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sábado, 8 de dezembro de 2012

Uma luz sobre a violência

Lucia Rocha

Origens do comportamento violento. Explicar certas condutas violentas, muitas vezes, sem motivo aparente, apenas pelas dimensões objetivas - como falta de escolas, desemprego, pobreza e outras variáveis estruturais –, não deixa de ser pertinente, mas tem se mostrado infrutífero. Novos enfoques, em especial os que levam em conta as questões subjetivas, parecem oferecer respostas mais plausíveis ou, ao menos, mais condizentes com os anseios dos que querem encontrar ‘saídas’, enxergando com mais clareza as causas desse fenômeno.

Grande parte das pesquisas realizadas pelo viés socioclínico aponta como causas do problema a falta de limites resultante da ausência de um psiquismo equilibrado, para uma carência de visibilidade e da inserção dos interditos sociais fundamentais, além de denunciarem o declínio da função paterna e enfraquecimento das referências afetivas essenciais. Alguns sociólogos, psicanalistas e antropólogos abordados confirmam essa tese.

Há a armadilha do costume que se tem de definir pobreza, 
desigualdade e vontade política como 
causas da criminalidade

O antropólogo e doutor em Ciência Política, Luiz Eduardo Soares, autor de Elite da tropa - em parceria com André Batista e Rodrigo Pimentel, livro que fundamentou o polêmico filme Tropa de Elite - mesmo não trabalhando com a abordagem clínica, defende a necessidade de se enxergar as coisas por esse ângulo, quando se trata de querer entender a violência desses tempos. Ele expressa esse pensamento em diversos trabalhos que envolvem o tema na relação com a segurança pública, a exemplo de artigos e obras como Cabeça de Porco, Segurança tem saída e Legalidade libertária. “Não há como mudar a realidade se não a compreendermos”, diz.

História de vida

Há cinco anos trabalhando na perspectiva da Sociologia Clínica com presidiários homens e mulheres – a maioria entre 18 e 28 anos - no sistema prisional tradicional e no sistema Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), Vanessa Barros tem mostrado em suas pesquisas o sistema prisional a partir da ótica daqueles que estão presos, tentando compreender o sentido do encarceramento e suas repercussões na vida dos sujeitos e de seus familiares. “Buscamos avaliar as propostas de ressocialização que o sistema oferece – especialmente o trabalho – com o objetivo de instruir políticas públicas que considerem os detentos como sujeitos em situação de prisão. Em função do potencial de agressividade, a sociedade se vê, permanentemente, ameaçada de desintegração, vulnerabilidade e não mais como criminosos que têm que apodrecer nas piores condições”, expõe.

Para ter acesso à história social na qual essas pessoas estão inseridas, a pesquisadora utiliza o método de recolhimento de histórias de vida. Assim, ela enxerga a violência sob outro ângulo: a violência da qual todos os que estão presos são vítimas ao longo de sua existência, seja a violência concreta - espancamentos, abusos sexuais, todo tipo de carência material - seja a violência simbólica - abandono e desamparo, tanto familiar quanto por parte dos poderes públicos, falta de referências familiares sólidas e ausência de outras instâncias importantes como escola e cultura.

Analisando o olhar radical da psicanálise, o caminho quase sempre seguido para o estudo da subjetividade humana foi o que fundamentou o trabalho Vida e Morte: uma batalha de gigantes, da pesquisadora Ruth Vasconcelos, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutora em Sociologia, membro do Toro de Psicanálise (Centro de Formação Psicanalítica de Maceió) e autora de livros sobre a violência, a professora faz uma interseção entre Sociologia e Psicanálise. A referência utilizada é a obra O Mal- Estar na Civilização, de Sigmund Freud, na busca de esclarecer a sensação de se estar vivendo um descontrole, em que a violência se avoluma de forma difusa e, aparentemente, sem causa.

A Psicanálise parece arrancar o véu de ilusões que o ser humano tem sobre si mesmo, lançando verdades que embaraçam suas expectativas de perfeição. Freud foi enfático ao afirmar que o ser humano tem inata inclinação para a crueldade destrutiva; que a agressividade não é um defeito de uma outra criatura – “é um mal substancial” – e que este é o maior entrave ao construto da civilização.

Segundo Ruth, há, em toda pessoa, pulsões genuínas (desejos meio que incontroláveis e, quase sempre, inconscientes) de vida e de morte. A pulsão de morte se expressa nos atos de destruição e agressão; a pulsão de vida nos atos de preservação e conservação. As duas seriam mutuamente mescladas em proporções variadas e muito diferentes, portanto, quase irreconhecíveis a julgamentos. “Registros da história humana mostram o quanto de atrocidades, humilhações, torturas, mortes e horrores os homens são capazes de produzir quando suas pulsões destrutivas e agressivas estão destravadas de interdições”, assinala a pesquisadora.

Em função deste potencial de agressividade, a sociedade se vê, permanentemente, ameaçada de desintegração. Há uma luta interior e constante entre as pulsões de vida e de morte – ‘uma batalha de gigantes’, diz Ruth Vasconcelos usando a expressão de Freud.

Todos almejam a felicidade. No pensamento freudiano, o ser feliz vincula-se à plena satisfação dos desejos, ao viver sem limites. Viver em coletividade, no entanto, exige renúncia: não se pode fazer tudo o que se quer. Existe um ideal cultural e, a partir dele, foram estabelecidos limites e organizadas instâncias reguladoras das relações sociais – as leis. “Mas tudo isso se contrapõe à natureza original do homem. No intuito de restringir os movimentos pulsionais que podem gerar conflitos e desavenças no convívio social, os homens trocaram parte de sua liberdade por uma parcela de segurança”, analisa a pesquisadora.

No pensamento freudiano, o ser feliz vincula-se à plena satisfação dos desejos, ao viver sem limites, porém viver em coletividade, no entanto, exige renúncia e o cumprimento das regras reguladoras das relações sociais: as leis

Porém, na atualidade, esse pacto de convivência social está alterado. “Há uma profunda esgarçadura do tecido social: as instituições que assegurariam esse pacto passam por uma crise de legitimidade e produzem a destituição dos referenciais e dos interditos que são pressupostos para a vida em comum”, diz Ruth, observando que, sem o exercício dessas instituições, as pulsões destrutivas se liberam e o homem adentra espaços interditos.

Nesse ponto, entra-se no mérito do atual declínio da metáfora paterna que se traduz pela crise de autoridade das instituições coletivas que representam o ‘lugar do pai’ em sua função de interdição – seja um pai real ou simbolicamente constituído na figura de familiares, escola, instituições religiosas, organizações do mundo do trabalho e do político: “A falta da inscrição da lei no campo subjetivo impede o reconhecimento das leis no campo social”, explica a socióloga.

Para viver em sociedade, o homem precisa abdicar do princípio do prazer. As propostas contemporâneas, no entanto, acenam com a possibilidade de uma vida de prazer total, sem nenhuma sombra de angústia e com a sensação de impunidade. “A ilusória compreensão de que a felicidade depende do consumo de objetos amplia o mal-estar social em função das frustrações que, inevitavelmente, este empreendimento produz”, observa.

A ilusória compreensão de que a felicidade depende do consumo amplia o mal-estar social, em função das frustrações produzidas. O homem encontra o transitório consolo dos chamados publicitários que, por sua vez, difunde a idéia de que a felicidade é algo comprável.

Na mesma linha, utilizando conceitos de Freud, de Jacques Lacan, seu seguidor, e de pensadores clássicos da Filosofia, a psicanalista gaúcha Margareth Kuhn Martta, em seu livro Violência e Angústia, abre caminhos para o entendimento do fenômeno da violência contemporânea que, segundo afirma, “se diferencia do que foi, até hoje, visto e vivenciado”. Ela evidencia certos traços do homem contemporâneo, quais sejam, a falsa idéia de infinitude, a desvalorização da subjetividade e a falta de interdição. A conexão dos dois temas que dão título a sua obra é analisada a partir da forma como o ser humano tem lidado com a questão existencial na contemporaneidade.

Segundo Margareth, o homem vem sendo levado à ilusão de que pode excluir a angústia do seu existir – fato impossível, pois tal sentimento estaria atrelado, de forma indelével à existência humana, uma vez que “não é disso ou daquilo que o homem se angustia, mas de sua situação mesma de estar no mundo”, afirma.

Buscando aplacar tais sentimentos, o homem encontra o transitório consolo dos chamados da publicidade que, por sua vez, difunde a idéia de que a felicidade é algo comprável; que, adquirindo determinado produto, ganha-se um passaporte para viver em contínuo prazer. Citando o fotógrafo italiano Oliveiro Toscani, autor do livro A Publicidade é um Cadáver que nos Sorri, Margareth Martta reafirma o que ele expressou: “de tanto querer nos vender a felicidade, a publicidade acaba fabricando legiões de frustrados. De tanto provocar desejos que derivam em decepção, a publicidade perde o objetivo e dá origem a deprimidos e delinqüentes”.

Pesquisa coordenada pela doutora em Sociologia e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Vanessa de Barros, entre presidiários do sistema prisional de Belo Horizonte – homens e mulheres jovens, com idade entre 16 e 25 anos – denuncia o desmantelo resultante dessa lógica de que, consumindo, comprando, é possível viver sem angústia e em pleno gozo dos desejos. O trabalho foi feito seguindo o método socioclínico de história de vida, buscando compreender a relação entre trabalho e criminalidade. Segundo Vanessa, as conversas em torno das vivências e representações da vida dessas pessoas mostraram aspectos constitutivos da violência em suas várias facetas.

A pesquisa possui trechos depoimentos emblemáticos para se fazer a conexão entre consumo, violência e criminalidade, pois o desejo de consumir foi o motivo mais expresso em fatos e situações relatadas. Apesar de não apresentarem condições para o consumo, os pesquisados se mostraram portadores de todas as carências incutidas pela publicidade. Esses depoimentos dos presidiários de Belo Horizonte se juntam aos dos jovens das periferias urbanas de Natal - objeto de uma pesquisa da professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Norma Takeuti, pós-doutorada em Sociologia Clínica e autora do livro No outro lado do espelho: a fratura social e as pulsões juvenis.

Custo da violência

De acordo com a “Análise dos custos e conseqüências da violência no Brasil”, estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), publicado em junho de 2007, estima-se que, em 2004, o custo da violência no Brasil tenha chegado a R$ 92,2 bilhões, ou 5,09% do Produto Interno Bruto do País. O cálculo leva em consideração gastos ou investimentos públicos e privados, tais como internações, pensões, perdas materiais, aplicação de recurso em segurança, despesas com proteção de carros, entre diversos outros itens.

Irresponsabilidades dos pais em relação aos filhos

Uma pesquisa sobre paternidade, realizada por Ana Liési Thurler, durante doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília, revelou que aproximadamente 1/3 das crianças brasileiras não possui o nome do pai na certidão de nascimento. Isso sem contar as inúmeras crianças que possuem o nome do pai na certidão, sem efetivamente ter alguém que cumpra esta função em sua vida.

Nos EUA, dados estatísticos apontam que crianças educadas em lares monoparentais são mais vulneráveis aos transtornos de conduta; essas crianças possuem três ou quatro vezes mais chances de desenvolver problemas comportamentais e duas vezes mais chances de envolver-se com crimes do que as demais.

Uma pesquisa realizada na década de 90 revelou que 72% dos adolescentes que cometeram assassinato não tiveram presença paterna. Nas prisões, 60% dos estupradores e 70% dos prisioneiros que cumprem longas penas também não tiveram presença paterna em seus lares. Os pesquisadores americanos demonstraram que as crianças que não possuem presença paterna em casa têm onze vezes mais chances de apresentar comportamentos violentos na escola.

Pela lei, Art. 222 da Constituição Federal, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar prioridade absoluta do direito à vida, saúde, alimentação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O trabalho mostrou que os entrevistados - “jovens pobres que se encontram às margens da sociedade, confrontados com o processo de exclusão, segregação e discriminação sociais, e acusados de ser delinqüentes” - vislumbram ser mais ‘cômoda’ a via do ‘dinheiro rápido e fácil’, nas trilhas da ilegalidade (tráfico de drogas, por exemplo), porque o ‘trabalho suado e honesto’ seria a permanência na condição de miserabilidade e de segregação social.

“A valorização radicalizada da dimensão econômica, a sua prevalência enquanto significação imaginária social central aniquila valores sociais que poderiam trazer outros sentidos de vida aos indivíduos”, analisa Norma. Ela destaca que a constituição do sujeito se dá por meio de identificações sucessivas e que compete às instituições específicas a garantia de suportes de identificação aos indivíduos. Porém, diante de uma ordem simbólica vacilante, seja nos exemplos que a sociedade em geral lhes oferta, seja pela ausência de uma consistente estrutura familiar, os jovens não encontram respostas que ajudem a edificar sua formação.

De tanto provocar
desejos que derivam em decepção,
a publicidade perde o objetivo e
dá origem a deprimidos e delinqüentes

A ausência de valores como honestidade, integridade, legalidade, incorruptibilidade e a existência do exercício de práticas como fisiologismo, corrupção e mentira se destacam entre as causas do caos social instalado. Para a psicanalista Lourdinha Tenório, membro do Toro de Psicanálise, pensar no que funda a lei para uma criança é se reportar, primeiramente, à matriz que a antecede. “É indispensável que os pais tenham, em si mesmos, a inscrição do interdito fundamental para que possam fazê-la valer como lastro para o estabelecimento dos limites para a sua prole”. Este princípio, segundo a psicanalista, precisa ser bem definido nos pais, desde que a relação entre mãe, filho e pai se inicia, pois é a forma como os pais vão apresentando e significando o mundo para o filho que irá delineando as regras estabelecidas para nortear o convívio humano.

A criança vai sendo habilitada a viver em meio à sociedade “à medida que vai entendendo que, muitas vezes, é preciso abrir mão do que se quer para compor o que é importante para o grupo”, diz, acrescentando que se a criança aprender desde cedo que nem sempre será atendida em suas demandas, se lhe for possibilitado aprender a lidar com as frustrações, a convivência social se estabelecerá com naturalidade e será sempre enriquecedora.


Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/15/artigo72199-1.asp. Acesso em 08 dez 2012.