Alexandre Quaresma
O panóptico informacional é o resultado prático de uma
tendência comunicacional bastante peculiar e relativamente recente da
humanidade, propiciada pela internet e pelos meios digitais de comunicação da
atualidade, que é a de tornar perene, volátil e utilizável os registros
singulares de cada movimentação de informações que fazemos - do simples clique
para acessar um endereço digital, por exemplo, a saques em terminais
eletrônicos, compras com cartão de crédito em lojas e supermercados, perfis em
redes sociais, além de outras fontes (ortodoxas ou não ortodoxas) de geração de
dados sobre o indivíduo -, movimentos estes que são registrados
sistematicamente no próprio sistema, e que, portanto, podem ser monitorados,
rastreados, acessados, consultados e utilizados para diversos fins. Isso nos
revela as seguintes questões: A quem pertence a informação gerada on-line? Quem
se interessa pelo manancial digital de dados e informações que se constituem a
partir das interatividades individuais de cada um dos usuários da internet?
Poderiam eles ser usados indiscriminadamente por provedores e demais empresas
do ramo para fins comerciais? Seria lícito fazê-lo sem o consentimento expresso
dos usuários que geram esses mesmos dados?
Bem, a resposta pode ser surpreendente. Há atualmente um
ramo das ciências cibernéticas chamado mineração de dados, técnica que propicia
o cruzamento de todas estas fontes possíveis de informações de um cidadão
comum, por exemplo, o que permite aos operadores deste sistema de mineração
traçar um perfil completo das atividades e zonas de interesse desse mesmo
indivíduo, o que tem demandado enormes interesses das grandes corporações. Para
compreendermos o contexto onde ocorrem esses eventos, é importante dizer que a
mineração ocorre numa esfera chamada de universo dos grandes dados, ou big
data, onde o desafio operacional do sistema é exatamente garimpar e
correlacionar estes grandes conjuntos de dados de maneira a serem palatáveis e
úteis. Principalmente as empresas que querem lucrar com o manejo e uso dessas
informações. É possível - por meio da análise sistemática desses grandes
conjuntos de dados coligidos pela mineração - extrair padrões que podem indicar
tendências nos comportamentos das grandes massas sociais, por exemplo, algo
que, sem dúvida, torna-se estratégico no competitivo mundo dos negócios, seja
qual for o seu segmento de atuação. Esses sistemas se prestam também a
subsidiar estatísticas, gerar bancos informacionais, identificar padrões
sistêmicos, prever cenários, manipular e controlar fluxos de objetos, pessoas,
dinheiro, consumo, replicar modelos complexos, prever probabilidades etc.
Nada escapa ao controle do sistema
A coisa acontece da seguinte forma: De acordo com os sites e
assuntos que pesquisamos na rede, quando estamos navegando nela, a própria rede
- através de seus robôs cibernéticos - acaba identificando o que nos ocupa, o
que desejamos saber, comprar, comer, o que de fato compramos, o que pensamos e,
especialmente, onde estamos e o que podemos querer fazer a seguir, pois isso
pode ser muitíssimo interessante do ponto de vista comercial.
Junte-se a isso a multiplicação dos ambientes monitorados
por câmeras, as imagens geradas por satélite e por pequenas naves espiãs não
tripuladas e perceberemos que nada mais pode escapar a este tipo de controle
que nós mesmos instituímos. Será que alguém de fato, algum dia, já se perguntou
a sério acerca do que é feito com a informação que geramos sobre nós mesmos,
não só em compras e transações on-line, mas também em comunidades e redes
sociais, contas de e-mail e buscadores eletrônicos da internet? Porque interessa
tanto aos grandes provedores da comunicação online oferecer -
"gratuitamente" - serviços complexos como correios eletrônicos,
chats, blogs, canais de TV, portais de notícias, além de outros serviços
relacionados ao entretenimento e à interconectividade, como redes de
relacionamento, sites temáticos, de compra e tudo mais? A resposta pode ser que
enquanto estamos conectados e interagindo na rede internacional de
computadores, usufruindo de suas delícias e benesses, estejamos,
concomitantemente, abastecendo com nossas informações pessoais mais importantes
todo um banco informacional privado que se constrói em torno de nós e de nossas
ações. Sem embargos, tratamos aqui de uma nova forma de controle, na qual os
controlados parecem assentir e até ajudar a consolidar o próprio ambiente
panóptico informacional que se constitui em torno de si. Nossos celulares
ultramodernos, que fazem tudo que se possa imaginar - além de telefonar -também
funcionam como excelentes rastreadores para estes sistemas, ou seja, servem
para nos rastrear, pois é possível identificar a mobilidade do indivíduo
através dele, mesmo que este não venha a efetuar chamadas, pois possuem sistema
de GPS. Essa conectividade imersiva que tanto cultuamos, em todos os lugares e
ambientes, também nos transforma em dados instantâneos que podem ser acessados
e usados mercadologicamente até mesmo contra nós, cidadãos, usuários e
consumidores, no sentido de prever e manipular a nossa ação de consumo,
induzindo-nos, sempre, a mais consumo.
De acordo com os sites
e assuntos que pesquisamos na rede, quando estamos navegando nela, a própria
rede - através de seus robôs cibernéticos - acaba identificando o que nos
ocupa
A quem pertence as informações?
Neste sentido, vale perguntar: O que empresas como Google,
Microsoft, Facebook, Tweeter e as demais grandes do ramo da internet fazem com
as informações que nós geramos espontaneamente on-line? Poderiam estas empresas
explorá-las comercialmente, sem o nosso consentimento consciente? Ao que
parece, somos engolidos no corre-corre da vida acelerada pós-moderna e nunca
paramos para ler os contratos de utilização destes softwares e produtos que,
pelo menos em tese, são-nos apresentados como serviços gratuitos. Na verdade,
cada aplicativo desses, tem contratos de uso complexíssimos (dúbio, muito
extenso, técnico), que até mesmo advogados podem ter dúvida em interpretar. O
mais comum na maioria esmagadora das vezes é que sejamos compelidos a pular o
quanto antes as etapas propostas pelo detentor da marca, no processo de
instalação - e isso vale também para softwares e programas de computador -,
cada janela e procedimento que se apresenta, dando apenas um clique em
"avançar" nas tais cláusulas, gastando o mínimo de tempo possível em
cada uma destas etapas, clicando num botão que diz: "li e concordo com os
termos", entrando com seus dados pessoais e dando o OK final de aceitação.
Não conheço ninguém que tenha lido aquilo tudo antes de dar o OK de
concordância nestes famigerados contratos de uso. Isto pode ser uma maneira
escusa e velada de induzir o cidadão que se torna usuário a ceder, mesmo que
sem o sabê-lo, o direito de uso dos dados e informações que ele gera, pois há
um contraste significativo entre a facilidade de navegação, ou seja, o uso
propriamente dito, e a dificuldade de intelecção dos contratos, sempre prolixos
e grafados por meio de uma linguagem jurídica que dificulta a compreensão do
cidadão usuário.
Tratamos aqui de uma nova forma de controle, na qual os
controlados parecem assentir e até ajudar a consolidar o próprio ambiente
panóptico informacional que se constitui em torno de si
Considerações finais
Já existem discussões sobre transformar tais objetos
geradores de dados (os celulares, por exemplo), ou os próprios dados, de modo
que a pessoa saiba e possa receber uma determinada quantia por disponibilizar
comercialmente estes dados e informações que ela mesma produz em seu cotidiano.
Seria uma espécie de commodity da informação. Se assim for, melhor: haverá mais
transparência e honestidade na relação. O que não é possível - frisemos - é que
estes dados que geramos espontaneamente - ao utilizar e consumir produtos e
serviços, ao trafegarmos por ruas, avenidas e estradas, ao falarmos no
telefone, ao acessarmos a internet, ao navegarmos em sites - sejam usados
comercialmente para explorar e incitar as sociedades a mais consumo
desnecessariamente e sem que estas saibam. Tais iniciativas de manipulação das
massas, além de espúrias, encontram-se na contramão da história ecológica
recente do planeta, onde as prioridades são justamente o oposto: menos consumo,
um consumo mais consciente, que possa levar em conta considerações socioambientais,
que gerem mais distribuição de renda, menos concentração de riquezas, a
apropriação popular das tecnologias, a preservação de culturas e comunidades
locais, suas tradições e assim por diante. A propósito, o grande desafio que
nos aguarda nas próximas décadas é justamente a construção social da
tecnologia. Não basta utilizarmos acriticamente os sistemas informacionais que
nos são apresentados ou outra tecnologia qualquer. Seria interessante que
também compreendêssemos seus funcionamentos estruturais e que, se possível, nos
apropriássemos deles, num sentido plural de coletividade no possível manejo
destes mesmos mananciais informáticos. Nomeadamente teremos que incluir no
pacote de desenvolvimentos tecnológicos - ou cesta de valores técnicos, como
diria Feenberg - outras considerações e valores que, a priori, não seriam
tecnológicos. Ademais, numa análise mais aprofundada deste contexto que engloba
tecnociências e sociedades, perceberemos com bastante clareza que as
tecnologias de fato também ajudam a constituir e consagrar o real, influindo e
até determinando, em muitos casos, as realidades e contextos sociais, num
fenômeno que os teóricos chamam de determinismo tecnológico. Aliás, é bom
lembrar: as tecnociências em si são fenômenos sociais, pois se constituem nas
sociedades, para as sociedades e pelas sociedades. Não há outro meio. Neste
sentido, tais contextos não devem e não podem ser impermeáveis ao controle
social, sob pena de sermos engolfados numa maré tecnológica de rastreamento e
controle tão absolutos que poderia desembocar numa conjuntura geopolítica
panóptica e paranoica indesejável de manipulação e controle totais.
* Robôs cibernéticos » São softwares e programas de
computador que possuem certa autonomia em meio informacional. Suas tarefas e diretrizes
básicas são vasculhar a rede à caça das informações que lhe são indicadas.
Estes entes informacionais podem, sem que saibamos, entrar em nossos sistemas,
de modo a alcançar seus objetivos e cumprir seus protocolos de espionagem e
rastreio de informações. Os próprios buscadores eletrônicos da internet são
robôs deste tipo, que operam segundo tais expedientes.
* Panóptico » Vem de pan-óptico. Trata-se de um termo usado
para designar um centro penitenciário ideal concebido por Jeremy Bentham em
1785. Resumidamente, é uma forma de vigilância institucionalizada e física,
onde os detentos podem ser vistos o tempo todo por um ponto central de vigia
que, ao mesmo tempo, vê ou pode ver todos o tempo todo, ao passo que não
permite de maneira nenhuma que os detidos e reclusos se entrevejam entre si.
Tal prática demonstrou interferir sensivelmente no próprio comportamento dos
detentos observados.
* Determinismo tecnológico » O determinismo tecnológico se
baseia na suposição de que as tecnologias têm uma lógica funcional autônoma,
que pode ser explicada sem se fazer referência à sociedade. Presumivelmente, a
tecnologia é social apenas em relação ao propósito a que serve e propósitos
estão na mente do observador. A tecnologia se assemelharia assim à ciência e à matemática
devido à sua intrínseca independência do mundo social. No entanto,
diferentemente da ciência e da matemática, a tecnologia tem impactos sociais
imediatos e poderosos (Feenberg, 2010, p. 72).
Referências
FEENBERG, A. (2010). A teoria crítica de Andrew Feenberg:
racionalização democrática, poder e tecnologia. Brasília: Observatório do
Movimento pela Tecnologia Social na América Latina / CDS / UnB / Capes. Série
Cadernos - Primeira Versão / construção social da tecnologia / número 3-2010.
Disponível em
http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/45/artigo279556-1.asp.
Acesso em 29 jun 2013.