Rita Colaço
28/01/2013
Ontem no Fantástico, revista semanal da
Rede Globo, foi apresentada uma entrevista com a top model transexual Lea T,
que recentemente se submeteu à cirurgia de transgenitalização.
Em seu depoimento, ela afirmou estar ainda um tanto
sensível, em decorrência não apenas da intervenção cirúrgica tomada enquanto um
ato médico, mas, sobretudo pelos seus aspectos psíquicos, emocionais.
Mesmo destacando esse aspecto, onde se encontra a perceber e
refletir sobre sutilezas de sua nova realidade, Lea T foi capaz de proferir
umas verdades incômodas.
Uma das mais contundentes, em minha opinião, foi declarar
que não é a presença ou ausência de um desses órgãos que vai trazer a
felicidade da pessoa.
Antes do ato transgenitalizador, disse, toda a sua
expectativa de felicidade estava alicerçada na realização da cirurgia. Agora,
feita a intervenção, se deu conta de que o ser humano é mais, muito mais do que
a sua genitália.
No rastro dessa percepção de que existe possibilidade de
vida saudável psiquicamente falando que não seja necessariamente a cirurgia,
Lea também fez referência ao conteúdo de dominação simbólica existente na
necessidade psíquica de se trangenitalizar, ao reconhecer que esse processo,
não à toa chamado de “readequação”, visa muito mais à satisfação da sociedade
do que à própria pessoa trans.
“Readequado” o ser no âmbito da norma de gênero, nada é
transformado e toda a ditadura do binarismo pode continuar incólume, a
enjeitar, humilhar, segregar, todas aquelas pessoas que por essa ou aquela
razão não se enquadrem nas exíguas fronteiras do “masculino” e do “feminino”,
como concebidos em nossa cultura.
Lea não falou em nome das pessoas trans. Falou apenas por si
mesma. Pelo que está a pensar e sentir nesse momento ainda delicado de sua
cirurgia recente.
E, em nome próprio, falando somente a partir de sua
experiência, disse que não recomendava a cirurgia a ninguém, pois era um
processo bastante doloroso.
Houve, porém, quem visse na entrevista transmitida pela Rede
Globo dois dias antes do Dia da Visibilidade da pessoa Trans, um verdadeiro
desserviço, na medida em que a emissora “apenas deu voz a uma única transsexual
e fez com que sua verdade passasse a ser, aos olhos da sociedade, a verdade d@s
milhares que lutam, todos os dias, contra a patologização, o preconceito e a
precariedade”.
Respeito o direito de quantos opinem, mas, em verdade, não
consigo ver onde é que a fala, pessoal, íntima e em muitos aspectos
explicitamente provisória de Lea T. possa contribuir negativamente para a luta
das pessoas transsexuais em prol do reconhecimento sociojurídico, do direito a
uma vida digna, fora da ótica da patologia.
Em minha perspectiva de olhar, Lea T. fez exatamente o
contrário.
O fato de ser quem é e ter falado no veículo que falou dota
a sua fala pessoal de aspecto politico. Mas isso não pode servir de argumento
suficiente para continuar a impedir um debate atrasado em mais de trinta anos -
pelo menos.
A questão de o veículo de comunicação em tela não aceitar
transmitir outros pontos de vista sobre o tema, é aspecto que compete aos
movimentos trans e LGBT enfrentar.
Por que o movimento LGBT, o movimento trans, ninguém jamais
ousou questionar a ordem simbólica que levou e leva milhares de transexuais
pobres à morte pelo uso indevido de silicone industrial? Por que todos se
limitaram e se limitam a reivindicar a cirurgia como a grande panacéia para
todas e todos?
Quem supõe que “o problema não é usar silicone industrial,
mas a transfobia”, não consegue ver que tanto a transfobia quanto o uso do
silicone industrial e a cirurgia de transgenitalização, quando tratada como a
única “solução”, como meio eficaz à “readequação”, são efeitos, sintomas de
nosso sistema de gêneros.
Disponível em
http://brasiliaempauta.com.br/artigo/ver/id/1473/nome/Lea_T_poe_o_dedo_nas_feridas_do_sistema_de_generos.
Acesso em 28 out 2013.