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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Para que, de fato, serve o sonho?

Sidarta Ribeiro
maio de 2014


Para entender para que serve o sonho, necessitamos compreender algo básico: o homem contemporâneo tende a esquivar-se de todo risco. Em vez de caçadas perigosas e coletas incertas, fazemos visitas regulares ao supermercado. No lugar de turnos de guarda noturna alternados para evitar um ataque traiçoeiro na madrugada, temos a segurança dos muros, portas trancadas e alarmes. Em lugar de pedras e peles, dormimos sobre colchões anatômicos. Em vez da dificuldade de encontrar parceiros sexuais férteis que não sejam parentes próximos, apenas o risco de levar um não de uma pessoa desconhecida numa festa ou bar.

Se os sonhos alguma vez foram essenciais para nossa sobrevivência, já não o são. Isso não quer dizer, entretanto, que os sonhos não mais desempenhem um papel cognitivo. Para esclarecer que papel é esse, é preciso em primeiro lugar desconstruir a noção de que os sonhos refletem algum tipo de processamento neuronal aleatório. Embora regiões profundas do cérebro de fato promovam durante o sono REM um bombardeio elétrico aparentemente desorganizado do córtex cerebral, há bastante evidência de que os padrões de ativação cortical resultantes desse processo reverberam memórias adquiridas durante a vigília.

Mesmo que não soubéssemos disso, bastaria um pouco de reflexão e introspecção para refutar a teoria aleatória dos sonhos. A ocorrência múltipla de um mesmo sonho é um fenômeno detectável, ainda que ocasional, na experiência da maior parte das pessoas. Pesadelos repetitivos são sintomas bem estabelecidos do transtorno de estresse pós-traumático, que acomete indivíduos submetidos a eventos excessivamente violentos. Dada a imensa quantidade de conexões neuronais existentes no cérebro, seria impossível ter sonhos repetitivos se eles fossem o produto de ativação ao acaso dessas conexões.

Além disso, sonho e sono REM não são o mesmo fenômeno e sequer têm bases neurais idênticas. Temos certeza disso porque existem pacientes neurológicos que perdem a capacidade de sonhar mas não deixam de apresentar o sono REM. Nesse caso, as regiões lesionadas, descritas por Mark Solms, são circuitos relacionados com a motivação para receber recompensas e evitar punições. Essas estruturas utilizam o neurotransmissor dopamina para modular a atividade de regiões relacionadas à memória, emoção e percepção. Sonhar com algo na vigília é o mesmo que desejar – e é exatamente de desejo que são feitos os sonhos. Curiosamente, são os níveis de dopamina que, em experimentos com camundongos transgênicos, regulam a semelhança entre os padrões de atividade neural observados durante o sono REM e a vigília. Portanto, a ideia de que psicose é sonho, ridicularizada por décadas, também encontra apoio na neuroquímica moderna.

E ainda, ao contrário da teoria de que os sonhos são subproduto do sono sem função própria, prevalece cada vez mais a noção de que o sono e o sonho são cruciais para a consolidação e a reestruturação de memórias. Ambos os processos parecem ser dependentes da reverberação elétrica de padrões de atividade neural que ocorrem enquanto dormimos e representam memórias recém-adquiridas. Essa reverberação se beneficia da ausência de interferência sensorial durante o sono e resguarda o processamento mnemônico de perturbações ambientais. A reverberação é favorecida também pela ocorrência de oscilações neurais durante o sono sem sonhos, chamadas de ondas lentas. Os pesquisadores Lisa Marshall, Jan Born e colaboradores da Universidade de Lübeck, na Alemanha, demonstraram que é possível aumentar a taxa de aprendizado realizando estimulação elétrica de baixa frequên¬cia durante o sono de ondas lentas.

Em contrapartida, como venho demonstrando junto com outros grupos de pesquisa desde 1999, o sono REM parece ser fundamental para a fixação de longo prazo das memórias em circuitos neuronais específicos. Esse processo depende da ativação de genes capazes de promover modificações morfológicas e funcionais das células neurais. Tais genes são ativados durante a vigília quando algum aprendizado acontece e voltam a ser acionados durante os episódios de sono REM subsequentes. Como resultado, memórias evocadas por reverberação elétrica durante o sono de ondas lentas são consolidadas por reativação gênica durante o sono REM. Essa reativação cíclica das memórias em diferentes fases do sono e da vigília vai paulatinamente fortalecendo os caminhos neurais mais importantes para a sobrevivência do indivíduo, enquanto as memórias inúteis são gradativamente esquecidas.

Experimentos eletrofisiológicos e moleculares mostram ainda que as memórias migram de um lugar para outro do cérebro, sofrendo importantes transformações com o passar do tempo. Meu laboratório tem mostrado que áreas do cérebro envolvidas na estocagem temporária de informações, como o hipocampo, apresentam reverberação elétrica e reativação gênica apenas durante os primeiros episódios de sono após o aprendizado. Em contraste, áreas do córtex envolvidas na armazenagem duradoura das memórias apresentam persistência desses fenômenos por muitos episódios de sono após a aquisição de uma nova memória.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/para_que_de_fato_serve_o_sonho_.html. Acesso em 01 dez 2014.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Orientação sexual na CID-11

CLAM
21/10/2014

A homossexualidade deixou de ser considerada transtorno mental em 1973 quando a Associação Americana de Psiquiatria decidiu retirá-la do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM). No entanto, continuou na lista de doenças mentais até 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a versão 10 da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). 

Embora isoladamente deixasse de ser definida como doença, esta orientação sexual permaneceu conectada a uma linguagem patologizante por meio de categorias que a associam a distúrbios mentais. Diante desse cenário, um grupo de trabalho, comandado pela psicóloga e epidemiologista Susan Cochran (UCLA) e o psiquiatra Jack Drescher (NY Medical College) - do qual faz parte Alain Giami (INSERM, França), pesquisador convidado no Programa da Cátedra Francesa da UERJ -, está propondo a eliminação de qualquer vínculo entre orientação sexual e doença para a edição 11 da CID.

Na CID-10, o capítulo 5 (Doenças Mentais e Comportamentais) define, através das categorias F66, três transtornos ligados à orientação sexual: “sexual maturation disorder”, que situa a orientação sexual (homo, hetero ou bissexual) como causa de ansiedade ou depressão em razão da incerteza do indivíduo quanto ao seu desejo; “ego-dystonic sexual orientation”, quando o indivíduo, embora seguro de sua orientação, deseja mudá-la; e “sexual relationship disorder”, manifesta nos casos em que a orientação é responsável pela dificuldade em formar ou manter um relacionamento com um parceiro sexual.

“A proposta do grupo de trabalho é eliminar tais categorias, considerando que orientação sexual não é uma causa de transtorno mental, do ponto de vista biomédico, mas uma questão de variabilidade social que não pode ser definida como patológica. É uma variação normal das diferenças do comportamento. Assim, a proposta é não usar a homossexualidade como transtorno ou como causa de doença”, destaca Alain Giami, integrante do grupo de trabalho designado especificamente para revisar o tema da orientação sexual – há outros três grupos que revisam o capítulo 5, no tocante a temas como identidade de gênero, parafilias e disfunções sexuais.

No artigo em que sintetizam a proposta do grupo, os autores argumentam que as causas da orientação sexual são desconhecidas, mas afirmam que provavelmente reflete um conjunto de fatores genéticos, de exposição pré-natal a hormônios, experiência de vida e contexto social. A partir disso, destacam que a variação de orientação sexual é ubíqua, em distintas sociedades.

Entretanto, o estigma social é um traço comum em diversas sociedades, afetando as pessoas que não se enquadram no modelo hetenormativo – que situa homem e mulher como seres distintos e complementares com papéis naturalmente determinados – e também aquelas que estão em situação de discriminação por raça, etnia, classe social, religião e portadores de deficiência.

Assim, vivendo em contextos de exclusão, discriminação e violência, indivíduos homossexuais estão expostos a significativo nível de estresse. “Evidências mostram que gays, lésbicas e bissexuais demonstram com frequência graus de estresse maior que os heterossexuais”, afirmam os autores no artigo. Nesse sentido, a proposta do grupo é eliminar as categorias F66 de maneira que a perspectiva biomédica não seja a fundamentação para doenças e sofrimentos relacionados à homossexualidade. A intenção é vincular os transtornos – como ansiedade e depressão (que acometem pessoas gays ou bissexuais) – ao ambiente em que vivem, geralmente hostil, designando-os como problemas psicossociais: para isso, são indicadas as categorias Z, que estabelecem protocolos de atendimento para os indivíduos que precisam de aconselhamento em matéria de sexualidade, sem a presença necessária de uma doença mental. Com essas categorias, a possibilidade de se acessar o sistema público de saúde seria mantida, na medida em que a despatologização não representaria uma desmedicalização das dificuldades, problemas e sofrimento que podem afetar os indivíduos.

Do outro lado, alguns profissionais de saúde pesquisados alegam, por sua vez, que as categorias F66 podem ser úteis para melhorar a precisão do diagnóstico, ao servirem como pistas para o trabalho médico, inclusive como sinalização de outras doenças. Por essa lógica, “sexual maturation disorder” ou “sexual relationship disorder” poderiam ser mantidos como diagnósticos alternativos para o transtorno de gênero – utilizado para enquadrar indivíduos transexuais. Também nesse sentido, profissionais de saúde afirmam que o estresse em um/uma pessoa homossexual pode ser evidência de “ego-dystonic sexual orientation”, isto é, quando o indivíduo quer mudar de orientação sexual.

Porém, de acordo com os integrantes do grupo de trabalho, isso não permite afirmar que as categorias F66 melhoram a precisão de diagnóstico e, assim, sejam clinicamente úteis. “Uma situação de estresse, por exemplo, pode ser uma resposta adaptada a um acontecimento, sem ser clinicamente relevante. Por isso, não parece haver evidência que justifique intervenções específicas para orientação sexual, distintas daquelas utilizadas para doenças como depressão e ansiedade. Isso pode levar, inclusive, a um tratamento inapropriado para o paciente. Um estresse ligado a relações sociais ou psicossociais não pode ser considerado transtorno”, pondera Alain Giami.

A associação entre orientação sexual e doença não é recente. Na CID-6 (publicada em 1948), a homossexualidade foi pela primeira vez tratada como patologia, sendo classificada como um desvio sexual ligado a um distúrbio de personalidade. Contudo, pesquisas desenvolvidas ao longo da segunda metade do século XX não corroboraram com a tese. Conforme destacam os autores do artigo do grupo de trabalho da OMS, revisões realizadas em publicações científicas importantes mostraram que a última citação de “ego-dystonic-homossexuality” foi em 1995. Nem mesmo periódicos sobre desenvolvimento psicossexual têm discutido doenças no campo. Além disso, não obstante a CID ser um marco de referência mundial para o monitoramento em saúde pública, as categorias F66 pouco contribuem para esse fim.

Apesar da falta de evidências científicas que sustentem o caráter patológico da orientação sexual, tem sido comum no Brasil e em alguns países africanos a prática da chamada “terapia de reorientação sexual” ou “terapia de conversão”. Formulada e oferecida sobretudo por profissionais da saúde ligados a grupos religiosos dogmáticos, tal terapia consiste em um conjunto de métodos destinados a eliminar a homossexualidade do indivíduo, “restaurando” o desejo por pessoas do outro sexo de modo que as relações sexuais e afetivas sejam heterossexuais. Esse tipo de prática tem sido amplamente criticado e rejeitado por profissionais de saúde, pesquisadores, autoridades e ativistas ao redor do mundo.

No Brasil, inclusive, desde 1999 uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio ou perversão" e que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade”.

A questão dos direitos humanos

Para o grupo de trabalho da OMS, terapias que buscam modificar a orientação sexual de uma pessoa estão à margem dos padrões éticos. Princípios de direitos humanos, especialmente no âmbito dos direitos sexuais, constituem ferramentas importantes para a proposta de eliminação das categorias F66, porque garantem, entre outras prerrogativas, autonomia, liberdade, integridade e escolha livre e responsável para o exercício e manifestação das práticas e desejos sexuais de forma segura. Essas ideias têm sido defendidas e promovidas por órgãos internacionais como forma de combater a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, do que são exemplos a aprovação no final de setembro de resolução pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Declaração dos Direitos Sexuais da Associação Mundial de Direitos Sexuais (WAS, sigla em inglês), que reafirma o respeito e a proteção à orientação sexual.

Não apenas uma questão científica, mas também – e talvez principalmente – política. As lutas travadas em torno da homossexualidade são antigas, envolvendo diversos tipos de linguagens e discursos. Em 1973, quando a Associação Americana de Psiquiatria (APA) retirou-a do rol de doenças definidas pelo seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) , a medida refletiu não apenas argumentos científicos, mas também uma série de mudanças ocorridas após os anos 1960 e o movimento de liberação sexual, momento em que ideias mais inclusivas ganharam densidade em meio às tensões morais que envolvem questões de sexualidade. Por isso, os grupos de trabalho que trabalham na revisão da CID-11 sabem que suas recomendações podem não ser necessariamente aprovadas. As propostas são primeiramente analisadas pelo Comitê Central do capítulo sobre transtornos mentais e comportamentais, seguindo para o Comitê Geral da CID e, por fim, sendo votadas na Assembleia Geral da OMS, com previsão de publicação para 2017.

Um argumento favorável à manutenção das categorias F66 é a proteção que elas oferecem a indivíduos de países que punem, com legislação criminal, relações entre pessoas do mesmo sexo, inclusive com pena de morte. Por essa lógica, a doença os isentaria da execução. No entanto, o estudo do grupo não conseguiu identificar o uso desse tipo de defesa. A realidade de cada país é um desafio difícil de conciliar na proposta de revisão da CID, cuja apreciação é feita em um fórum global, com visões de mundo muito amplas e distintas.

Apesar das dificuldades e dos aspectos tanto científicos quanto políticos, Alain Giami acredita que o grupo de revisão apresenta uma postura relevante. “Nossa recomendação não é oficial, é apenas um documento de trabalho. Mas penso que é um progresso, tendo em vista a possibilidade de se eliminar oficialmente uma linguagem estigmatizante”, conclui Alain Giami, que atua como investigador convidado da Cátedra Francesa da UERJ, no Instituto de Medicina Social (IMS), até o mês de dezembro.


Disponível em http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=11863. Acesso em 22 out 2014.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Médicos e transexuais

Concília Ortona

Ser transexual é uma escolha? Crianças percebem seu transtorno de identidade de gênero? É ético possibilitar o início da transição para a mudança de sexo a adolescentes? Questões sobre estes temas delicados – e pouco abordados – voltaram à tona no Brasil, em julho, quando o Ministério da Saúde (MS) lançou duas portarias em 24 horas: a inicial, entre outros pontos, antecipava, de 18 para 16 anos, o emprego de hormônios a transexuais, e de 21 para 18, a operação, no âmbito do SUS. A norma seguinte derrubou a anterior, até a “definição de protocolos clínicos e de atendimento”.

Enquanto as discussões tomam forma no País, a Ser Médico entrevistou duas autoridades médicas norte-americanas no assunto, que, além de explicações técnicas, transmitem pontos de vista de protagonistas dessa história: são transexuais. A primeira parte da entrevista focaliza a ginecologista Marci L. Bowers, 55 anos, que foi Mark até os 40 – tendo, inclusive, se casado e sido pai de três filhos. Figurando na lista dos Melhores Médicos Norte-Americanos, em 2002 e 2003, atualmente é especialista em mudança de sexo. Na segunda, quem fala é o médico Ben Barres, 58 anos, PhD e presidente do departamento de Neurobiologia da Stanford University School of Medicine. Com 42 anos ainda era Barbara e, apesar de hoje ser oficialmente homem, indigna-se contra pares que sugerem “aptidão intrínseca” do sexo masculino à Ciência. Em ambos os casos, pode-se observar o equívoco de restringirem-se as opções profissionais de transgêneros a determinadas carreiras. Confira, a seguir, as duas entrevistas.

Ser Médico – No Brasil, tentou-se antecipar o início do processo de mudança de sexo, iniciativa derrubada provavelmente por pressões religiosas e/ou políticas. Um adolescente com 16 anos consegue saber, com certeza, se é transexual?
Marci L. Bowers – É vergonhoso e perigoso política e religião desempenharem quaisquer papéis na tomada de decisão médica. De qualquer modo, sou sensível a tal questão. Nos EUA, como em outros locais do mundo, vemos uma população cada vez mais jovem solicitando hormônios e cirurgia. Nem sempre são situações fáceis de se lidar, pois nosso juramento nos impede de tomarmos medidas, quando riscos excedem os benefícios. Em geral, em transexuais, sentimentos confusos quanto ao gênero começam bem cedo, antes da puberdade, sugerindo a existência de uma base biológica de gênero. Só que é preciso cuidado. Apenas um terço das crianças com comportamento não compatível com o sexo biológico vai se tornar um adulto transexual. Por outro lado, o agravamento do desconforto, pela puberdade, é altamente preditivo de identidade de gênero contrária. Pela minha experiência, um bom momento – o início da transição – é a partir dos 17 anos, quando parece haver a combinação perfeita de idade, maturidade e apoio dos pais, necessários para resultados cirúrgicos e sociais bem-sucedidos.

SM – Quando a senhora percebeu que era mulher, depois de viver por tantos anos como homem? Houve horas em que pensou: “posso manter-me como marido e pai, e continuar feliz”?
MB – Sempre pensei em mim como do gênero feminino, mas não conseguia colocar isso em palavras. Naquele tempo, nos anos 60, nem sabíamos a maneira correta de chamar esse tipo de comportamento. Sentia-me esquisito, constrangido e sozinho em meus pensamentos. Bem que tentei dar um jeito de ser machão na adolescência, mas a “persona masculina” simplesmente não se encaixava bem em mim. De forma inconsciente, sabia da disforia de gênero o tempo todo. Muitas das minhas memórias mais antigas e pungentes vinculam-se ao travestismo. Por exemplo, lembro-me de minha mãe chorando, em 1963, porque o presidente Kennedy havia sido assassinado, e ficar mais assustada ainda ao se deparar comigo, com cinco anos, com o vestido de chiffon amarelo da minha irmã. Gostaria de ter feito a transição ao sair do ensino médio, aos 19 anos, mas faltavam coragem e dinheiro. O casamento e a chegada das crianças foram importantes em minha vida adulta, mas perpetuaram meu sacrifício por mais 21 anos, quando finalmente realizei meu destino como mulher. A verdade é que chegou a um ponto em que viver como homem parecia cada vez mais perigoso para a minha saúde mental.

SM – Talvez por preconceito, no Brasil os transexuais parecem ter oportunidades profissionais restritas. Vemos dançarinos, artistas, cabeleireiros, maquiadores, mas raramente médicos ou professores universitários. Acontece o mesmo nos EUA?
MB – Nos EUA, houve um relaxamento dos papéis estipulados por gênero, masculino e feminino, refletindo os avanços sociais conseguidos pela população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). A ideia de que alguém possa ser transexual, e trabalhar como advogado competente, médico ou piloto de avião, reflete essa mudança de atitude. Há 20 anos isso seria inimaginável. Quem se classificasse como transgênero seria visto como mentalmente desequilibrado, na melhor das hipóteses, ou psicologicamente perturbado, na pior.

SM – A senhora já foi considerada por seus pares do Conselho de Pesquisa Americano como um dos Melhores Médicos da América. A que atribui tal reconhecimento?
MB – Durante os 20 anos em que atuei como obstetra, era visto como um profissional compassivo e carinhoso. Essa reputação permaneceu em meu trabalho atual, como cirurgiã especializada em transgenitalização. Depois de ajudar cerca de 2.500 bebês a nascer, fiz meu último parto em 2007. Foi uma época maravilhosa. Sinto falta, principalmente, da intimidade do momento e da alegria de trazer o potencial humano ao mundo. De certa forma, no entanto, mudar a genitália de alguém permite também uma espécie de renascimento para a verdade. Até agora, realizei mais de 1.100 operações do sexo masculino para feminino e cerca de 250, do feminino para o masculino.

SM – Falando sobre este assunto, já enfrentou algum conflito de interesse, por ser transexual e possibilitar mudança de sexo a outras pessoas? Por exemplo:“será que minha experiência influenciou na decisão deste paciente”?
MB – Engraçado... Sabe que ninguém nunca havia me feito essa pergunta antes? Sinceramente não enfrento nenhum conflito, pois estou no fim da engrenagem. Antes de chegar à cirurgia, os pacientes já vivenciaram todas as dúvidas e indefinições, abriram o jogo com familiares e amigos, com psicólogos e psiquiatras, além de terem usado hormônios do sexo oposto, durante, pelo menos, um ano. De qualquer maneira, faço o papel de “advogado do diabo”, falando a respeito de prós e contras, além de voltar no tempo a respeito dos fatos que culminaram em sua decisão. Se ainda assim insistirem, estão prontos. Ninguém nunca me acusou de ter interferido indevidamente, e quase nunca ouço algum paciente reclamando de que cometeu um erro. Na verdade, a pergunta mais fascinante talvez seja “por que há tão pouco arrependimento?”. O que mostra o quanto o gênero é algo pessoal e, se estiver errado, impossível de se ignorar.

SM – O que diria a colegas que alegam “objeção de consciência” à cirurgia de mudança de sexo, comparando-a à “mutilação”?
MB – Machos e fêmeas são, biologicamente, bem mais parecidos do que diferentes. Todos surgimos como embriões do sexo feminino, e os sinais biológicos e hormônios que alteram nossos caminhos na região genital são bem discretos. Na realidade, o que nos separa, na infância, são os limites trazidos pelas expectativas sociais em relação a meninos e meninas. Além disso, há um grande número de bebês nascidos com condição intersexual, com genitália nem essencialmente masculina nem feminina. Como a sociedade mantém-se desconfortável com algo que não seja estritamente masculino ou feminino, logo após o nascimento chamamos rapidamente especialistas, como geneticistas e cirurgiões pediátricos, para suavizar essas confusas situa¬ções. Assim, a partir de uma lógica biológica, pode-se ver por que faz tanto sentido oferecermos mudança de sexo, quando essa se traduz em melhoria da qualidade de vida. Transexuais são mais felizes após a transição, isso é fato. Comparar essa lógica à mutilação ou a fetiches referentes à amputação corresponde a uma tática para assustar os desavisados. É como alertar os pacientes de que a remoção do apêndice pode levar ao Mal de de Alzheimer.

SM – Já se sentiu discriminada por colegas ou pacientes?
MB – Se ocorrer alguma discriminação, é idêntica àquela contra qualquer outra de nós, mulheres. Mas, pensando bem, médicas lidam com dificuldades específicas. Certa vez, uma paciente solicitou um “cirurgião de verdade”, enquanto eu lhe explicava detalhes de sua histerectomia. Da outra, me peguei usando mais calças e jaquetas, a fim de ganhar mais credibilidade profissional. Recentemente, fui apresentada por um colega como: “esta é a nossa médica transexual”. Já pensou como seria se introduzisse alguém como: “este é o meu advogado judeu”. Ou: “conheça o meu contador mexicano”. Ou: “você vai adorar a comida preparada por nosso chef bissexual”. Sim, enfrento mais tensões e desafios do que outros, em muitos aspectos. Mas, como profissional adequadamente remunerada, tive vantagens. Arcar com minha cirurgia foi uma delas. Isso seria bem mais difícil para um transexual que vive nas ruas ou que trabalha em uma oficina mecânica.

SM – Por que decidiu ajudar, gratuitamente, mulheres que passaram pela terrível experiência de amputação de clitóris?
MB – Em 2007, Nadine Gary, diretora da organização internacional Clitoraid, perguntou-me se queria aprender uma técnica desenvolvida em Paris, por Pierre Foldes, para a reconstrução de clitóris mutilados por motivos culturais. Aceitei sem hesitar. É um pequeno sacrifício em repúdio a esse crime contra a humanidade. Só anos mais tarde soube que mais de 30 ginecologistas haviam declinado. Existem céticos que duvidam da eficácia da operação, mas ela funciona, pois, na maioria das vezes, boa parte do órgão permanece sob a pele. Ao apelar à técnica, em parte, as mulheres pensam na função sexual. Só que, principalmente, querem recuperar a identidade perdida. Geralmente se sentem violadas, envergonhadas e diminuídas.

SM – Como é sua relação com seus filhos? Hoje, a senhora diz preferir relacionamentos amorosos com mulheres, em vez de homens. Isso não leva a dúvidas de que sua essência continua sendo masculina?
MB – Meus filhos são fantásticos. A mais velha terminou a faculdade e a outra se prepara para a escola de Medicina. Meu filho tem 17 anos, frequenta o ensino médio e mora comigo. Felizmente, minha ex-esposa manteve-se como um grande apoio e amiga. Depois da transição, eu saía exclusivamente com homens, e não tinha dificuldade em atraí-los. No entanto, com o tempo, descobri que faltava uma certa conexão emocional, pelo menos, em relação àqueles que conheci. Parecia ainda que se sentiam meio intimidados com a minha posição, como médica conhecida. Seria melhor classificar-me como bissexual. A tal conexão emocional acontece atualmente com a mulher com quem vivo há cinco anos, que também é médica.

Barres: transexual feminista

Ser Médico – O senhor é um cientista respeitado, sendo, inclusive, presidente do Departamento de Neurobiologia, em Stanford. Por ser transexual, enfrentou mais desafios, comparado a colegas?
Ben Barres – Minha família, amigos e alunos têm me dado um apoio incrível, desde que anunciei a mudança de sexo, 16 anos atrás. Confesso que, na época, fiquei preocupado com o fato de que minha carreira pudesse acabar, que os colegas não compreendessem, e os estudantes não viessem mais ao meu laboratório. Felizmente, meus medos foram exagerados. Não estou ciente de qualquer financiamento perdido, artigos não publicados, colaborações em trabalhos não aceitas, ou convites para congressos cancelados pelo fato de ser transexual. Não significa que não tenha havido alguma discriminação, só que, pelo visto, não foi relevante. Minha situação pode ter sido diferente da de outros – por viver na Baía de São Francisco, região receptiva dos EUA, e atuar em uma carreira em que é amplamente aceita a ideia de que as diferenças humanas são fundamentais para impulsionar inovação e sucesso na academia. É preciso considerar também que a transição me tornou um homem, em uma sociedade menos propensa a aceitar mulheres em certas áreas. A história de cientistas mulheres, transgêneros do masculino para o feminino ou de gays, pode ser menos positiva.

SM – É mais difícil ser um cientista do sexo feminino do que do masculino? É mais difícil ser mulher do que homem?
BB – A cientista transexual Joan Roughgarden disse bem: em nossa sociedade, se você é mulher, é considerada incompetente até provar o contrário. Se é homem, é competente, até prova em contrário. Portanto, ao longo de suas vidas, homens parecem contar com uma vantagem constante, enquanto as mulheres, com uma desvantagem, que nem percebem, pelo menos enquanto são jovens. Essa diferença simples, em forma de expectativa social, pode ser suficiente para explicar diferenças de realizações entre homens e mulheres.

SM – Por que criticou colegas que diziam que “a razão pela qual há menos mulheres do que homens em Ciência e em cátedras de Engenharia e Matemática é que mulheres não contam com níveis elevados de ‘aptidão intrínseca’ exigidos para essas carreiras”?
BB – Larry Summers (economista norte-americano, secretário do Tesouro no governo de Bill Clinton) e muitos homens antes dele usaram o mote “quanto mais gênios, mais idiotas”, para argumentar que os cérebros masculinos são mais inconstantes – prontos para ir além da normalidade e linearidade –, de modo que haverá um maior número de homens talentosos do que de mulheres igualmente capazes. Não há estudos que confirmem tal raciocínio e, de fato, há uma quantidade cada vez maior de informações contra ele. Simplesmente não conseguimos prever o motivo de algumas pessoas se tornarem grandes artistas, cientistas ou inventores. Tentou-se avaliar, por meio de testes de QI e de matemática, mas acontece que vários ganhadores do Nobel não possuem QI de gênio, e muitos gênios não alcançam grandes feitos.

SM – No decorrer de seus estudos, o senhor encontrou, ou procurou, alguma explicação na Neurobiologia do por que alguém nasce com o corpo contrário à sua essência?
BB – É uma pergunta fascinante. É evidente que existem circuitos neurais que controlam e moldam os comportamentos específicos de gênero. Por exemplo, há evidências de que a exposição a hormônios sexuais exógenos (de causas externas) ou a produtos químicos chamados “disruptores endócrinos”, que imitam os hormônios, é capaz de perturbar o desenvolvimento de circuitos cerebrais e de alterar comportamentos específicos de gênero. Estudos anteriores mostraram que as “filhas de DES” (meninas expostas, enquanto fetos, ao dietilestilbestrol, antineoplásico que inibe a secreção de determinados hormônios) são dez vezes mais propensas ao lesbianismo do que as demais. Além disso, há alguma evidência de que “filhos de DES” são mais propensos ao transexualismo. Quando eu era um feto, fui exposto a uma droga à base de testosterona, e suspeito fortemente de que esta tenha masculinizado meu cérebro, como ocorre com fetos de macacas. No entanto, para a maioria dos transexuais, não há histórico de tal exposição, sendo ainda um mistério do por que eles são transgêneros. É muito provável que as variações genéticas sejam as responsáveis. Enquanto muitos consideram que ser LGBT corresponde a uma escolha, muitos de nós afirmamos estar cientes de sua diferença desde crianças pequenas. Ninguém optaria livremente por enfrentar a angústia emocional e o prejuízo social que surgem de tal “escolha”, a menos que conseguisse viver de um modo coerente à sua identidade sexual inata.


Disponível em http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=694. Acesso em 23 mar 2014.

terça-feira, 4 de março de 2014

Algo errado no corpo

Carrie Arnold
fevereiro de 2014

O número de pessoas insatisfeitas com a imagem do corpo não é pequeno. Quase metade das adolescentes relata estar infeliz com a aparência. O número de homens que dizem sentir grave insatisfação com a imagem corporal também está crescendo. Um distúrbio que tem chamado a atenção de especialistas é o transtorno dismórfico corporal, em que as pessoas não conseguem parar de pensar em pequenas “falhas” (não raro, imaginárias) de sua aparência.

A maior parte dos especialistas concorda atualmente que o problema depende de diversos fatores psíquicos, biológicos e ambientais. A novidade é que pesquisas recentes apontam a interocepção como uma função biológica chave para compreendermos esse tipo de transtorno.

A interocepção é um sentido pouco conhecido, responsável pela consciência do estado interno do próprio corpo. Alterações nesse sentido podem estar relacionadas ao desenvolvimento de anorexia, bulimia e transtorno dismórfico corporal, e identificar o distúrbio ajudaria a desenvolver novas abordagens terapêuticas.

Sabemos quando estamos satisfeitos ou com fome, com frio ou calor, com coceira ou dor no momento em que receptores localizados na pele, nos músculos e nos órgãos internos enviam sinais a uma região do cérebro chamada ínsula. Essa pequena bolsa de tecido neural está situada em uma dobra profunda da camada externa do cérebro, perto das orelhas. Essa estrutura mantém a consciência do estado interno do corpo, desempenhando um papel importante no autoconhecimento e na experiência emocional. Tanto informações interoceptivas e quanto vindas do meio externo são processadas na ínsula.

A região é responsável por relacionar, por exemplo, a forte dor que sentimos ao tocar um fogão quente com o vermelhão que aparece na mão queimada. “A integração dessas informações constitui a imagem corporal, ou seja, parecemos o que pensamos”, diz o neurocientista Manos Tsakiris, da Royal Holloway, Universidade de Londres. “Quanto maior a contribuição da interocepção em oposição a estímulos externos e visuais, melhor é a imagem corporal de uma pessoa.”

Pessoas com alterações nessa regulação biológica podem ter dificuldade para ancorar o “senso de si”, tornando-se excessivamente preocupadas com mínimos detalhes visuais, o que costuma resultar na depreciação da própria imagem. Pacientes com transtorno dismórfico corporal também apresentam esse tipo de problema, o que os leva a focar mais na forma do nariz do que na harmonia geral do rosto.

Imagem corporal distorcida, chamada formalmente de dismorfia corporal, pode variar desde leves preocupações sobre como um jeans pode não modelar tão bem o quadril até interpretações delirantes em relação ao tamanho e a forma do corpo, como nos casos de anorexia nervosa e transtorno dismórfico corporal. Muitos podem ter o problema inverso. Em um estudo de 2010, o cardiologista Sandeep Das e seus colegas da Universidade do Texas, Centro Médico do Sudoeste, descobriram que um em cada dez adultos obesos acreditava que seu peso estava saudável. Os cientistas acreditam que a baixa interocepção também ajuda a explicar a distorção positiva desses voluntários a respeito do próprio corpo.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/algo_errado_no_corpo.html. Acesso em 04 mar 2014.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Transtorno desenvolvido por assédio é doença ocupacional

Consultor Jurídico
17 de janeiro de 2014

O transtorno desenvolvido por assédio sexual é considerado doença ocupacional. Assim entendeu a 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho ao julgar o caso de um caixa de um supermercado de Porto Velho (RO) que, devido ao assédio sexual e moral que sofreu na empresa, desenvolveu o transtorno obsessivo compulsivo (TOC). A doença foi desencadeada porque um subgerente perseguiu o trabalhador dizendo que ele era homossexual e provocando situações constrangedoras.

Segundo o relator do recurso no TST, juiz convocado José Maria Quadros de Alencar, a doença é resultado de condições especiais do ambiente em que o trabalho era executado, equiparando-se a acidente do trabalho, nos termos do parágrafo 2º do artigo 20 da Lei 8.213/91. Além disso, afirmou que, conforme o artigo 932, inciso III, do Código Civil, o empregador responsabiliza-se diretamente pelos atos praticados por seus prepostos.

"Você não fala fino, não anda rebolando, não parece ser gay, mas você é... Fala logo que é e eu não conto para ninguém", era frase que o empregado ouvia com frequência. Por dois anos sofrendo de ele comunicou a situação à empresa. Demitido sob alegação de baixo rendimento, procurou um psiquiatra que constatou a doença.

Com dor intensa e ininterrupta nos dedos, mãos e braço, tinha paralisias temporárias, esquecimentos e surtos de agressão ao próprio corpo. O médico diagnosticou ainda insônia, visão de vultos, vozes, pesadelos, tremores, dores de cabeça e tiques nervosos, que passaram a ser controlados por remédios de tarja preta. O trabalhador relatou ainda que, devido ao tratamento controlado, seu estado orgânico fica alterado, deixando-o tonto, lerdo e sem condições sequer de falar com facilidade.

O supermercado foi condenado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região (RO) a pagar indenização por danos morais, no valor de 50 salários mínimos (equivalente hoje a R$ 36,2 mil), a ser atualizado na época do pagamento. No entanto, considerou que o TOC não é doença profissional, pois não está no rol de doenças constantes nos incisos I e II do artigo 20 da Lei 8.213/91.

Ambiente hostil

Para o relator do TST, José Alencar, não há dúvida de que o transtorno, no caso, "trata-se de doença adquirida em função da atividade exercida em ambiente de trabalho inadequado e hostil". Ele explicou que ficou caracterizada a prática de assédios moral e sexual por um dos subgerentes do supermercado, "que nada mais é que um dos seus prepostos".

Com a decisão do TST, o processo retornará ao TRT da 14ª Região (RO) para que analise o pedido feito pelo trabalhador de recebimento de pensão mensal e garantia provisória no emprego, garantidos pela Lei 8.213/91, no caso de doença profissional equiparada a acidente de trabalho.

Assédio constante

Na reclamação trabalhista, o empregado contou que fazia serviços de zeladoria para a empresa, quando, em 2002, lhe solicitaram o currículo. Já durante a entrevista de admissão para a função de caixa, estranhou algumas perguntas feitas pelo subgerente, inclusive se era homossexual. Foi, segundo ele, o início de um longo período de constrangimentos e humilhações.

Um dos episódios aconteceu enquanto conferia preços no supermercado. Segundo ele, o subgerente aproximou-se e começou a aspirar seu perfume, junto ao pescoço, o que fez com que ele saísse bruscamente de perto, com raiva e constrangimento. Os assédios ocorriam, em sua maioria, durante conversas particulares, em que ele sofria coações morais quanto à sua sexualidade.

O trabalhador afirmou ainda que, sempre que tinha essas atitudes, o chefe dizia para que ele não contasse para ninguém, fazendo pressões psicológicas. Até que um dia, apesar de sentir vergonha, ira, ansiedade e medo de perder o emprego, o caixa falou dos constrangimentos que sofria a alguns colegas, que disseram já saber de desses episódios, pois o próprio subgerente comentava com os demais, com ironia.


Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-jan-17/transtorno-desenvolvido-assedio-sexual-considerado-doenca-ocupacional. Acesso em 20 jan 2014.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

No corpo errado

Rafael Gregorio; Tory Oliveira
Publicado na edição 82, de dezembro de 2013

Desde a infância, David Cristian, 23 anos, sentia-se diferente das demais meninas. O jovem, natural de Florianópolis (Santa Catarina), começou a se vestir como um garoto aos 13 anos e há um ano e meio iniciou tratamento psicológico e hormonal para adequar seu corpo ao gênero masculino, com o qual se identifica. Cristian é um transgênero, como são chamados homens e mulheres que sentem inadequação extrema com o sexo biológico de nascimento. Identificado como transtorno de identidade de gênero pelos médicos, o fenômeno, frequente e erroneamente confundido com a homossexualidade, pode ser um atalho para depressão, discriminação e isolamento, em especial no caso de crianças e adolescentes em idade escolar.

Para Cristian, que hoje vive em Curitiba, a maior parte das lembranças da escola, quando ainda vivia como menina, são de ameaças de colegas e funcionários. “Uma inspetora disse para eu ir embora, porque ninguém gostava de mim lá”, conta ele. Além de lhe acarretar uma depressão, a hostilidade o fez interromper os estudos duas vezes. Formado, Cristian hoje espera a mudança do nome na carteira de identidade para começar uma faculdade.

Violência e preconceito explicam a incorreta associação entre identidade de gênero e vontade pessoal. São também as razões da alta evasão escolar identificada por profissionais da educação. “Muitos não conseguem concluir nem o Ensino Fundamental, e 99% não chegam à universidade”, explica a professora transgênero Marina Reidel, autora de dissertação de mestrado na UFRGS sobre a trajetória de professores travestis e transexuais (que buscam correção cirúrgica para o que veem como distorção anatômica). Sem acesso ao estudo e, consequentemente, ao mercado de trabalho, a maioria cai na prostituição.

Além das agressões físicas e verbais, discriminações cotidianas, como a negativa de uso do nome social (denominação pela qual preferem ser chamados no dia a dia) e a proibição de frequentar o banheiro reservado ao gênero de identificação, são obstáculos adicionais. Para Marina, em vez de disseminar valores de tolerância, a escola é, no mais das vezes, um ambiente aterrorizante para os transgêneros.

Leonardo Tenório, 17 anos, nasceu Letícia. Na adolescência, contudo, em nome de “ser quem eu era”, desistiu de agradar à mãe e abandonou as roupas e a aparência femininas. “Todo mundo repara em mim. Como sou tímido, tento me esconder ao máximo”, diz Tenório, hoje aluno do 3º ano do Ensino Médio em uma escola pública de Ituitaba, Minas Gerais. Ele também diz ser recriminado pela diretora da escola, que, ao pedido para ser chamado pelo nome social, respondeu-lhe que não havia lei que a obrigasse e que ele “queria aparecer”. O aluno mostra-se resignado: “Tento pensar que a escola já está acabando”.

Reminiscências amargas de apelidos e xingamentos também predominam para Brendda Montilla, 17 anos, que diz sentir-se diferente dos demais meninos desde as primeiras séries, em Almirante Tamandaré, no Paraná. “Os casos de tolerância que encontrei foram por boa vontade dos professores, porque nem eles nem os alunos foram preparados (para o tema)”, opina.

A falta de instruções é tida como a fonte principal da disseminação do preconceito. “O problema começa em colocar fundamentalismo religioso antes do saber pedagógico. (As pessoas) precisam compreender que a escola não é seu quintal ou sua igreja”, opina Laysa Carolina Machado, 42 anos, diretora do Colégio Estadual Chico Mendes, em São José dos Pinhais, na Grande Curitiba – a primeira transexual a ser eleita para cargo semelhante no Brasil ( depoimento nesta página). “Há um déficit muito grande na formação do professor e também um medo de abordar certas questões”, opina a professora Marina.

Episódios como as hostilidades contra transgêneros no último Enem corroboram o cenário de despreparo. “Quando cheguei, a fiscal ficou questionando em voz alta na entrada da sala por que meu documento trazia nome e foto de homem”, relata Ana Luiza Cunha da Silva, 17 anos, aluna do 3º ano do Ensino Médio em uma escola particular em Fortaleza. O RG dela ainda foi conferido outras três vezes por funcionários diferentes até que um superior solucionasse o caso, registrando-o em um formulário de perda de documento, ela diz. Antes, porém, outra fiscal “ficou colocando a foto ao lado do meu rosto e dizendo ironicamente que não podia ser a mesma pessoa”. A estudante foi liberada após 30 minutos e só não perdeu tempo de prova porque chegou uma hora antes do início do exame.

O relato é semelhante ao da paraense Beatriz Marques Trindade Campos, 19 anos, que hoje cursa o 2º período de Direito na Unifemm, em Sete Lagoas (MG). “Entreguei meus documentos e a fiscal não me reconheceu, ficou perguntando se era eu mesma e gritou meu nome de batismo para me expor. Ela realmente não estava preparada”, lamenta.

Apesar dos constrangimentos, Ana Luiza e Beatriz são pontos fora da curva no que diz respeito ao apoio familiar. “Foi um choque, mas procuramos dar todo o apoio em sua vida”, afirma Fábio Luiz Ferreira da Silva, 39 anos, médico veterinário e pai de Ana Luiza (depoimento à pág. 26). A colaboração mais recente foi o pedido de mudança de nome na Justiça, protocolado por ele. O segredo da compreensão, afirma, é simples: “A gente se gosta muito lá em -casa e eu aprecio o debate de ideias. Focamos em tratar a pessoa como você gostaria de ser tratado. Não tem nenhum ensinamento a não ser o amor e o diálogo”. A maioria dos transgêneros, porém, não tem a mesma sorte: “Uma amiga transexual de 18 anos foi há pouco expulsa de casa e teve de trabalhar na prostituição”, relata Ana Luiza.

Inexiste consenso sobre o número de estudantes que questionem o próprio gênero no Brasil, muito menos sobre as taxas de evasão escolar desse público. Também faltam dados sobre o número de transexuais e travestis adultos, em parte porque não há no formulário do Censo do ¬IBGE questão específica sobre a identidade de gênero do declarante. “Estima-se que haja atualmente 2 milhões de trans no Brasil”, afirma a professora Marina.

Professor da PUC-SP e coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo, o psiquiatra Alexandre Saadeh, 52 anos, dá outra estatística sobre o número de pessoas que questionam o sexo anatômico na juventude. “Nos países ocidentais, a média é de um a cada 100 mil homens e de uma para cada 400 mil mulheres.” Composto de, aproximadamente, 15 profissionais de saúde, o núcleo que ele comanda provê, desde 2010, tratamento psicoterápico para adolescentes – são hoje cerca de 30 pacientes, seis dos quais crianças – e, neste ano, começou a praticar terapias hormonais.

Também falta consenso sobre a natureza do fenômeno, no que especialistas e transgêneros alternam compreensões ligadas à psiquiatria, à psicologia ou mesmo a nenhuma delas, em um movimento de “despatologização” da transexualidade.

“Os transexuais têm pouco acesso aos serviços de saúde e, por isso, vivem uma vulnerabilidade e uma situação de exclusão social”, afirma Judit Lia Busanello, 48 anos, psicóloga e diretora-técnica do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais. Vinculado ao Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, o núcleo oferece fonoaudióloga, endocrinologista, clínico geral, urologista, proctologista, psicólogo, psiquiatra e assistente social para um total de 1.860 pacientes cadastrados desde junho de 2009. Desses, 70% são mulheres transexuais (nascidas no sexo anatômico masculino), cujo tempo de acompanhamento chega, em média, a dois anos e meio. Sem contar a fila de três a seis meses: “hoje trabalhamos acima de nossa capacidade”, diz Judit.

“Até os anos 1980, as teorias em voga eram psicológicas. Hoje se correlaciona o transtorno de gênero ao desenvolvimento cerebral intrauterino”, defende Saadeh. Com base nesse entendimento de “um processo essencialmente biológico”, ele afasta a possibilidade de que crianças sejam transexuais por influência de outras pessoas ou questões sociais. O médico também rechaça a eventualidade de que transgêneros influenciem colegas. “Não acredito de maneira alguma nisso. Se assim fosse, todo mundo se contaminaria com a heterossexualidade, a orientação predominante”, afirma.

No Brasil, a cirurgia para mudança de sexo é feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e após os 21 anos, conforme parecer de 2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM). O tratamento hormonal é possível a partir dos 18, mas, em 2013, outro parecer do CFM recomendou o bloqueio da puberdade do gênero de nascimento (não desejado). A favor do retardo, os especialistas apontam fatores como a prevenção a sofrimentos psicológicos comuns nesse público, como depressão, anorexia e tendência a suicídio, além da oferta de mais tempo para aprimorar o diagnóstico e da prevenção a cirurgias mais invasivas no futuro. O parecer não tem força de lei e já enfrenta resistências. Ainda assim, pode direcionar protocolos sobre o tratamento e ampliar a oferta de acompanhamento médico.

O tempo é mesmo um obstáculo para quem questiona o gênero. A maioria sente desconforto desde a primeira infância e assiste impotente ao desenvolvimento, na anatomia, de sinais contraditórios com relação ao próprio sentimento. “A identidade de gênero se manifesta por volta dos 3 ou 4 anos. Deve-se ficar atento e buscar orientação de centros especializados”, diz o psiquiatra Saadeh. Ele condiciona o diagnóstico à convicção “responsável, duradoura e consistente” e defende que a criança use o nome e as roupas que desejar. Também é importante, diz, que os pais orientem professores e assistam os filhos em sua transformação na escola. “Todas as crianças que acompanhamos estão bem adaptadas e vivem 24 horas assim. Se antes eram meninos deprimidos, irritados, agressivos, agora são meninas doces, que interagem com os outros. O ganho é o bem- estar psicológico de não mais sentir que se está fazendo algo errado”, ele diz.

Leonardo Tenório, da Associação Brasileira de Homens Trans, defende a criação de políticas específicas nas Secretarias de Educação. Para ele, a descentralização da educação pública brasileira atrapalha. “Cada escola tem seu próprio Plano Político Pedagógico. Dependemos da sensibilidade de cada gestor”, explica.

A criação de leis para articular a inclusão escolar dos transgêneros e proteger seus direitos nas escolas é um dos sonhos do estudante Leonardo Carvalho. “Este é o meu último ano na escola, mas sei que os muitos trans que virão depois vão sofrer também”, conta. “Penso que seria mais justo o Enem disponibilizar a opção para transgêneros já na ficha de inscrição”, defende Silva, o pai de Ana Luiza. Na visão dele, isso ajudaria a evitar constrangimentos amplificados pelo fato de que as salas do exame são usualmente divididas conforme o nome de candidatos e candidatas.

Para quem vive a causa ou a defende, a prioridade é combater a invisibilidade a que a sociedade submete quem questiona o sexo biológico. A demanda mais recorrente ouvida pela reportagem foi pela inserção da pergunta específica de gênero no Censo. Segundo o IBGE, antes da realização do próximo Censo, em 2020, o instituto vai, como de costume, consultar a sociedade para avaliar a necessidade e a conveniência de “revisão dos tópicos tradicionalmente investigados” e de “novas necessidades de dados, sempre observando as recomendações internacionais”. A diretora paranaense Laysa, que também é atriz e escritora, sintetiza esse sentimento comum: “Espero que em alguns anos possamos nos ver em novelas e em outros papéis que não sejam os da palhaça caricata ou da trans assexuada”.

Sempre soube da minha condição. Na infância era natural. Eu nunca achei errado. Foram os outros que colocaram na minha cabeça que vestir roupas femininas ou brincar de boneca era ruim.

Fui discriminada em todas as instituições em que estudei e tentei sublimar minha essência. No dia 31 de dezembro de 1999, porém, iniciei minha vida trans. Perdi empregos e busquei na estabilidade de um concurso público a chance de viver plenamente minha identidade de gênero.

Iniciei minha carreira como professora de História, Geografia e Teatro. Sou diretora desde 2009, quando fui eleita com meus dois amigos Gisele Dalagnol e Ivan Araújo. Cuidamos de, aproximadamente, 1,6 mil alunos dos Ensinos Médio e Fundamental. Minha relação com eles é ótima, e com os pais também. Sou respeitada e me sinto querida, acolhida e amada.

Há três anos, Ana Luiza nos contou que se sentia uma mulher em um corpo masculino. Já dava sinais, mas pensávamos que podia ser questão de influência, de andar só com meninas.

Conversamos em uma reunião em família. Foi uma semana sem dormir. Mas se para mim e minha esposa foi difícil, me coloco no lugar dela, alguém de 13, 14 anos que ensaia noites a fio como dizer algo tão difícil.

Nossa família é muito católica. Os mais próximos vão sabendo aos poucos. É um processo. O nome, por exemplo. Chamávamos de Luiz Claudio, depois de Lu. E meu filho mais novo me cobrava, mas achei melhor ser natural do que agir com hipocrisia. Liberamos aos poucos roupa,  maquiagem.

A aparência dela mudou muito no último ano. Tem psicóloga, mas é duro achar psiquiatra e endocrinologista que atendam o caso.

Alguns nos criticam por sermos apoiadores. Acham que desprezar ou botar pra fora de casa poderia resolver, como se fosse algo que a pessoa escolhe. Mas ninguém decide passar por isso. A vida é um fenômeno que acontece. Depois que você está instalado, aprende a viver.

Rejeição e intolerância

Uma das poucas aferições já realizadas no Brasil sobre a transfobia (aversão a transexuais e transgêneros) revelou que 24% das pessoas não gostariam de se encontrar com transexuais (10% disseram sentir repulsa/ódio e 14%, antipatia) e 22% não gostariam de dividir espaço com travestis (repulsa/ódio e antipatia foram citados por 9% e 13%, na ordem). Os dados são da pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, da Fundação Perseu Abramo. De acordo com o 2º Relatório sobre Violência Homofóbica, em 2012 foram registradas 3.084 denúncias de violações à população LGBT, com 4.851 vítimas e 4.784 suspeitos – alta de 166% perante a 2011. No período, foram reportadas 27 violações homofóbicas de direitos humanos por dia. Em 2011, 10,6% das vítimas foram travestis, enquanto mulheres trans foram 1,5% e homens trans, 0,6%. Já em 2012, o porcentual de travestis e transexuais agredidos caiu para 1,4% e 0,49%, na ordem. Para a Secretaria de Direitos Humanos, contudo, a queda não denota diminuição da violência, mas crescente “invisibilização” de uma população vulnerável.

Serviço:
  • Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SPRua Santa Cruz, 81, Vila Mariana, São Paulo, SP. Tel (11) 5087-9833
  • Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) – Hospital das Clínicas Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785, São Paulo, SP. Tel (11) 2661-8045
  • Disque Direitos Humanos Disque 100 http://www.sdh.gov.br/
  • Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais Avenida Afonso Pena, 867, Sala 2.207, Belo Horizonte , MG. Tel. (31) 8817-1170. www.abglt.org.br
  • Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. E-mail: direitoshumanos@sdh.gov.br.Tel(61) 2025-9617


Disponível em http://www.cartanaescola.com.br/single/show/262. Acesso em 07 jan 2014.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Transexualidade, segundo o Wikipedia

Wikipedia

Resumo: Transexualidade é a condição considerada pela OMS como um tipo de transtorno de identidade de gênero, mas pode ser considerada apenas um extremo do espectro de transtorno de identidade de gênero. Refere-se à condição do indivíduo que possui uma identidade de gênero diferente da designada ao nascimento, tendo o desejo de viver e ser aceito como sendo do sexo oposto. Usualmente, os homens e as mulheres transexuais apresentam uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e desejam fazer uma transição de seu sexo de nascimento para o sexo oposto (sexo-alvo) com alguma ajuda médica (terapia de reatribuição de gênero) para seu corpo. A explicação estereotipada é de "uma mulher presa em um corpo masculino" ou vice-versa, ainda que muitos membros da comunidade transexual, assim como pessoas de fora da comunidade, rejeitem esta formulação.

sábado, 27 de julho de 2013

Os dilemas da transexualidade

Jade Curvello
Pedro Pimenta
19 de setembro de 2012

Descrito tradicionalmente pela medicina como patologia psiquiátrica, a transexualidade é considerada uma desordem mental, ou ainda um transtorno da identidade sexual. No entanto, os tempos mudaram, as ideias evoluíram e sua abordagem como transtorno mental está relacionada a normas sociais e culturais. Diante disso, a tendência atual é considerar a transexualidade uma condição de gênero, e não um distúrbio.

Assunto polêmico na área científica, a cirurgia de readequação de sexo é uma alternativa encontrada para necessidades psíquicas e físicas. Entretanto, questões éticas e até religiosas costumam impor limites à realização do procedimento. Seu custo e tempo de espera acabam por desmotivar alguns candidatos à readequação. Regularizada no Brasil em 2002, a transgenitalização não é apenas o procedimento cirúrgico, mas um processo complexo que inclui o tratamento psicológico antes e depois da cirurgia.

Segundo os especialistas da área, a cirurgia acontece em média na razão de nove homens para uma mulher, dado explicado pela maior divulgação de casos de mulheres trans – homens que fazem a operação. O fato ocorre porque há uma “maior viabilidade técnica” na realização da operação neste caso.

O professor da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj e médico do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro, Miguel Chalub, explica que “é necessária uma observação médica durante dois anos antes de se implementar a cirurgia. Não se trata propriamente de tratamento pré-cirúrgico, pois as pessoas não são ‘doentes’. O que se procura é prepará-las para a cirurgia e a nova identidade”.

Nesta linha, também pensa a doutora em Saúde Coletiva pela Uerj, Daniela Murta, cuja tese de doutorado se baseia na despatologização da transexualidade. Segundo ela, o fato da pessoa se identificar como transexual não torna obrigatório o atendimento psicológico, e o auxílio será feito somente para a reflexão daquilo que lhe causa sofrimento.

A pesquisadora explica que essa mudança na forma de abordagem ocasionaria transformações na sociedade e na vida da população transexual. “Essas pessoas não precisariam depender de um diagnóstico para acessar os serviços de saúde e se autodeterminar, também não conviveriam com o estigma de ser portador de um transtorno”, analisa.

Daniela também conta que a transexualidade é vivida de forma singular por cada paciente, e que a desistência é causada por diversos motivos. “As causas podem ser desde a percepção de que um determinado procedimento não é mais um desejo dessas pessoas, e até mesmo uma questão clínica que inviabiliza a realização de uma cirurgia”.

Apesar de estar disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008, o processo de transgenitalização ainda enfrenta dificuldades de execução, como, por exemplo, estar disponível somente para mulheres trans, e principalmente o que diz respeito à demora em sua realização. Há pessoas que esperam anos na fila de atendimento, o que ocasiona, por vezes, uma migração para o serviço privado ou até mesmo no exterior.

A doutora em Saúde Coletiva atenta para outra questão e encerra: “muitas vezes as pessoas acabam não realizando o procedimento por razões que estão relacionadas a uma incerteza diagnóstica dos profissionais, que acabam por vetar a realização da cirurgia”.


Disponível em http://www.folhadointerior.com.br/v2/page/noticiasdtl.asp?t=OS+DILEMAS+DA+TRANSEXUALIDADE&id=50501#.UF2pMsbBe-Q.facebook. Acesso em 25 jul 2013.

sábado, 22 de junho de 2013

Criança tem diagnóstico raro de transtorno de identidade de gênero

O Dia
21.02.2012

Aos cinco anos, o menino britânico Zach Avery é uma das pessoas mais jovens já diagnosticadas com transtorno de identidade de gênero. Desde os três, o pequeno, que mora em Essex, Inglaterra, recusa-se a se vestir com roupas masculinas. Os pais de Zach ficaram preocupados com o comportamento do filho, que ficou obcecado com a personagem de TV “Dora, a exploradora”, e decidiram levá-lo ao médico.

Depois de várias consultas e observações, ele foi diagnosticado por especialistas com transtorno de identidade de gênero. A mãe de Zach, Theresa, contou que o filho sempre se comportou como menino,mas, de repente, no fim de 2010, começou a agir de forma diferente.

“Ele se virou para mim um dia, quando tinha 3 anos, e disse: ‘Mamãe, eu sou uma menina’. Presumi que ele estava apenas passando por uma fase. Depois, ele passou a ficar chateado quando alguém se referia a ele como um menino”, contou a mãe.

Agora, os pais se esforçam para que Zach leve uma vida normal. A escola em que ele estuda, inclusive, disponibilizou um banheiro neutro, para meninos e meninas.


Disponível em http://odia.ig.com.br/portal/cienciaesaude/crian%C3%A7a-tem-diagn%C3%B3stico-raro-de-transtorno-de-identidade-de-g%C3%AAnero-1.410096. Acesso em 04 jun 2013.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Transexual pode se descobrir já na primeira infância, dizem especialistas

Luna D'Alama
03/03/2013

A identificação com o sexo oposto e o eventual desejo de uma pessoa em assumir uma nova identidade de gênero começa geralmente na primeira infância, entre os 4 e 6 anos de idade, segundo o psicólogo clínico e psicanalista Rafael Cossi, autor do livro "Corpo em obra", lançado em 2011 após análise de seis biografias de transexuais.

Na última semana, o G1 publicou a história do menino americano Coy Mathis, de 6 anos, que se identifica como menina e é aceito pelos pais, mas tem tido problemas na escola ao querer usar o banheiro feminino. Segundo a família, Coy age assim e brinca com bonecas desde que tinha 1 ano e meio.

"Nessa idade, ainda não dá para falar se a criança será um transexual no futuro. Isso porque não se sabe até que ponto ela só está brincando de se comportar como alguém do outro sexo ou se esse já é um indício de transexualidade", diz.

Transexual é a pessoa que tem um transtorno mental e de comportamento sobre sua identidade de gênero, ou seja, nasce biologicamente com determinado sexo, mas se vê pertencente a outro e cogita fazer tratamentos hormonais e cirurgia para mudar o corpo físico. Ao contrário do que já acreditaram psicanalistas no passado, esse não é um caso de psicose, com alucinações e delírios, defende Cossi.

Brincadeira de criança – ou não

De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo, casos como esse sempre existiram, e é importante diferenciar uma simples brincadeira de um comportamento constante.

Nessa idade (até os 6 anos), ainda não dá para falar se a criança será um transexual no futuro"
Rafael Cossi,
psicólogo clínico e psicanalista

"É muito comum crianças inverterem os papéis, e quando é algo pontual não há maiores problemas. Mas, se isso se tornar um hábito frequente, diário, o menino querer mudar de nome, usar presilha e brinco, é indicado que os pais e o filho passem por uma avaliação profissional antes de qualquer coisa, para ver se essa é uma questão familiar que a criança está tentando resolver dessa forma ou se já é um transtorno de gênero", afirma.

O médico diz que cada caso precisa de um acompanhamento diferente e individualizado. Se houver realmente um transtorno, ser violento com a criança e censurá-la pode piorar muito a situação.

"A escola também não deve reprimir, mas chamar os pais, explicar o que está acontecendo e aproveitar essa oportunidade para educar também com as diferenças. E não é porque uma criança vê outra fazendo algo que vai querer imitá-la, elas não são macaquinhos", destaca Saadeh.

Na opinião do psicólogo Rafael Cossi, os pais têm que acompanhar o que está acontecendo e não adianta julgar, proibir, punir ou bater.

"Se houvesse uma mentalidade mais aberta e liberal dos pais, a escola aceitaria melhor. O medo do colégio é de como isso repercute para as famílias e a possibilidade de perder alunos de uma hora para a outra", diz.

Segundo Cossi, o preconceito da escola não é apenas contra transexuais e homossexuais, mas contra deficientes, pessoas com síndromes e tudo o que foge ao que é caracterizado "normal" – desde uma falta de uniforme até um cadarço ou cabelo colorido.

"Já os pais costumam dizer que ficam preocupados não tanto com o fato de o filho ser diferente, mas como será a vida dele em sociedade, se os colegas vão tirar sarro, pois existe muita discriminação", afirma.

Cossi cita o filme francês "Tomboy", de 2011, que conta a história da menina Laure, de 10 anos, que muda de cidade e se apresenta aos novos amigos como Mikhael. Até então, o fato de ela se vestir e se comportar como um menino não parecia incomodar a mãe, mas, quando ela fica sabendo que a criança "mudou" de nome, rejeita a situação.

"O filme é muito bom, é um relato, e não faz questão de dar nenhuma pista sobre qual vai ser o futuro da menina. Isso fica em aberto", aponta.

A escola não deve reprimir, mas chamar os pais, explicar o que está acontecendo e aproveitar essa oportunidade para educar também com as diferenças"
Alexandre Saadeh,
psiquiatra do HC-SP

Corpo x gênero

O psiquiatra do HC Alexandre Saadeh explica que há um componente biológico muito importante na questão da identidade de gênero.

"Hoje em dia, sabe-se que existe um cérebro feminino e um masculino, determinado no útero da mãe por hormônios masculinos circulantes. E isso interfere no desenvolvimento cerebral para uma linhagem feminina ou masculina. A cultura e o ambiente também têm importância, mas a determinação é biológica", acredita o médico.

Segundo o psicólogo Rafael Cossi, a ideia de dimorfismo corporal entre homens e mulheres, ou seja, indivíduos da mesma espécie com características físicas (não sexuais) claramente diferentes, só ganhou força com os avanços da biologia no século 19.

"Até então, prevalecia a ideia de isomorfismo, em que o corpo feminino era visto apenas como uma versão do masculino. A vagina era considerada um pênis invertido e o calor era o diferencial dos corpos, pois a temperatura do homem era mais alta que a da mulher", afirma.

O psicólogo cita o livro "Inventando o Sexo – Corpo e gênero dos gregos a Freud", em que o historiador e sexólogo americano Thomas Laqueur estuda como o corpo foi encarado em vários momentos históricos. Cossi também destaca que desejo sexual, gênero e identidade sexual são conceitos bem distintos.

"Uma coisa é o desejo, a orientação, a prática sexual. Outra é o gênero, como a pessoa se vê, seus gostos e comportamentos – algo cultural, social, que varia com o tempo. Essa é a ideia do que um homem ou uma mulher faz, como pensa, como se veste, quais traços o definem. Já a identidade sexual envolve uma noção de inconsciente, inclui o fator psíquico, de como o sexo se constrói na mente e reconhece o que é homem e o que é mulher", esclarece.

É por isso que, segundo o psicólogo, existem transexuais lésbicas ou gays, ou seja, pessoas que se transformam fisicamente com cirurgia e hormônios, mas não necessariamente se atraem pelo sexo oposto. "Nossa mentalidade ainda é muito heterossexual", ressalta.

'Sofria muito por ser diferente'

A transexual Brunna Valin, de 38 anos, conta que desde os 7 anos já sabia muito bem que não gostava de meninas. Aos 11 anos, vieram as brigas no colégio, as surras dos meninos, até que ela deixou a escola na 7ª série do ensino fundamental.

"Eu sofria muito por ser diferente. Com 12 anos, já me apresentava como Brunna e me vestia de menina, com saia, sapato de salto, batom, brinco. Queria ser igual à Roberta Close, era um espelho", lembra.

Em casa, dentro de uma família religiosa, em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, a transexual também encontrou rejeição. Após apanhar algumas vezes, deixou os pais aos 14 anos e foi morar com a avó, depois com uma prima, até ficar sozinha.

"Tenho mais sete irmãos – dois homens e cinco mulheres. Só um irmão me aceita muito bem. No começo, para eles eu era gay, não entendiam essa questão de gênero. Meu pai morreu há três anos, ainda não aprovando", revela.

Brunna mora há dois anos na capital paulista, onde trabalha como orientadora sócio-educativa no Centro de Referência da Diversidade da ONG Grupo pela Vida, e visita a família apenas uma ou duas vezes por ano.

"No fim de 2012, fui lá passar o Ano Novo e contei que vou fazer a mudança de sexo. Percebi a rejeição no olhar, na fala deles. Ficaram perguntando se já consegui trocar de nome, se já está no RG. Enfrento isso todo dia, pois a sociedade nos vê como diferentes", diz.

Com 12 anos, já me apresentava como Brunna e me vestia de menina, com saia, sapato de salto, batom, brinco. Queria ser igual à Roberta Close, era um espelho"
Brunna Valin,
transexual

A transexual, que foi profissional do sexo dos 14 aos 36 anos, voltou a estudar e agora está prestes a concluir o ensino fundamental. Este ano, pretende começar o médio e, depois, quer fazer faculdade de psicologia. No currículo, ela também acumula cursos de formação de costureira, cabeleireira e cozinheira.

Além disso, Brunna tem passado por um acompanhamento com vários profissionais no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, da Secretaria de Estado da Saúde. A meta é se submeter à cirurgia de mudança de sexo em 2014 – da qual não tem medo de se arrepender.

"Tomo hormônio desde os 15 anos, e hoje aplico uma injeção mensal à base de progesterona. Em maio do ano passado, coloquei silicone nos seios e agora estou tirando os pelos do corpo com laser. Já fiz no rosto e vou para os braços. Em agosto, também quero pôr prótese nos glúteos, porque as características femininas estão no corpo inteiro, não é só fazer uma vagina. Hoje nem gosto de olhar muito, aquilo não é meu", diz.

Dois anos de preparação

Antes de toda cirurgia para mudança de sexo, o Sistema Único de Saúde (SUS) exige que a pessoa, com mais de 21 anos, faça pelo menos dois anos de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, no qual seja diagnosticada com distúrbio de identidade de gênero.

No ambulatório de São Paulo, criado em 2009 e considerado o primeiro do tipo no país a atender exclusivamente travestis e transexuais, há atualmente 1.500 pessoas cadastradas. Desse total, 65% (975) se consideram transexuais – 915 são homens biologicamente que se sentem como mulheres e 60 são o contrário. Os outros 35% são travestis que desejam tomar hormônios e mudar a aparência, mas não pretendem fazer a operação.

"Esses dois anos de acompanhamento que oferecemos com psicoterapeuta, psiquiatra e endocrinologista servem para a pessoa ter certeza sobre a cirurgia"
Angela Peres,
diretora técnica do ambulatório
para travestis e transexuais de SP

"Esses dois anos de acompanhamento que oferecemos com psicoterapeuta, psiquiatra e endocrinologista servem para a pessoa ter certeza sobre a cirurgia. Aí fazemos o encaminhamento ao HC. Nesse período, alguns desistem. Outros vão para a Tailândia, mudam de sexo e se arrependem, porque lá não existe todo esse protocolo daqui", diz a diretora técnica substituta do ambulatório, Angela Peres.

Segundo ela, o local conta com uma equipe de 30 profissionais – entre clínicos gerais, endocrinologista, psiquiatra, psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, urologista, ginecologista, proctologista, assistentes sociais e recepcionistas – e atende brasileiros de vários estados, como Minas Gerais, Bahia e Acre.

Cirurgia, felicidade ou arrependimento

Em 14 anos, o HC de São Paulo já operou 50 pacientes para mudança de sexo, a maioria homem que se sente mulher, segundo o chefe de urologia pediátrica e disfunção sexual do hospital, Francisco Dénes.

"Nunca vi um caso de alguém que tenha se arrependido. Isso ocorre quando o paciente é mal orientado", ressalta.

Para trocar do sexo masculino para o feminino, em geral são feitos tratamento hormonal e uma única cirurgia de 4 horas. Já o inverso exige duas ou mais operações de cerca de 3 horas. Apesar de o primeiro caso, em que há a desconstrução do pênis e dos testículos para a formação de uma vagina, parecer mais tranquilo, o urologista diz que pode exigir retoques, ter mais problemas anatômicos, risco de infecção, abertura dos pontos ou necrose (morte do tecido).

"Eu achava que a minha felicidade era embasada na cirurgia. Fiquei mais à vontade, mas um pênis e uma vagina não trazem felicidade para ninguém. Nunca vou ser 100% mulher. Calço 42, minha mão é enorme, meu ombro é largo"
Lea T,
transexual

O pós-operatório envolve o uso de curativos, sonda e pelo menos sete a dez dias de repouso no hospital. Se não houver problema, a pessoa pode voltar logo às atividade normais. E nos dois anos seguintes, pelo menos, deve fazer acompanhamento médico.

Em entrevista ao Fantástico, em janeiro, a transexual Lea T, filha do ex-jogador de futebol Toninho Cerezo, disse que se arrepende de ter feito a troca de sexo em março do ano passado e que não aconselha o procedimento para ninguém. Ela foi operada na Tailândia e passou um mês e meio no hospital sentindo dores.

"Eu achava que a minha felicidade era embasada na cirurgia. Fiquei mais à vontade, mas um pênis e uma vagina não trazem felicidade para ninguém. Nunca vou ser 100% mulher. Calço 42, minha mão é enorme, meu ombro é largo. Quando fiquei deitada na cama, entendi que isso tudo é uma bobeira. É um detalhe importante para a sociedade", disse na época.

Segundo o psicólogo Rafael Cossi, ver a cirurgia como forma de "normalização" social, para se adequar ao pensamento heterossexual, é uma das maiores críticas à mudança de sexo. Ele cita o site sexchangeregret.com, em que um grupo de transexuais arrependidos após a operação contesta a ideia de que a troca de sexo é o fim para todos os males.

"Muitas pessoas não ficam em paz consigo mesmas, não têm benefícios nem se veem de uma forma mais tranquila. Algumas desenvolvem problemas que não tinham antes, como alcoolismo ou dependência de drogas. Isso porque a cirurgia não altera só a imagem corporal para pertencer a outro sexo, mas tem várias complicações, pelo fato de o indivíduo passar a apresentar outro status na vida, um novo nome e ser visto de maneira diferente pela sociedade", explica.

Mas, por outro lado, tem gente que é muito beneficiada com a cirurgia, diz o psicólogo. "É caso a caso. Para a (ex-BBB) Ariadna, por exemplo, pelo que ela deu de entrevista, foi algo muito bom", ressalta.

Desde 2008, o SUS já fez 2.451 cirurgias de mudança de sexo de homem para mulher, único grupo de pacientes atendido atualmente, pelo fato de o Ministério da Saúde considerar que são casos mais comuns (três homens para uma mulher), mais bem padronizados e aprovados pelos conselhos de medicina.


Disponível em http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/03/transexual-pode-se-descobrir-ja-na-primeira-infancia-dizem-especialistas.html. Acesso em 04 jun 2013.