Taylor Barnes
Quando era garoto no interior do Brasil, Carol
Marra observava os pais corrigirem, com muita delicadeza, os estranhos que
elogiavam 'sua filha'; já adolescente, desejou os namorados das colegas de
classe e começou a usar roupas andróginas na rua ‒ que trocava por peças
masculinas antes de voltar para casa, dentro do carro mesmo.
Hoje, aos 26 anos, é uma das modelos bastante requisitadas e
se tornou uma estrela: já fez duas minisséries para a TV, criou sua própria
linha de lingerie, é a primeira transexual a desfilar na Fashion Rio ‒
considerado um dos eventos mais importantes da moda nacional ‒ e a posar para a
Revista Trip, badalada revista brasileira que traz fotos de mulheres nuas.
Essa popularidade sugere uma mudança surpreendente, embora
frágil, na cultura popular em relação à Carol e outras tops como ela. Em um
país que faz questão de celebrar seu patrimônio multirracial e multicultural,
capitais cosmopolitas como São Paulo e Rio de Janeiro se tornaram locais onde a
diversidade sexual vem sendo mais aceita; por outro lado, elas dizem que o
Brasil continua, sob vários aspectos, extremamente conservador, com um forte
sentimento religioso que cria um ambiente hostil para a população LGBT.
'Dizem que o Brasil é um país liberal e progressista, mas
não é bem assim', afirma Carol enquanto o cabeleireiro cuida de suas madeixas
em um salão sofisticado dos Jardins antes de uma sessão de filmagens.
No entanto, ela é símbolo de sucesso para um número cada vez
maior de modelos transexuais que migram de regiões mais pobres e remotas para
São Paulo, considerado o centro mais importante da moda na América do Sul.
'Quando cheguei aqui, senti a diferença na hora', conta
Melissa Paixão, de 22 anos, que se mudou quando tinha 19.
Ela nasceu Robson Paixão em Belo Horizonte, capital de Minas
Gerais, mais tradicional. Quando era adolescente, ganhava um dinheirinho extra
posando como Marilyn Monroe e Audrey Hepburn para uma loja. Embora saiba que
atrai olhares na rua, prefere atribuir a atenção nem tanto ao preconceito, mas
ao fato de ser uma mulher de 1,80 m.
Apesar de relativamente novas no ramo, Melissa, Camila
Ribeiro e Felipa Tavares têm espaço garantido no mercado nacional: Camila
desfilou no Fashion Business, no Rio, para a sofisticada Santa Ephigênia;
Melissa vai aparecer no catálogo de Walério Araújo, estilista famoso pelo
estilo exuberante que veste celebridades como Preta Gil e Maria Rita.
As modelos afirmam que suas experiências refletem a ideia de
que a aceitação social é uma realidade, ainda que desigual, apesar da imagem de
'vale-tudo' que o país projeta no exterior. Os movimentos gay e transexual
praticamente desapareceram entre 1964 e 1985, período que durou a ditadura
militar. Na mesma época, eles começaram a florescer em outras partes do mundo.
O histórico da transgressão de gêneros no Brasil é antigo,
reforçado pelo Carnaval. A participação de homens vestidos de mulher, com o
rosto emplastado de maquiagem, é tão tradicional quanto o desfile das escolas
de samba.
Shows de artistas drag queens e gays viraram moda nas casas
noturnas do Rio nos anos 50 e 60; nas décadas posteriores, os transexuais
começaram a fazer tratamentos hormonais e a usar silicone para feminilizar o
corpo, como explica James N. Green, historiador e autor de 'Beyond Carnival: Male
Homosexuality in Twentieth-Century Brazil'.
O Brasil também passou a dar grande apoio aos direitos dos
gays: São Paulo realiza uma das maiores marchas do Orgulho Gay do mundo e,
desde janeiro, o Judiciário reconhece a união civil, além da adoção e casamento,
entre homossexuais ‒, mas a proposta de distribuição de um kit
antidiscriminação nas escolas públicas foi vetada por membros da bancada
evangélica do Congresso, que reclamou do conteúdo sexual.
Ao mesmo tempo, a violência e o preconceito permanecem grandes.
Segundo o Grupo Gay da Bahia, 338 gays, lésbicas e transexuais foram mortos em
2012. Não é possível verificar os motivos de cada crime, mas várias vítimas
tinham sinais de tortura e ferimentos múltiplos, levando os ativistas a
acreditarem que podem ter sido crimes de ódio, afirma Luiz Mott, antropólogo e
historiador que fundou o grupo.
James Green acredita que a fama dos modelos transexuais,
apesar de positiva em termos individuais, tem pouco valor político.
'Significa que os homens com aparência feminina não
representam uma ameaça contanto que continuem submissas, preocupadas apenas com
a aparência, roupas e maquiagem. Assim elas se encaixam perfeitamente nas
fantasias masculinas.'
Alguns modelos se consideram altamente politizados; já
outros preferem ser aceitos como uma mulher qualquer.
Roberta Close, que posou para a Playboy em 1984, é
considerada o primeiro modelo transexual do país e arrebanhou inúmeros fãs com
sua beleza delicada; a atriz Rogéria, nascida Astolfo Barroso Pinto, é
famosíssima no Brasil, e já participou de vários programas na poderosa TV
Globo.
Mesmo assim, o número de transexuais na moda é irrisório
considerando-se a vastidão do setor aqui.
A modelo transexual brasileira mais conhecida
internacionalmente é Lea T, nascida Leandro Cerezo, filho do ex-jogador Toninho
Cerezo. Ela posou para a campanha da Givenchy em 2010, além de ter desfilado na
Semana da Moda de São Paulo ao lado de nomes como Gisele Bündchen e Alessandra
Ambrosio, conhecidas por seu trabalho na Victoria's Secret.
Para Débora Souza, agente que representa Carol Marra, a
modelo transexual é interessante porque atrai tanto o público feminino como o
gay, que é o mais importante do mundo da moda. Ao se aventurarem além dele, porém, já não têm tanto
sucesso.
A amazonense Camila Ribeiro posou para a Candy, que se
autodenomina 'a primeira revista do estilo de vida transexual', mas reclama
que, apesar de bem-recebidas nas publicações de moda e artísticas,
experimentais ou de vanguarda, as modelos transexuais ainda encontram dificuldades
em abrir espaço nas principais revistas, catálogos, feiras e anúncios de apelo
popular.
A própria Carol admite que o sucesso de que goza no mundo da
moda não se reflete em outras áreas ‒ e confessa que sua página no Facebook
vive inundada de mensagens masculinas vulgares, quase sempre perguntando quanto
cobra pelo programa. 'Nunca quis me tornar uma ativista da causa. Prefiro agir
como qualquer outra.'
Só resolveu se tornar mais ativa depois de começar a receber
mensagens de transexuais de várias partes do país ‒ como a prostituta em Manaus
que a viu na TV e pediu conselhos.
Carol também reclama que não recebe tratamento justo na
escalação de papéis, encarnando sempre a mulher transexual.
'A grande maioria dos atores é gay e, no entanto, faz papel
de galã', diz ela para a diretora da minissérie. 'Por que não posso ser
empregada, secretária, sei lá, uma árvore?'
Disponível em
http://nytsyn.br.msn.com/colunistas/o-sucesso-das-modelos-transexuais-no-brasil-terra-do-carnaval-e-da-f%C3%A9-religiosa#page=0.
Acesso em 23 mar 2014.