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terça-feira, 12 de maio de 2015

Avanços científicos trazem novos olhares sobre a paternidade

Chris Bueno e Fernanda Grael 
11/05/2015


Um só embrião, mas com o material genético de três pessoas. Parece ficção científica, mas recentemente o Parlamento Britânico aprovou um novo procedimento de fertilização in vitro que utiliza o material genético de um homem e duas mulheres para formar o embrião. O procedimento, que está sendo estudado e discutido desde 2007, tem o objetivo de eliminar doenças genéticas. 

Mutações em genes das mitocôndrias (organelas presentes no interior das células animais, mais especificamente no citoplasma) causam doenças que afetam os sistemas nervoso e muscular da criança, podendo levar ao desenvolvimento de cegueira, epilepsia, retardo mental, fraqueza muscular e problemas cardíacos, entre outros. Mulheres que têm essa mutação transmitem esses problemas a seus filhos, pois as mitocôndrias são recebidas exclusivamente da mãe – elas já estavam no óvulo que gerou o bebê. 

 O que esse novo procedimento faz é um “transplante de mitocôndrias”, ou seja, ele substitui as mitocôndrias mutantes por mitocôndrias saudáveis de óvulos doados. Para isso, transplanta-se o núcleo do óvulo da mãe para dentro do óvulo de uma doadora saudável, contendo mitocôndrias normais. 

“Pensem numa célula como um ovo: o núcleo é a gema e o citoplasma é a clara. No núcleo ficam 99,998% dos nossos genes, que vêm metade do pai (no espermatozoide) e metade da mãe (no óvulo). Já as mitocôndrias ficam na clara, no citoplasma – e elas contêm os outros 0,002% dos nossos genes. O funcionamento correto desses poucos genes é fundamental para que nossas células produzam energia”, explica a bióloga Lygia da Veiga Pereira Carramaschi, professora titular no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biologia (IB) da USP. 

Esse óvulo corrigido é fertilizado pelo espermatozoide do pai, e assim dará origem a um bebê sem as mutações nas mitocôndrias. Geneticamente, ele será 99,998% filho biológico de seus pais e 0,002% da mulher doadora de mitocôndrias. Segundo os pesquisadores, o bebê desse óvulo teria os traços genéticos de sua mãe biológica, mas levaria também o DNA mitocondrial da doadora, ficando livre das doenças que poderiam ser herdadas da mãe. “Daí dizermos que essas crianças terão um pai e duas mães – e aqui, muito cuidado: filho biológico, porque do ponto de vista social, pai e mãe são os que criam a criança”, enfatiza Carramaschi. 

Apesar de poder evitar uma série de doenças genéticas, a técnica gerou grandes discussões. “Apesar de ser uma alteração mínima e por um motivo muito nobre, qual será o limite? Além disso, do ponto de vista legal, deveremos modificar as definições de “paternidade” e “maternidade” para que a doadora de mitocôndrias não venha a ter direitos sobre a criança? De qualquer modo, são questões que devem ser consideradas”, alerta Carramaschi. 

Após a aprovação do procedimento pelo Parlamento Britânico, o diretor da ONG Human Genetics Alert, David King, criticou o procedimento, comparando-o à criação de um “Frankenstein”. “Assim como a criação do Frankenstein foi produzida a partir da junção de partes de muitos corpos diferentes, me parece agora que cientistas e seus assistentes bioéticos ultrapassam o limite do grotesco, das normas da natureza e da cultura humana”, avalia. 

Os cientistas também questionam a segurança do procedimento a longo prazo. A dúvida é se a técnica poderia ter alguma consequência na saúde dessa criança quando ela se tornasse adulta, como maior propensão ao desenvolvimento de câncer, por exemplo. No entanto, a técnica já foi utilizada por um curto período nos Estados Unidos, até ser proibida pela Food and Drug Administration (FDA, agência norte-americana que regula alimentos e procedimentos de saúde). E algumas crianças foram geradas com esta técnica: entre elas Alana Saarinen, nascida em 2000, que hoje é uma jovem saudável. 

Espermatozoide feminino, óvulo masculino 

Criar um espermatozoide feminino parece ficção, mas a ciência vem mostrando que é possível. Cientistas da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, afirmam ter criado espermatozoides a partir de células-tronco da medula óssea feminina – abrindo caminho para o fim da necessidade do pai na reprodução. 

A pesquisa foi publicada primeiramente na revista científica Reproduction: Gamete Biology, em 2007, e ainda está em andamento. No estudo, os pesquisadores extraíram as células-tronco da medula óssea e separaram uma subpopulação especial de células. Elas foram cultivadas em placas de vidro, recebendo substâncias que favorecem a sua diferenciação. Os pesquisadores identificaram, então, a presença de células-tronco espermatogônicas (fase inicial do desenvolvimento dos espermatozoides). 

No ano passado, os cientistas conseguiram transformar células-tronco da medula óssea em espermatozoides imaturos. E o próximo passo seria submeter os espermatozoides primitivos à meiose, um processo que permitiria a maturação, tornando-o apto para a fertilização. A técnica já foi testada em camundongos. 

A princípio, não haveria barreiras para criar espermatozoides femininos por meio desse procedimento. No entanto, a “mulher-pai” só poderia ter filhas, já que não carrega o cromossomo Y. 

Em entrevista à última edição da revista New Scientist, Karim Nayernia, um dos pesquisadores envolvidos no estudo, disse estar esperando a permissão ética da universidade para dar continuidade ao trabalho. “Em princípio, eu acredito que seja cientificamente possível”, disse. 

Além disso, uma pesquisa no Japão vem apontando para a possibilidade de criar não apenas espermatozoides femininos, mas também óvulos masculinos. A pesquisa, realizada na Universidade do Japão, foi publicada na revista Science em 2012. A partir de camundongos transgênicos (com genes de outra espécie), os pesquisadores obtiveram células-tronco embrionárias e pluripotentes induzidas (iPS, derivadas do organismo adulto). A partir dessas células eles geraram células precursoras dos óvulos, colocaram-nas junto a um agregado de células do ovário de roedores e formaram uma espécie de ovário artificial. 

Esse conjunto de células foi implantado em fêmeas de camundongos para concluir o processo de maturação. Quando ficaram maduros, esses óvulos foram extraídos e colocados em “mães de aluguel”, submetidas à inseminação artificial. Após a junção com espermatozoides, os óvulos deram origem a filhotes saudáveis. 

Em tese, pela regressão a um estágio tão primordial de desenvolvimento, seria possível manipular as células para dar origem a espermatozoides. E, indo mais além, seria possível criar espermatozoides a partir de células femininas ou óvulo a partir de células masculinas Ou seja: casais do mesmo sexo poderiam ter um filho biológico, carregando 50% dos genes de cada genitor. 

Clones 

Se por um lado a ciência pode fertilizar um embrião com o material genético de três pessoas, ou gerar espermatozoides femininos e óvulos masculinos, por outro também pode utilizar apenas o material genético de uma única mulher. Esse é o caso da clonagem – procedimento que, no caso de humanos, é proibido. 

Para que ocorra a clonagem humana reprodutiva é necessário uma célula somática, que pode ser extraída do tecido de qualquer criança ou adulto. O núcleo dessa célula é retirado e inserido em um óvulo, depois implantado em um útero (uma barriga de aluguel). “No caso da clonagem humana prescindiríamos da figura masculina, pois seriam necessários óvulos, células da pessoa a ser clonada e útero”, aponta Carramaschi. 

A clonagem é vista como uma possibilidade para casais inférteis, porém, um documento assinado em 2003 pelas academias de ciências de 63 países, incluindo o Brasil, proíbe a clonagem humana reprodutiva. E, de acordo com o documento, o procedimento é ainda muito arriscado, abrindo diversas discussões sobre a ética do processo. 

Em 2002, a diretora Clonaid, a química francesa Brigitte Boisselier, anunciou que havia nascido o primeiro bebê humano clonado. Segundo ela, os pais da criança contrataram a empresa pois o pai era infértil, e o bebê foi gerado com células da pele da mãe. Porém, após intervenção judicial, os envolvidos saíram de cena e nunca foram feitos testes que atestassem a veracidade desse fato, nem a apresentação do próprio bebê. 

Por enquanto, a clonagem reprodutiva é considerada ineficiente. De acordo com os testes feitos em animais, a maioria dos clones morre logo no início da gestação e os outros têm defeitos ou anormalidades. Sem contar as barreiras éticas para levar adiante as pesquisas. 

Sociedade 

Essa mudança do papel do pai – ou mesmo sua supressão – proporcionada pela ciência ainda está longe de acontecer. E ainda que as barreiras sejam ultrapassadas pela ciência, as questões éticas se manteriam. A maior parte da sociedade vê com receio a manipulação genética em embriões humanos. De acordo com a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), assinada no anos 1990, todas as pesquisas na área devem levar em conta suas implicações éticas e sociais. 

“Imagino que, mais do que a ciência, a sociedade já vem modificando a definição do que é ser pai. Quem é o pai biológico? Fácil, o dono do espermatozoide que deu origem à criança. Mas quem é o pai social? Esse é quem cuida”, afirma Carramaschi.

Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=113&id=1367. Acesso em 12 mai. 2015.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Assédio sexual impede o progresso feminino no mundo científico

Christie Aschwanden
21/08/2014

Quando cursava biologia, passei várias semanas de verão na Costa Rica com um estudante mais velho num projeto de pesquisa nas profundezas da floresta. Éramos somente nós dois e, ao chegar ao local, descobri que ele havia reservado um quarto só para nós dois, com uma cama.

Atormentada, mas com medo de ser chamada de pudica ou difícil, não criei caso. Puxei o dono do hotel de lado no dia seguinte e solicitei uma cama. O problema terminou ali, e meu chefe estudante nunca tentou nada fisicamente.

Pensando melhor, fico surpresa em como eu estava despreparada para lidar com esse tipo de situação, principalmente aos 19 anos. Indubitavelmente, minha faculdade tinha uma polícia contra assédio, mas tais recursos estavam a milhares de quilômetros de distância. Eu estava sozinha num país estrangeiro e nunca fora ensinada sobre meus direitos e recursos nessa área.

Eu havia me esquecido dessa experiência de duas décadas atrás até que li um relatório publicado em julho no periódico "PLOS One". Kathryn Clancy, antropóloga da Universidade de Illinois, campus de Urbana-Champaign, e três colegas usaram e-mail e a mídia social para convidar cientistas a preencher um questionário online a respeito de suas experiências com assédio e agressão durante pesquisas de campo; eles receberam 666 respostas, três quartos delas de mulheres, de 32 disciplinas, inclusive antropologia, arqueologia, biologia e geologia.

Quase dois terços dos participantes disseram que sofreram assédio sexual durante pesquisas de campo. Mais de 20% relataram agressões sexuais. Estudantes ou alunos de pós-doutorado e mulheres mostravam maior probabilidade de serem vítimas dos superiores. Poucos participantes afirmaram que o local da pesquisa tinha um código de conduta ou política relativa a assédio sexual, e das 78 pessoas que ousaram relatar incidentes, menos de 20% se deram por satisfeitas com o resultado.

Os resultados são depressivamente parecidos aos dados que colegas e eu coletamos neste ano com um questionário online enviado a divulgadores científicos. Nós recebemos respostas de 502 redatores, a maioria composta por mulheres, e apresentamos os resultados no Instituto de Tecnologia de Massachusetts em junho, durante conferência sobre mulheres que trabalham com jornalismo científico, com patrocínio da associação nacional que nos representa.

Mais da metade das mulheres que responderam afirmaram que não foram levadas a sério por causa do seu gênero, uma a cada três sofreu percalços no progresso na carreira e praticamente metade sustentou não ter recebido crédito por suas ideias. Quase metade disse ter sido paquerada ou ter ouvido comentários sexuais, e uma em cada cinco sofreu contato físico indesejado.

Em função da natureza voluntária, não se pode esperar que nenhum dos relatórios nos conte a verdadeira incidência da discriminação sexual e do assédio entre cientistas e jornalistas científicos. Ainda assim, o volume de respostas nos passa um recado inconfundível: após quatro décadas desde a lei que proibiu discriminação sexual na educação pública nos Estados Unidos e 23 anos após Anita Hill ter colocado o assédio sexual sob os holofotes, a parcialidade e o assédio continuam a impedir o progresso feminino.

Clancy afirma que decidiu coletar os dados depois de ser esmagada pelas respostas a uma postagem que publicou em seu blog na revista "Scientific American" em 2012. Uma estudante, "Neblina", recontou sua vida durante a faculdade:

"Meu corpo e minha sexualidade eram discutidos abertamente pelo meu professor e os alunos", escreveu a mulher. "Seguiam-se comentários sobre o tamanho grande de meus seios, e ouviam-se especulações sobre minha história sexual." O professor "costumava brincar que somente mulheres bonitas podiam trabalhar com ele, o que me levou a indagar se meu intelecto e capacitação tinham relevância".

Os comentários e e-mails jorraram, disse Clancy. "Uma história logo virou duas e, rapidamente, pareceu serem cem".

Igualmente, nossa pesquisa com redatoras nasceu das conhecidas acusações de assédio contra um famoso editor que foi mentor de muitas jornalistas. Os incidentes levaram as mulheres a revelar suas histórias de discriminação no decorrer da profissão.

Segundo Clancy, no meio acadêmico, acusações de assédio sexual e estupro costumam ser administradas internamente, criando incentivos poderosos para encobrir o mau comportamento, principalmente entre agressores com influência e poder.

"Escutei muitas histórias sobre o professor que não tem permissão de estar no mesmo recinto com fulana ou beltrana", ela contou. Às vezes, os agressores se beneficiam se livrando de tarefas de aprendizado desagradáveis sem perder o emprego.

O assédio entre jornalistas científicos gerou uma hashtag, #ripplesofdoubt, para descrever como ele enfraquece as mulheres. Mulheres ignoradas para cargos se questionam se foram rejeitadas em função do visual e não pelo trabalho. Outras temiam não ter alcançado a posição por mérito.

De fato, os dados sugerem parcialidade em decisões de orientação. De acordo com estudo publicado neste ano, uma equipe de pesquisadores liderada por Katherine L. Milkman, da Universidade da Pensilvânia, enviou cartas idênticas, supostamente de estudantes, a mais de 6.500 professores de 259 universidades pedindo para discutir oportunidades de pesquisa. Os professores estavam mais propensos a responder ao e-mail de "Brad Anderson" do que de candidatas fictícias com nomes como Claire Smith ou Juan Gonzalez. Esse tipo de parcialidade perpetua a discriminação.

"Nosso mundo é pequeno e os recursos, escassos", disse outra autora do relatório publicado em "PLOS One" Julienne Rutherford, bióloga e antropóloga da Universidade de Illinois, campus de Chicago. Para ela, se mulheres são dissuadidas ou excluídas de algumas oportunidades, as perdas para a ciência são enormes.

Ano passado, na conferência anual de jornalistas científicos, juntei-me a cinco importantes jornalistas mulheres para apresentar os dados que havíamos coletado sobre as disparidades de gênero em autoria, cargos de nível elevado, prêmios e salários, e para recontar histórias da época em que nosso gênero atrapalhou nossas carreiras.

A seguir, longas filas se formaram aos microfones enquanto pessoas na plateia se levantavam para contar suas histórias. Mulheres jovens contaram ter sido assediadas pelas fontes. Jornalistas tarimbadas recordaram de chefes de mãos inquietas.

Homens se levantaram para oferecer apoio. O diretor de um famoso programa de jornalismo científico disse que da próxima vez que uma aluna confidenciasse ter sido assediada durante estágio, ele iria intervir; aparentemente, a ideia não lhe ocorrera antes.

Em sua maioria, os homens não são sorrateiros, mas têm um papel poderoso a desempenhar aqui. Durante viagem a uma conferência de jornalismo alguns anos trás, tive uma conversa envolvente com um dos principais palestrantes. Quando nos despedimos, ele me disse, diante de dois outros homens, "seu marido não deveria deixar você sair de casa".

Os dois observadores consideraram essa fala insultuosa um elogio. Foi mais fácil para eles ignorarem do que chamar a atenção de um amigo, e seu comportamento mostrou que não havia problemas em me tratar assim.

Quer o assédio ou a discriminação aconteça num local de pesquisa na Costa Rica ou na sala de conferência, o problema não será solucionado com novas regras arquivadas em sites não lidos. A responsabilidade de resistir não deveria ficar somente a cargo das vítimas. As soluções exigem uma mudança de cultura que somente pode começar de dentro.

Será preciso que os diretores-presidentes, chefes de departamento, diretores de laboratório, professores, editores e redatores-chefes tomem uma posição e digam: pode ir parando com isso. Não me importa se você é meu amigo ou colega preferido; nós não tratamos mulheres assim.

Disponível em http://delas.ig.com.br/comportamento/2014-08-21/assedio-sexual-impede-o-progresso-feminino-no-mundo-cientifico.html. Acesso em 30 ago 2014.

quinta-feira, 6 de março de 2014

O quebra-cabeça evolutivo da homossexualidade

William Kremer
23 de fevereiro, 2014

Na música Same Love, que se tornou um hino não-oficial de apoio ao casamento gay nos Estados Unidos, a dupla Macklemore e Ryan Lewis, vencedores do prêmio Grammy de Melhor Artista Revelação na última edição do prêmio musical, ironiza quem diz acreditar que a homossexualidade é fruto de uma "escolha".

A opinião científica parece estar do lado deles. Desde o início da década de 90, pesquisadores vêm mostrando que a homossexualidade é mais comum em irmãos e parentes da mesma linhagem materna.

Segundo esses cientistas, isso se deve a um fator genético. Também relevantes – apesar de ainda não amplamente comprovadas – são as pesquisas que identificam diferenças fisiológicas nos cérebros de heterossexuais e de gays, assim como os estudos que afirmam que o comportamento homossexual também está presente em animais.

Mas, como gays e lésbicas têm normalmente menos filhos biológicos do que os heterossexuais, uma questão continua intrigando pesquisadores de todo o mundo.

"Se a homossexualidade masculina, por exemplo, é um traço genético, como teria perdurado ao longo do tempo se os indíviduos que carregam 'esses genes' não se reproduzem?", indaga o pesquisador Paul Vasey, da Universidade de Lethbridge, no Canadá.

"Trata-se de um paradoxo do ponto de vista evolucionário."

Muitas das teorias envolvem pesquisas realizadas sobre a homossexualidade masculina. A evolução do lesbianismo permanece muito pouco estudada. Ela pode ser semelhante ou muito diferente.

Os cientistas ainda não sabem a resposta para esse quebra-cabeça darwinista, mas há muitas teorias em jogo e é possível que diferentes mecanismos atuem em cada pessoa.

Conheça algumas das principais teorias a respeito do assunto:

Genes que definem a homossexualidade também ajudam na reprodução

O alelo – um grupo de genes - que às vezes influencia a orientação homossexual também pode trazer vantagens reprodutivas. Isso compensaria a falta de reprodução da população gay e asseguraria a continuação dessa característica, uma vez que não-homossexuais também poderiam herdar esses genes e transmiti-los a seus descendentes.

Há duas ou mais maneiras pelas quais esta transmissão dos genes pode acontecer. Uma possibilidade é que este grupo de genes crie um traço psicológico que torne os homens heterossexuais mais atraentes para mulheres, ou as mulheres heterossexuais mais atraentes para os homens.

"Sabemos que as mulheres tendem a gostar de traços e comportamentos mais femininos nos homens e isso pode estar associado com coisas como o talento para ser pai e a empatia", diz Qazi Rahman, coautor do livro Born Gay; The Psychobiology of Sex Orientation ("Nascido Gay, A Psicobiologia da Orientação Sexual", em tradução livre).

De acordo com essa teoria, uma quantidade pequena desses alelos aumentaria as chances de sucesso reprodutivo do portador desses genes, porque o torna atraente para o sexo oposto.

De vez em quando, um membro da família recebe uma "porção" maior destes genes, que se reflete na sua orientação sexual. Mas porque este alelo traz vantagens reprodutivas, ele permanece no DNA humano através das gerações.

Gays seriam 'ajudantes no ninho'

Alguns pesquisadores acreditam que, para entender a evolução dos homossexuais, é preciso observar qual é o papel que os gays têm nas sociedades humanas.

A pesquisa de Paul Vasey em Samoa, na Polinésia, baseou-se na teoria da seleção de parentesco ou hipótese do "ajudante no ninho".

A ideia é que os homossexuais compensariam a falta de filhos ao promover a aptidão reprodutiva de irmãos e irmãs, contribuindo financeiramente ou cuidando dos sobrinhos. Partes do código genético de um gay são compartilhadas com sobrinhas e sobrinhos e, segundo a teoria, os genes que determinam a orientação sexual também podem ser transmitidos.

Vasey ainda não mediu o quanto que ser homossexual aumenta a taxa de reprodução dos irmãos, mas comprovou que em Samoa, homens gays passam mais tempo fazendo "atividades de tio" do que homens heterossexuais.

Atividade homossexual em animais

  • Cerca de 400 espécies têm atividade homossexual, incluindo os macacos bonobos (machos e fêmeas), que são parentes próximos dos humanos.
  • Em alguns casos há razões reprodutivas. Os peixes machos da família Goodeidae, por exemplo, imitam fêmeas para enganar os rivais.
  • A preferência de longo prazo por parceiros do mesmo sexo é rara entre os animais, mas 6% dos carneiros-selvagens machos (na foto) são, de fato, "gays".
  • Pesquisas sobre o comportamento animal ajudaram a anular as leis contra a sodomia no Texas - mesmo assim, os cientistas ressaltam que a homossexualidade humana pode ser muito diferente da animal.

Fonte: Artigo "Same-sex sexual behavior and evolution", de Nathan Bailey e Marlene Zuk, napublicação Trends in Ecology and Evolution.

"Ninguém ficou mais surpreso que eu", disse Vasey sobre suas descobertas. Seu laboratório já havia comprovado que homens gays no Japão não eram mais atenciosos ou generosos com seus sobrinhos e sobrinhas do que homens e mulheres heterossexuais sem filhos. O mesmo resultado foi encontrado na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no Canadá.

Vasey acredita que o resultado em Samoa foi diferente porque os homens que ele estudou lá eram diferentes. Ele pesquisou os fa'afafine, que se identificam como um terceiro gênero, vestindo-se como mulheres e tendo relações sexuais com homens que se consideram heterossexuais. Os fa'afafine são parte de um grupo transgênero e não gostam de ser chamados de gays nem de homossexuais.

O pesquisador especulam que parte da razão pela qual os fa'afafine são mais atenciosos com seus sobrinhos e sobrinhas é sua aceitação na cultura de Samoa, em comparação com os gays no Ocidente e no Japão. A lógica é a de que gays que são rejeitados tendem a ajudar menos os familiares a criarem seus filhos.

Mas ele também acredita que há alguma coisa no estilo de vida dos fa'afafine que os torna mais propensos a serem carinhosos com seus sobrinhos e sobrinhas. E especula que encontrará resultados semelhantes em outros grupos de "terceiro gênero" ao redor do mundo.

Se isso for comprovado, a teoria do "ajudante no ninho" pode explicar em parte como um traço genético da atração pelo mesmo sexo não foi excluído dos humanos ao longo da evolução.

Mesmo com uma menor capacidade de se reproduzir, homossexuais que se identificam como um "terceiro gênero" ajudariam a aumentar a capacidade reprodutiva de seus parentes heterossexuais, ao assumirem cuidados com as crianças.

Homossexuais também têm filhos

Nos Estados Unidos, cerca de 37% da população lésbica, gay, bissexual e transsexual Cliquetêm filhos, 60% dos quais são biológicos. De acordo com o Instituto Williams, casais gays com filhos têm, em média, dois.

Estes números podem não ser altos o suficiente para sustentar que traços genéticos específicos ao grupo sejam passados adiante, mas o biólogo evolucionista Jeremy Yoder lembra que durante boa parte da história moderna, pessoas gays não viveram vidas abertamente homossexuais.

Obrigadas pela sociedade a casarem e terem filhos, suas taxas reprodutivas devem ter sido mais altas do que são hoje.

Medir a quantidade de gays que têm filhos também depende de como você define "ser gay". Muitos dos homens heterossexuais que têm relações sexuais com os fa'afafine em Samoa casam-se com mulheres e têm filhos.

"A categoria da atração pelo mesmo sexo se torna muito difusa quando temos uma perspectiva multicultural", diz Joan Roughgarden, um biólogo evolucionista na Universidade do Havaí.

No Ocidente há indícios de que muitas pessoas passam por uma fase de atividade homossexual, mesmo que sejam principalmente heterossexuais.
Isso tornaria mais complicado afirmar que somente pais que levam uma vida homossexual poderiam passar "genes gays" adiante.

Nos anos 1940, o pesquisador de sexo americano Alfred Kinsey descobriu que apenas 4% dos homens brancos eram exclusivamente gays após a adolescência, mas 10% dos homens tiveram um período de atividade gay de 3 anos e 37% tiveram relações com alguém do mesmo sexo em algum momento de suas vidas.

Uma pesquisa nacional de atitudes em relação ao sexo feita na Grã-Bretanha em 2013 apresentou número mais baixos. Cerca de 16% das mulheres disseram ter tido alguma experiência sexual com outra mulher (8% tiveram contato genital) e 7% dos homens disseram ter tido alguma experiência sexual com um homem (5% tiveram contato genital).

Mas a maior parte dos cientistas pesquisando a evolução gay estão mais interessados na existência de um padrão de desejo interno contínuo. Identificar-se como gay ou heterossexual não é tão importante, nem ter relações homossexuais com maior ou menor frequência.

"A identidade sexual e os comportamentos sexuais não são boas medidas da orientação sexual. Os sentimentos sexuais, sim", diz Paul Vasey.

Nem tudo está no DNA

Qazi Rahmandiz afirma que grupos de genes que determinam a atração pelo mesmo sexo só explicam parte da variedade da sexualidade humana.

Outros fatores biológicos que variam naturalmente também interferem. Um em cada sete homens, por exemplo, devem sua sexualidade ao "Efeito Big Brother": observou-se que garotos com irmãos mais velhos têm maiores chances de serem gays - cada irmão mais velho aumentaria as chances de homossexualidade em cerca de um terço.

Ainda não se sabe o porquê, mas uma teoria é a de que a cada gravidez de um bebê do sexo masculino, o corpo da mulher desenvolve uma reação imunológica a proteínas que tem um papel no desenvolvimento do cérebro masculino.

Como isto só interfere de alguma forma no bebê depois que muitos irmãos já nasceram - a maioria dos quais serão heterossexuais e terão filhos - esta peculiaridade pré-natal não foi descartada pela evolução.

A exposição a níveis incomuns de hormônios antes do nascimento também pode afetar a sexualidade. Por exemplo, fetos de fêmeas expostos a altos níveis de testosterona antes do nascimento demonstram altos índices de lesbianismo depois.

"A identidade sexual e os comportamentos sexuais não são boas medidas da orientação sexual. Os sentimentos sexuais, sim."
Paul Vasey

Estudos mostram que mulheres lésbicas e homens "machões" tem uma diferença no comprimento dos dedos indicador e anular - que demonstra a exposição pré-natal à testosterona. Em lésbicas "femininas" esta diferença é muito menor.

Os gêmeos idênticos também provocam questionamentos. Pesquisas descobriram que se um gêmeo é gay, há cerca de 20% de chance de que seu gêmeo idêntico tenha a mesma orientação sexual. Apesar de a probabilidade ser maior do que o normal, ainda é pequena considerando que os dois tem o mesmo código genético.

William Rice, da Universidade da Califórnia Santa Barbara, diz que pode ser possível explicar isso olhando não para nosso código genético, mas para o modo como ele é processado. Rice e seus colegas se referem ao campo emergente da epigenética, que estuda como partes do nosso DNA são "ligadas" ou "desligadas".

Para Qazi Rahman, é a mídia que simplifica excessivamente as teorias genéticas da sexualidade, com suas reportagens sobre a descoberta do "gene gay". Ele acredita que a sexualidade envolve dezenas ou centenas de grupos de genes que provavelmente levaremos décadas até descobrir.


Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/02/140219_quebra_cabeca_evolucao_homossexualidade_lgb.shtml. Acesso em 26 fev 2014.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Cientistas criam espermatozóide a partir de célula feminina

BBC BRASIL
31/01/08

Cientistas britânicos afirmam ter criado espermatozóides a partir de células-tronco da medula óssea feminina - abrindo caminho para o fim da necessidade do pai na reprodução.

A experiência vem sendo desenvolvida por especialistas da Universidade de New Castle que, em abril do ano passado, anunciaram ter conseguido transformar células-tronco da medula óssea de homens adultos em espermatozóides imaturos.

Em entrevista à última edição da revista New Scientist, Karim Nayernia, um dos pesquisadores envolvidos no estudo, disse que agora os cientistas repetiram a experiência com células-tronco da medula óssea de mulheres, podendo "abrir caminho para a criação do espermatozóide feminino".

No trabalho, ainda não publicado, Nayernia disse à New Scientist estar esperando a "permissão ética" da universidade para dar continuidade ao trabalho, que consistiria em submeter os espermatozóides primitivos à meiose, um processo que permitiria a maturação do espermatozóide, tornando-o apto para a fertilização.

"Em princípio, eu acredito que isso seja cientificamente possível", disse Nayernia.

O estudo, afirma a revista, poderia possibilitar que um dia, casais de lésbicas poderão ter filhos sem a necessidade de um homem, já que o espermatozóide de uma mulher poderia fertilizar o óvulo da outra.

Brasil

A New Scientist ainda relata uma experiência que está sendo realizada por cientistas brasileiros no Instituto Butantan, em São Paulo.

Segundo a revista, os especialistas estariam desenvolvendo óvulos e espermatozóides a partir de uma cultura de células-tronco embrionárias de ratos machos.

A revista cita o trabalho publicado pelos brasileiros na revista especializada Cloning and Stem Cells (Clonagem e células-tronco, em tradução literal), em que os pesquisadores disseram ainda não ter provado que os óvulos masculinos poderão ser fertilizados e procriar.

"Estamos agora começando experimentos com células-tronco embrionárias humanas e, se bem-sucedidos, o próximo passo será ver se óvulos masculinos poderão ser feitos a partir de outras células", disse a coordenadora da pesquisa, Irina Kerkis.

Essas outras células, que se comportariam de maneira semelhante às embrionárias, poderiam ser encontradas na pele humana, afirma a revista.

Isso abriria a possibilidade para que casais gays masculinos também tenham filhos com 100% de seu material genético.

Nesse caso, um dos homens doaria células de sua pele, que seriam transformadas em um óvulo a ser fecundado pelo espermatozóide do parceiro.

Uma vez fertilizado, o óvulo seria implantado no útero de uma mulher.

"Eu acredito que isso seja possível, mas não sei como as pessoas encarariam isso de forma ética", disse Kerkis.


Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL281510-5603,00-CIENTISTAS+CRIAM+ESPERMATOZOIDE+A+PARTIR+DE+CELULA+FEMININA.html. Acesso em 25 jul 2013.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Nossos corpos também mudam: sexo, gênero, e a invenção das categorias travesti e transexual no discurso científico

Jorge Leite Junior
Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre a construção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. Partindo da diferenciação entre o hermafrodita da antiguidade, mais associado ao campo mágico e mítico, e o pseudo-hermafrodita da medicina moderna, vemos como este segundo foi interiorizado através do discurso das ciências da psique. Desta base conceitual, durante o século XX, desenvolvem-se lentamente as categorias de “travesti” e “transexual”, compreendendo o trânsito entre os sexos e os gêneros como uma manifestação psicopatológica.