil hoje dizer algo de original. Esses temas, entretanto, devem ser reapresentados para cada nova geração de forma que lhe pareçam compreensíveis e sensatos. Creio ser importante fazer isso, sobretudo porque hoje se fala da mente quase que apenas do ponto de vista cognitivo. Em vez disso, eu falo de respeito, ética e educação em um sentido mais clássico. Não deveria valer apenas a nota tirada na prova de matemática, mas o tipo de ser humano que nos revelamos. Em segundo lugar, é verdade que o respeito sempre foi considerado qualidade desejável, mas na era da globalização, num mundo em que os povos podem facilmente se destruir, trata-se de algo indispensável.

M&C: Por qual de seus estudos o senhor gostaria de ser lembrado no futuro?
Gardner: Sou conhecido como “o fulano da bizarra idéia sobre inteligência”, mas gostaria que as pessoas recordassem a pesquisa sobre ética profissional que realizo há 15 anos e que se tornou um estudo sobre a confiança. Não sei se no futuro me darão crédito em relação a esse trabalho, mas não importa, pois estou totalmente convencido de que é indispensável. O domínio cultural exercido pelo mercado nos Estados Unidos está arruinando o que há de mais precioso no ser humano. Os americanos acabarão por destruir a si mesmos e provavelmente ao mundo, pois ignoram qualquer aspecto da vida que não seja comercializável. E porque pensam que, se fizerem uma prece todo domingo de manhã, terão indulto para arruinar qualquer habitante do planeta nos outros seis dias e meio. Estudando a ética e o sentimento de confiança, gostaria de chamar atenção para coisas antes importantes que hoje não têm mais valor. De fato, a pergunta que você me fez é equivocada. A correta seria: por que as coisas de que falo, que todos deveriam saber, foram esquecidas?

1. Ser isolável em casos de lesão cerebral;

2. Ser desenvolvida em autistas “eruditos”, prodígios ou indivíduos excepcionais;

3. Basear-se em uma (ou mais) série de operações identificáveis;

4. Atingir níveis diversos de competência identificáveis em todo indivíduo;

5. Ter história evolutiva plausível;

6. Ser apoiada por dados da psicologia experimental;

7. Ser apoiada por provas de psicometria;

8. Ser codificável em um sistema de símbolos.


Bibliografia:
Five minds for the future. Howard Gardner. Harvard Business School Press, 2006.

Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Howard Gardner. Artmed, 2000.

A matemática na educação infantil – A teoria das inteligências múltiplas na prática escolar. Kátia Smole. Artmed, 2000.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/multiplas_inteligencias.html. Acesso em 22 jun 2013.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A antropologia redescobre a sexualidade: um comentário teórico

Carole S. Vance
Physis – Revista de Saúde Coletiva
Volume 5, numero 1, 1995


Resumo: O ensaio de Alexander Goldenweiser, “Sexo e Sociedade Primitiva”, sugere que a sexualidade tem sido um foco importante para a investigação antropológica. Na verdade, essa é a reputação que os antropólogos conferiram a si mesmos: investigadores destemidos dos costumes e práticas sexuais em todo o mundo, rompendo tabus intelectuais erotofóbicos comuns em outras disciplinas mais tímidas. Na realidade, a relação da antropologia com o estudo da sexualidade é mais complexa e contraditória.


Antropologia, sexualidade, teoria, transcultural, construtivista, ambiguidades


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O que a política trans do Equador tem a nos ensinar?

Leandro Colling
Fazendo Gênero 9 - Diásporas, Diversidades, Deslocamentos

23 a 26 de agosto de 2010


Resumo: Pesquisadores que, como eu, utilizam a teoria queer em seus trabalhos, defendem a existência da fluidez das identidades e apontam os problemas das perspectivas essencialistas das políticas identitárias já devem ter, em algum momento, sido criticados com frases do tipo: “Mas como fazer política assim? Como lutar por direitos se não temos um sujeito para representar?  Isso tudo é muito bonito no discurso, mas é impossível na prática”. Alguns dos críticos vão ainda mais longe e chegam a co-responsabilizar os pesquisadores queer pela manutenção da violência sofrida pelos integrantes da comunidade LGBTTTIQ.


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Biblioteca 3: Corpo em obra: contribuições para a clínica psicanalítica do transexualismo



COSSI, Rafael Kalaf.  Corpo em obra: contribuições para a clínica psicanalítica do transexualismo. São Paulo: nVersos, 2011. 168 páginas.


Com abordagem inédita e referenciais teóricos, Rafael Kalaf Cossi questiona e atualiza o debate sobre a clínica psicanalítica do transexualismo, esvaziando seu caráter patologizante, desvencilhando-a da heteronormatividade e abrindo lugar para a legitimação de novas manifestações da sexualidade. Numa esfera maior, Corpo em Obra contribui para a minimização do preconceito sofrido pelos transexuais e inspira maior aceitação e respeito, alargado a possibilidade de estabeleceram laços sociais e assumirem novos espaços na sociedade. É indicado, portanto, não apenas para estudiosos da clínica psicanalítica e temas relacionados ao transexualismo, mas para o público em geral. 

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