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terça-feira, 2 de julho de 2013

Relações homoafetivas: avanços e resistências

Maria Consuêlo Passos
junho de 2011

Há algumas semanas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou a lei que regulamenta a união estável entre pessoas do mesmo sexo, tornando-a, do ponto de vista legal, equivalente à de casais heterossexuais. Isto significa a validação no plano jurídico de várias conquistas civis: o direito à herança do companheiro, ou companheira, pensão alimentícia em caso de separação, possibilidade de fazer declaração conjunta do imposto de renda e – um passo fundamental – o direito à adoção de filhos, o que antes era permitido apenas a um dos membros do casal.

A medida modifica o contexto nebuloso e enigmático das relações homoafetivas, conferindo a elas caráter de legitimação jurídica, o que não é pouco quando se trata da vida conjugal e familiar, em grande medida regulada por diretrizes do Estado. Entretanto, é preciso ter cautela em relação a esses ganhos, já que as transformações psicossociais engendradas nestes mesmos parâmetros jurídicos exigem um processo lento e contínuo de superação de resistências e preconceitos. Essa constatação nos leva a antever um longo e difícil tempo de tensões e conflitos até que seja possível o reconhecimento social de qualquer tipo de escolha amorosa e de constituição de família – desde que essa escolha não negue a responsabilidade ética de respeitar o direito do outro, um código fundamental da convivência humana.

Não é possível ignorar, por exemplo, as dificuldades enfrentadas há várias décadas, quando os casais heterossexuais conquistaram o direito de se separar e constituir novas famílias. Nessa época – assim como agora em relação aos direitos recém-conquistados pelos homossexuais – havia não só muitos preconceitos que fragilizavam moralmente aqueles que de forma legítima buscavam saídas para os casamentos infelizes, mas também muitos estigmas -  recaíam sobre os filhos, vistos como problemáticos. Não raro, eram dirigidos a essas crianças e adolescentes presságios de adoecimentos morais e psíquicos. Passados vários anos, estamos hoje muito longe da confirmação de tais vaticínios, embora seja possível reconhecer que a separação dos pais pode resultar em maior ou menor sofrimento para os filhos, dependendo da maneira como os desenlaces conjugais são vividos e resolvidos.

Face à legalização da união estável entre casais homossexuais, uma pergunta não para de reverberar: o que este ganho jurídico pode mudar, do ponto de vista psicossocial, na vida dos casais e famílias até então envoltos em estigmas, violências e proibições morais de exercer seus legítimos direitos de constituir relações amorosas e viver com as pessoas que escolheram para reinventar a vida?

Em meio à vibração dos militantes pelos direitos das minorias e mesmo dos simpatizantes da igualdade dos direitos civis entre cidadãos, observamos certa exacerbação das resistências à aprovação da lei. No Congresso Nacional, poucos dias depois, alguns deputados se insurgiram contra a emenda que criminaliza a homofobia no país, tumultuando o debate e inviabilizando a votação da proposta. Essa reação certamente tem muitos adeptos. Volta e meia vemos grupos que praticam atrocidades contra homossexuais, como as - registradas por câmeras na avenida Paulista, em São Paulo. No país inteiro encontramos verdadeiras cruzadas - homofóbicas que tentam exterminar aquele cujo “crime” é praticar o exercício da sexualidade nem sempre aceita socialmente.

Diante dessas constatações podemos indagar: por que o desejo do outro nos ameaça tanto? Há mais de um século a psicanálise revelou que nossos grandes temores não vêm do outro, daquele que é diferente de nós (embora muitas vezes pareça que sim), mas daquilo que desconhecemos em nós mesmos, e, exatamente por isso, repudiamos aquele que é diferente, depositamos nele algo de “maldito”, algo de que tentamos nos libertar. Se levarmos em conta essa inflexão, precisamos encarar a homofobia como uma impossibilidade de aceitação do que há em nós, como a rejeição de uma parte negada e temida de nós mesmos.

Ao mesmo tempo é possível pensar que os homossexuais ameaçam os heterossexuais também pela forma como buscam ser felizes em suas relações, enfrentando as adversidades e tentando encontrar nelas saídas para os conflitos e rejeições a que são expostos. Isso parece conferir certa autonomia associada à vida dos casais homoafetivos. Sem querer romantizar experiências, a liberdade de seguir um caminho (pelo menos aparentemente) alternativo, expressa por gays e lésbicas, é muitas vezes ameaçadora. E tais temores são de difícil erradicação, pois mostram o que há de enigmático em nós mesmos. Embora várias frentes revelem mudanças importantes na forma de viver o afeto e o erotismo, ainda prevalece o tabu que, em grande parte das sociedades, envolve o exercício da sexualidade.

À medida que surge maior abertura nos contornos sociais, verificamos uma visão mais libertária do novo e, em consequência, -possibilidades mais amplas de conviver com o diferente – tanto em nós quanto no outro. Exemplo disso é o sistema patriarcal que por muitos anos nos impôs a autoridade exclusiva do pai e a verticalização das relações no interior da família. Hoje, perdido o poder hegemônico, vemos as relações afetivas se tornar cada vez mais horizontais, e a autoridade se diversifica revelando diferentes (e ricas) facetas.

É preciso considerar também que transformações de valores culturais e mentalidades se dão lentamente: dependem, sobretudo, dos processos de socialização, em particular os primários, vividos nas relações com nossos pais, responsáveis pelas primeiras transmissões mediadas pelos afetos. Dito de outro modo, os valores chegam até nós no momento em que somos totalmente dependentes afetivamente daqueles que nos apresentam esses princípios e, portanto, estamos nessa fase incapazes de contestá-los. Se, por um lado, essas condições facilitam a internalização de valores, por outro, mais tarde dificultam sua erradicação. Crescemos com aquilo que herdamos ainda na infância e só muito devagar nos libertamos de alguns conceitos que assimilamos – pelo menos inicialmente –, impossibilitados de questionar. Possíveis mudanças dependem da capacidade de flexibilizar-se, e isto, por sua vez, advém da estrutura psíquica de cada um e até mesmo do grau de saúde mental e da habilidade de “reinventar-se” de forma mais livre. Em outras palavras, as transformações processadas na sociedade não são simultaneamente introjetadas. É preciso, antes, amadurecer as novas ideias.

De qualquer modo, é na articulação entre os âmbitos jurídico, cultural e psíquico que surgem grandes metamorfoses na sociedade. Provavelmente veremos isso a partir de agora, quando a legitimação da união estável tornar mais visíveis as relações homoafetivas, facilitando as diferentes formas de concepção dos filhos e o reconhecimento dessas crianças, sem que seja necessário cobri-las com o manto da dissimulação e da vergonha que até então as acolhia. Penso que, enquanto não promovermos um desarmamento moral, capaz de suportar o potencial humano para ser diferente, estaremos sempre vulneráveis à violência e à solidão. Os ganhos, agora conferidos aos homossexuais, só tornam mais evidentes as perguntas que deveríamos nos fazer cotidianamente: que direito temos nós de condenar o desejo do outro, uma vez que esse desejo é, também, parte de nós mesmos? Que direito temos de dizer ao outro como deve conduzir sua vida afetiva?

A maneira de conviver com a homossexualidade modificou-se ao longo dos anos. Comportamentos vistos como absolutamente normais na Antiguidade foram rotulados de degenerados no século 19. E só recentemente essa expressão da sexualidade deixou de ser considerada uma doença mental. Na edição de 1968 do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), obra de referência para psiquiatras, a atração por pessoas do mesmo sexo aparecia no capítulo sobre desvios, classificada como um tipo de aberração.

Foram os próprios gays que, cansados de ser taxados de aberrações, começaram a defender a ideia de que sua orientação não era patológica. Um momento histórico na transformação dessa forma de pensar ocorreu após uma violenta ação policial no Stonewall Inn, bar gay no Greenwich Village, em Nova York, em 28 de junho de 1969. Nos cinco dias seguintes, uma multidão continuou a se reunir no local, protestando contra a discriminação e exigindo direitos iguais para homossexuais. Conhecido como rebelião de Stonewall, o evento é considerado a marca inicial para a maior aceitação cultural da homossexualidade no mundo todo.

Quatro anos mais tarde, a Associação Americana de Psiquiatria (AAP) começou a reavaliar essa questão. Uma comissão liderada pelo médico Robert L. Spitzer, da Universidade de Colúmbia, recomendou que o termo “homossexualidade” fosse retirado da edição seguinte do DSM, mas a sugestão não surtiu efeitos práticos. Pouco depois de os dirigentes da AAP votarem a favor da alteração, 37% dos psiquiatras consultados sobre o tema disseram ser contrários à mudança. Alguns chegaram a acusar a associação de “sacrificar princípios científicos em nome dos direitos civis”.

Nos anos 90, grande parte dos psicólogos ainda argumentava que a homossexualidade era um distúrbio psíquico. Para defender esse ponto de vista, muitos se apoiavam na penúltima edição da Classificação internacional de doenças (CID-9), de 1985, que considerava essa orientação formalmente patológica. Atualmente, porém, os conselhos regionais de psicologia (CRPs) são claros em orientar os profissionais da área para que não tratem a homossexualidade como distúrbio, a manifestação de preconceitos pode deflagrar processos e punições.

O preconceito em relação à homossexualidade muitas vezes é dissimulado e, apesar das transformações culturais, em certos meios persiste a ideia de que essa orientação é uma doença que precisa ser “curada”. Alguns defensores de terapias que se propõem a isso buscam respaldo na teoria de Sigmund Freud (1856-1939), cujas palavras foram tantas vezes descontextualizadas e interpretadas de maneira tendenciosa. As formulações do autor passaram por diferentes momentos e sofreram acréscimos significativos ao longo de sua obra, o que permite variadas interpretações, dependendo do texto que for tomado como referência. Em artigo de 1930 no qual discute o caso de uma moça que se apaixona por uma jovem senhora da sociedade, por exemplo, Freud considera que, quando uma mulher escolhe outra como objeto de amor, revela uma fixação infantil – não necessariamente decepção com o pai. Fixações, entretanto, não são exclusividade dos homossexuais – nem podemos procurar “culpados” por elas. As diferentes preferências – e consequentes escolhas ou negações – revelam singularidades e fatores inconscientes de cada pessoa.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/relacoes_homoafetivas_avancos_e_resistencias.html. Acesso em 29 jun 2013.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Controlando o preconceito

Suzana Herculano-Houzel
06 de agosto de 2012

Ser capaz de analisar e responder às circunstâncias de maneira imparcial, desvinculada de preferências, de valores arbitrários ou da memória de acontecimentos anteriores, parece altamente desejável – o caminho para uma vida sem preconceitos. Na prática, porém, essa análise imparcial é quase impossível: somos limitados por vieses do cérebro, isto é, seus “pré-conceitos”. E isso não é ruim.

Muitas vezes é preciso decidir e agir rápido. Visitando um país desconhecido, você acreditaria que é viável andar de ônibus? Você confiaria sua câmera a qualquer passante para tirar uma foto sua? Boa parte do que fazemos e decidimos tão rápido depende de ideias que o cérebro formula automaticamente a partir de generalizações baseadas em nossas experiências prévias, antes que nos demos conta do processo. Esses são nossos pré-conceitos: noções concebidas anteriormente, prontas para serem usadas na hora do aperto, quando uma decisão rápida for necessária.

Quando bem fundamentados em experiências, os pré-conceitos costumam se mostrar acertados e úteis, pois refletem regras aprendidas ao longo da vida. Voltemos ao país desconhecido: ônibus conservados em geral possibilitam uma viagem mais segura; ruas limpas, iluminadas e cheias de transeuntes tendem a ser tranquilas; uma pessoa bemvestida tem boas chances de saber operar sua câmera – e de não sair correndo com ela.

Por serem altamente pessoais, os julgamentos automáticos ajudam a tomar as decisões mais ajustadas para cada um. Eles são amplos e transparecem em várias ocasiões. Por exemplo, não é preciso processar de forma consciente os atributos físicos e intelectuais alheios para sentir quem nos atrai. A atração acontece antes da explicação, como uma racionalização pós-fato.

Contudo, alguns julgamentos não são baseados em experiências, mas apenas em valores pessoais que não necessariamente correspondem à realidade. São fundados em temores injustificados, em doutrinas arbitrárias ou dogmas religiosos ou políticos. Esses são os “pré-conceitos preconceituosos”. Infelizmente não faltam exemplos: homens devem ser mais inteligentes do que mulheres, negros são mais violentos que brancos, seguidores desta, daquela ou de nenhuma religião são imorais e pouco confiáveis.

Curiosamente, é comum que as próprias pessoas que são alvo de discriminações desenvolvam preconceitos no mesmo sentido. Um estudo com voluntários americanos constatou que a amígdala cerebral, fonte de respostas emocionais automáticas, reage mais veementemente, o que sinaliza ansiedade, a retratos de rostos desconhecidos de negros – isso ocorreu tanto nos participantes negros como nos brancos. Da mesma forma, todos associaram mais facilmente palavras negativas aos primeiros, e positivas aos últimos.

Preconceituosos ou não, a questão é que os pré-conceitos influenciam nossas escolhas e o que deveria ser vantagem vira problema quando nossas decisões prejudicam os outros sem qualquer razão. Felizmente, o próprio cérebro tem a solução, quando quer: o córtex pré-frontal, ao se reconhecer infundadamente pré-conceituoso, é capaz de vetar opiniões, decisões e até ações. Leva tempo e requer esforço, é verdade. Mas vale a pena. É a diferença entre ter pré-conceitos, o que todos temos, e deixar que eles se transformem em ações preconceituosas.


Disponível em <http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/controlando_o_preconceito.html>. Acesso em 07 set 2012.

sábado, 24 de março de 2012

Dicas impressas 9: Imitação; Grupos; Desorientação

FLORACK, Arnd et al. Cada vez mais parecidos Muitas vezes, imitamos inconscientemente a entonação da voz, a escolha das palavras e o gestual de outras pessoas; também adotamos seus pontos de vista e os introjetamos como se fossem originalmente nossos; esse comportamento é útil para a convivência social. Mente e Cérebro, Ano XVIIII, n.º 222, pp. 20-27.

JETTEN, Jolanda et al. O poder terapêutico dos grupos O convívio em vários círculos sociais torna as pessoas mais felizes, saudáveis e ajuda a viver mais; além de proporcionar trocas afetivas e intelectuais, o hábito funciona como vacina para fortalecer a saúde física e mental, e ainda costuma ser bastante divertido. Mente & Cérebro, ano XVII, nº 208, maio de 2010, pp. 36-43.

PASSOS, Maria Consuêlo. Por um mundo melhor Lipovetsky e Serroy abordam sintomas da ‘desorientação da sociedade’, causada pela falência de valores fundamentais e pela mudança de referências. Mente & Cérebro, ano XIX, nº 229, fevereiro de 2012, pp. 78-79.

sábado, 3 de março de 2012

Dicas impressas 6: Ciúme; Moral; Paradoxo

DIEGUEZ, Sebastian. Otelo e a doença da suspeitaHá mais de 400 anos o personagem – marcado pelo ego frágil, controle emocional falho e visão distorcida da realidade – causa fascínio, a ponto de ter motivado a criação de um conceito psiquiátrico: o ciúme patológico. Mente e Cérebro, ano XVIII, n.º 221, pp. 64-69.

FADEL, Maria Maura. Até onde podemos ir? Há situações em que a busca por reconhecimento e valorização sufoca valores morais a ponto de homens e mulheres comuns se tornarem capazes de infligir grande sofrimento a alguém apenas porque o identificam como diferente ou desejam agradar a figuras de autoridade. Mente e Cérebro, Ano XVIII, n.º 219, pp. 20-23.

PASSOS, Maria Consuêlo. Reinvenção da vida A sociedade contemporânea nos impõe um paradoxo: somos seduzidos por um mundo sem fronteiras e, ao mesmo tempo, limitados pela impossibilidade de seguir ao encontro do outro sem tantas defesas – talvez a alternativa para superar essas ameaças seja investir no afeto. Mente e Cérebro Especial, n.º 29, pp. 38-41.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

"Quero mostrar que a transexual tem valor"

Neto Lucon às 11:29

Aos 23 anos, a modelo mineira Carol Marra ganhou os noticiários quando foi confundida com a top brasileira Lea T durante o Fashion Rio 2011. Curiosamente, Carol também é transexual e se tornou a atração principal do Minas Trend Preview Inverno 2012, em outubro deste ano. Tendo a carreira deslanchada em menos de um ano – ela é jornalista e trabalhava como produtora de moda –, Carol desponta também como uma das pioneiras no mundo da moda: foi a primeira modelo transexual a posar, por exemplo, para a revista L'Officiel, com 14 páginas.

Na segunda-feira (20), ela abre o desfile para Fernando Pires e Karin Feller na Casa dos Criadores, em São Paulo. "Estou adorando tudo isso. Quero ver daqui a alguns anos outras modelos transgêneros e me orgulhar por fazer parte desta história".  

Você trabalhava como produtora de moda e nem pensava em trabalhar como modelo. O que te fez mudar de ideia? 
Eu realmente era um bichinho do mato, aquela coisa bem mineira, bem quietinha. Ajudava na produção de capa de revistas com várias atrizes, e os fotógrafos sempre pediam para eu sair em uma foto, mas eu não queria, relutava, tinha vergonha. Até que um amigo muito próximo pediu para fazer um ensaio. Topei e coloquei no Orkut. Outro fotógrafo viu e pediu para fazer também. E quando fiz três ensaios, já estava fazendo catálogos. Mas até então não se falava em Carol transgênero. Falava-se em Carol modelo. Não se sabia que eu era uma transexual.

As pessoas só souberam que você é transexual quando participou do “Minas Trend Preview” neste ano?
Foi lá que estourou a bomba, mas já foi comentado durante o Fashion Rio. Mesmo assim, eu não tinha a dimensão da repercussão. No dia seguinte do Minas Trend, quando parei em um posto de gasolina, em Belo Horizonte, um frentista perguntou para mim: “Você é a moça do jornal, né?” Eu falei: “não”. Daí ele veio com o jornal na mão e uma foto minha seminua na capa. Fiquei tão sem graça que, quando ele pediu autógrafo, não sabia nem o que escrever. Falei assim: “me dá um tanque cheio que eu te dou um beijo aqui no jornal” (risos).

No Fashion Rio deste ano, saiu uma nota no site da revista RG dizendo que você é prima da top trans Lea T. É verdade? 
Até hoje sou confundida com a Lea, mas não queria falar tanto para não ficar a impressão de que quero pegar carona na fama dela. De qualquer forma, Lea é a precursora, é linda, uma querida, batalhadora, admiro demais o seu trabalho... A história surgiu quando ela disse que várias irmãs dela estavam na plateia do evento, já que havia muitas transgêneros. Então um repórter, que achou que somos parecidas, perguntou: “você é irmã da Lea?”. E eu disse brincando: “sou prima”. A gente tirou uma foto juntas e fiquei como prima.

Com Lea T em evidência, Andrej Pejic recebendo título de mulher sensual, acha que estamos vivendo uma onda de valorização da beleza trans? 
Não acho que seja sucesso apenas por ser uma beleza trans, mas por ser uma beleza, como outra qualquer, feminina, exótica. Além disso, moda é vanguarda, permite tudo, lança algo que às vezes nem é para agora, é para mais adiante. Hoje vemos modelos andróginos, com o rosto muito delicado, usando cor de rosa, saia, coisa que antigamente não era comum. A moda está muito pulverizada, então dentro de toda essa onda entraram as transgêneros também. E o interessante é mostrar que a transexual também tem o seu valor.

Você disse que tem um propósito muito importante com o seu trabalho na moda. Qual é? 
Mostrar que existem outras histórias além daquela visão marginal que a sociedade tem de uma transgênero. Infelizmente sabemos que muitas vivem da prostituição, mas em muitos casos não é uma escolha. É a única forma de sobrevivência, já que são jogadas para fora de casa muito cedo. Então é legal surgir essa oportunidade na moda para mostrar: por que não uma transgênero modelo? Jornalista? Estilista? Médica? Taxista? O preconceito surge pela falta de informação. Então se cada um parasse para saber um pouco mais sobre a vida do outro, o mundo ficaria muito melhor. 

Você já sofreu preconceito?
Hoje não, mas já sofri muito bullying na infância. Na época da escola, não ia ao banheiro dos meninos porque morria de vergonha. É que eu nunca me identifiquei com os meninos, entende? Daí eu fazia nas calças, eles me chamavam de mulherzinha e meus pais eram chamados para conversar. Hoje, consigo entrar e sair de qualquer lugar, até porque acho que passo como mulher em qualquer lugar. Quer dizer, hoje nem tanto por conta dessa exposição, então é um pouco mais complicado.

Com a exposição e a revelação de seu passado, mudou a maneira de as pessoas te olharem?
Sei que o olhar sobre mim é outro, mas profissionalmente foi bom. Deu um boom na minha carreira. Os convites para trabalhos importantes surgiram, uma matéria saiu em um jornal de Nova York, também vou viajar para fora. Profissionalmente, essa exposição foi muito boa, mas pessoalmente me senti um pouco invadida. No meu facebook, vários carinhas perguntaram: “como você não comentou nada?”. Teve outro que me ligou e perguntou “o que você tem para me falar? Você é um pé de alface?”, confundindo transgênero com transgênico. Respondi: “Não, sou um morango, vermelho e vistoso” e desliguei. Não sou obrigada, né? Eu sou mulher, eu nasci mulher e a minha genitália é um mero detalhe.

Você acha que faz sucesso principalmente por ser transgênero? O diferencial está aí? 
Não vou ser ingênua de falar que não. É claro que sim. Modelos existem várias, eu seria mais uma entre tantas. Dizem: “que linda esta”. Mas daí falam: “mas não é mulher, é transgênero”. Então eles ficam curiosos, querem saber da história, quem é, o que faz e dão mais foco. Existem tantas modelos lindas, mas acaba que jornalisticamente falando ser transexual é uma novidade. É uma história de luta, de batalha, é matar um leão por dia... Não me acho mais bonita que ninguém, não me considero melhor que ninguém, mas sou diferente.

No início do sucesso, a Lea T falou muito sobre a cirurgia de redesignação sexual (popularmente conhecida como mudança de sexo) e agora tem evitado comentar. Incomoda essa curiosidade das pessoas? 
Isso é tão íntimo, pessoal, não acho que seja necessário o público saber. Faço trabalhos de biquíni e a genitália não aparece, nem a minha e nem de outra modelo. Claro que existe uma curiosidade em cima disso, mas o que eu posso dizer é que a técnica hoje é muito mais eficaz que há alguns anos. Além de ter uma genitália perfeita, ela é funcional, tem toda a sensibilidade, prazer.

Após passar pela cirurgia, a maioria das transexuais não gosta de falar sobre o passado e quer ser mais uma no meio da multidão. Qual o motivo? 
É justamente para isso: ela quer ser vista apenas como mais uma mulher. Já vivi histórias de amor lindas que não pude dar sequência porque, na cabeça deles, eu não era uma mulher. Então muitas querem apagar o passado para não sofrer esse tipo de coisa. No meu caso, vai ser muito complicado, por me tornar um pouco mais conhecida. Teria que mudar de nome ou de país. Mas daí viveria uma grande mentira. Acho que quem gostar de mim vai ter que gostar do jeito que eu sou e estiver. Eu sei dos meus princípios e do meu caráter, então não tem porque ele ter vergonha de me assumir. Ele tem é que ter orgulho. 

E o que sua família está achando da carreira de modelo?
A minha família está acompanhando, mas ainda é difícil. Na infância, diziam para mim: “Que menina linda”, mas meus pais retrucavam “É meu filho, não é menina”. Mãe é mãe, ela sabe, mas a grande preocupação é que eu sofra. Venho de uma família conservadora, mineira... Até os 20 anos, eu mesma não entendia o que eu era. Sabia que não era gay, que não era homem, mas sabia também que não era mulher. Então o que eu sou? Se já foi difícil para mim, imagina para eles? Mas eles estão vendo que meu caminho foi diferente, que está sendo diferente. Enquanto muita gente achava que meu futuro seria em uma esquina, hoje eu posso até estar em uma esquina, mas em um outdoor. Posso estar na capa de uma revista, de um jornal.

Disponível em <http://nlucon.blogspot.com/2011/12/entrevista-carol-marra.html>. Acesso em 09 dez 2011.