Christie Aschwanden
21/08/2014
Quando cursava biologia, passei várias semanas de verão na
Costa Rica com um estudante mais velho num projeto de pesquisa nas profundezas
da floresta. Éramos somente nós dois e, ao chegar ao local, descobri que ele havia
reservado um quarto só para nós dois, com uma cama.
Atormentada, mas com medo de ser chamada de pudica ou
difícil, não criei caso. Puxei o dono do hotel de lado no dia seguinte e
solicitei uma cama. O problema terminou ali, e meu chefe estudante nunca tentou
nada fisicamente.
Pensando melhor, fico surpresa em como eu estava
despreparada para lidar com esse tipo de situação, principalmente aos 19 anos.
Indubitavelmente, minha faculdade tinha uma polícia contra assédio, mas tais
recursos estavam a milhares de quilômetros de distância. Eu estava sozinha num
país estrangeiro e nunca fora ensinada sobre meus direitos e recursos nessa
área.
Eu havia me esquecido dessa experiência de duas décadas
atrás até que li um relatório publicado em julho no periódico "PLOS
One". Kathryn Clancy, antropóloga da Universidade de Illinois, campus de
Urbana-Champaign, e três colegas usaram e-mail e a mídia social para convidar
cientistas a preencher um questionário online a respeito de suas experiências
com assédio e agressão durante pesquisas de campo; eles receberam 666
respostas, três quartos delas de mulheres, de 32 disciplinas, inclusive antropologia,
arqueologia, biologia e geologia.
Quase dois terços dos participantes disseram que sofreram
assédio sexual durante pesquisas de campo. Mais de 20% relataram agressões
sexuais. Estudantes ou alunos de pós-doutorado e mulheres mostravam maior
probabilidade de serem vítimas dos superiores. Poucos participantes afirmaram
que o local da pesquisa tinha um código de conduta ou política relativa a
assédio sexual, e das 78 pessoas que ousaram relatar incidentes, menos de 20%
se deram por satisfeitas com o resultado.
Os resultados são depressivamente parecidos aos dados que
colegas e eu coletamos neste ano com um questionário online enviado a
divulgadores científicos. Nós recebemos respostas de 502 redatores, a maioria
composta por mulheres, e apresentamos os resultados no Instituto de Tecnologia
de Massachusetts em junho, durante conferência sobre mulheres que trabalham com
jornalismo científico, com patrocínio da associação nacional que nos
representa.
Mais da metade das mulheres que responderam afirmaram que
não foram levadas a sério por causa do seu gênero, uma a cada três sofreu
percalços no progresso na carreira e praticamente metade sustentou não ter
recebido crédito por suas ideias. Quase metade disse ter sido paquerada ou ter
ouvido comentários sexuais, e uma em cada cinco sofreu contato físico
indesejado.
Em função da natureza voluntária, não se pode esperar que
nenhum dos relatórios nos conte a verdadeira incidência da discriminação sexual
e do assédio entre cientistas e jornalistas científicos. Ainda assim, o volume
de respostas nos passa um recado inconfundível: após quatro décadas desde a lei
que proibiu discriminação sexual na educação pública nos Estados Unidos e 23
anos após Anita Hill ter colocado o assédio sexual sob os holofotes, a
parcialidade e o assédio continuam a impedir o progresso feminino.
Clancy afirma que decidiu coletar os dados depois de ser
esmagada pelas respostas a uma postagem que publicou em seu blog na revista
"Scientific American" em 2012. Uma estudante, "Neblina",
recontou sua vida durante a faculdade:
"Meu corpo e minha sexualidade eram discutidos
abertamente pelo meu professor e os alunos", escreveu a mulher.
"Seguiam-se comentários sobre o tamanho grande de meus seios, e ouviam-se
especulações sobre minha história sexual." O professor "costumava
brincar que somente mulheres bonitas podiam trabalhar com ele, o que me levou a
indagar se meu intelecto e capacitação tinham relevância".
Os comentários e e-mails jorraram, disse Clancy. "Uma
história logo virou duas e, rapidamente, pareceu serem cem".
Igualmente, nossa pesquisa com redatoras nasceu das
conhecidas acusações de assédio contra um famoso editor que foi mentor de
muitas jornalistas. Os incidentes levaram as mulheres a revelar suas histórias
de discriminação no decorrer da profissão.
Segundo Clancy, no meio acadêmico, acusações de assédio
sexual e estupro costumam ser administradas internamente, criando incentivos
poderosos para encobrir o mau comportamento, principalmente entre agressores
com influência e poder.
"Escutei muitas histórias sobre o professor que não tem
permissão de estar no mesmo recinto com fulana ou beltrana", ela contou.
Às vezes, os agressores se beneficiam se livrando de tarefas de aprendizado
desagradáveis sem perder o emprego.
O assédio entre jornalistas científicos gerou uma hashtag,
#ripplesofdoubt, para descrever como ele enfraquece as mulheres. Mulheres
ignoradas para cargos se questionam se foram rejeitadas em função do visual e
não pelo trabalho. Outras temiam não ter alcançado a posição por mérito.
De fato, os dados sugerem parcialidade em decisões de
orientação. De acordo com estudo publicado neste ano, uma equipe de
pesquisadores liderada por Katherine L. Milkman, da Universidade da
Pensilvânia, enviou cartas idênticas, supostamente de estudantes, a mais de
6.500 professores de 259 universidades pedindo para discutir oportunidades de
pesquisa. Os professores estavam mais propensos a responder ao e-mail de
"Brad Anderson" do que de candidatas fictícias com nomes como Claire
Smith ou Juan Gonzalez. Esse tipo de parcialidade perpetua a discriminação.
"Nosso mundo é pequeno e os recursos, escassos",
disse outra autora do relatório publicado em "PLOS One" Julienne
Rutherford, bióloga e antropóloga da Universidade de Illinois, campus de
Chicago. Para ela, se mulheres são dissuadidas ou excluídas de algumas
oportunidades, as perdas para a ciência são enormes.
Ano passado, na conferência anual de jornalistas
científicos, juntei-me a cinco importantes jornalistas mulheres para apresentar
os dados que havíamos coletado sobre as disparidades de gênero em autoria,
cargos de nível elevado, prêmios e salários, e para recontar histórias da época
em que nosso gênero atrapalhou nossas carreiras.
A seguir, longas filas se formaram aos microfones enquanto
pessoas na plateia se levantavam para contar suas histórias. Mulheres jovens
contaram ter sido assediadas pelas fontes. Jornalistas tarimbadas recordaram de
chefes de mãos inquietas.
Homens se levantaram para oferecer apoio. O diretor de um
famoso programa de jornalismo científico disse que da próxima vez que uma aluna
confidenciasse ter sido assediada durante estágio, ele iria intervir;
aparentemente, a ideia não lhe ocorrera antes.
Em sua maioria, os homens não são sorrateiros, mas têm um
papel poderoso a desempenhar aqui. Durante viagem a uma conferência de
jornalismo alguns anos trás, tive uma conversa envolvente com um dos principais
palestrantes. Quando nos despedimos, ele me disse, diante de dois outros
homens, "seu marido não deveria deixar você sair de casa".
Os dois observadores consideraram essa fala insultuosa um
elogio. Foi mais fácil para eles ignorarem do que chamar a atenção de um amigo,
e seu comportamento mostrou que não havia problemas em me tratar assim.
Quer o assédio ou a discriminação aconteça num local de
pesquisa na Costa Rica ou na sala de conferência, o problema não será
solucionado com novas regras arquivadas em sites não lidos. A responsabilidade
de resistir não deveria ficar somente a cargo das vítimas. As soluções exigem
uma mudança de cultura que somente pode começar de dentro.
Será preciso que os diretores-presidentes, chefes de
departamento, diretores de laboratório, professores, editores e
redatores-chefes tomem uma posição e digam: pode ir parando com isso. Não me
importa se você é meu amigo ou colega preferido; nós não tratamos mulheres
assim.
Disponível em
http://delas.ig.com.br/comportamento/2014-08-21/assedio-sexual-impede-o-progresso-feminino-no-mundo-cientifico.html.
Acesso em 30 ago 2014.