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terça-feira, 31 de março de 2015

Homossexualidade, transexualismo e a medicina tradicional chinesa: da filosofia chinesa às políticas públicas

Fábio L. Stern
Bagoas - n.º 05 - 2010 


Resumo: Apesar de as relações homossexuais terem sido comuns na China Antiga e o Huang Di Nei Jing, livro base da Medicina Chinesa, ter sido escrito nesse período, não há passagens nele que falem sobre isso. Também não há artigos sobre o status médico dos transexuais e homossexuais na Medicina Chinesa, mesmo com a criação de um órgão que estuda Medicina Chinesa e sexualidade pelo Ministério da Saúde da República Popular da China. Sendo assim, este artigo discute a posição da Filosofia Chinesa, a qual originou a Medicina Chinesa, e as políticas públicas sobre transexualismo e homossexualidade na República Popular da China que possam apontar para uma provável postura da Medicina Chinesa perante o tema. 









quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Orientação sexual na CID-11

CLAM
21/10/2014

A homossexualidade deixou de ser considerada transtorno mental em 1973 quando a Associação Americana de Psiquiatria decidiu retirá-la do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM). No entanto, continuou na lista de doenças mentais até 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a versão 10 da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). 

Embora isoladamente deixasse de ser definida como doença, esta orientação sexual permaneceu conectada a uma linguagem patologizante por meio de categorias que a associam a distúrbios mentais. Diante desse cenário, um grupo de trabalho, comandado pela psicóloga e epidemiologista Susan Cochran (UCLA) e o psiquiatra Jack Drescher (NY Medical College) - do qual faz parte Alain Giami (INSERM, França), pesquisador convidado no Programa da Cátedra Francesa da UERJ -, está propondo a eliminação de qualquer vínculo entre orientação sexual e doença para a edição 11 da CID.

Na CID-10, o capítulo 5 (Doenças Mentais e Comportamentais) define, através das categorias F66, três transtornos ligados à orientação sexual: “sexual maturation disorder”, que situa a orientação sexual (homo, hetero ou bissexual) como causa de ansiedade ou depressão em razão da incerteza do indivíduo quanto ao seu desejo; “ego-dystonic sexual orientation”, quando o indivíduo, embora seguro de sua orientação, deseja mudá-la; e “sexual relationship disorder”, manifesta nos casos em que a orientação é responsável pela dificuldade em formar ou manter um relacionamento com um parceiro sexual.

“A proposta do grupo de trabalho é eliminar tais categorias, considerando que orientação sexual não é uma causa de transtorno mental, do ponto de vista biomédico, mas uma questão de variabilidade social que não pode ser definida como patológica. É uma variação normal das diferenças do comportamento. Assim, a proposta é não usar a homossexualidade como transtorno ou como causa de doença”, destaca Alain Giami, integrante do grupo de trabalho designado especificamente para revisar o tema da orientação sexual – há outros três grupos que revisam o capítulo 5, no tocante a temas como identidade de gênero, parafilias e disfunções sexuais.

No artigo em que sintetizam a proposta do grupo, os autores argumentam que as causas da orientação sexual são desconhecidas, mas afirmam que provavelmente reflete um conjunto de fatores genéticos, de exposição pré-natal a hormônios, experiência de vida e contexto social. A partir disso, destacam que a variação de orientação sexual é ubíqua, em distintas sociedades.

Entretanto, o estigma social é um traço comum em diversas sociedades, afetando as pessoas que não se enquadram no modelo hetenormativo – que situa homem e mulher como seres distintos e complementares com papéis naturalmente determinados – e também aquelas que estão em situação de discriminação por raça, etnia, classe social, religião e portadores de deficiência.

Assim, vivendo em contextos de exclusão, discriminação e violência, indivíduos homossexuais estão expostos a significativo nível de estresse. “Evidências mostram que gays, lésbicas e bissexuais demonstram com frequência graus de estresse maior que os heterossexuais”, afirmam os autores no artigo. Nesse sentido, a proposta do grupo é eliminar as categorias F66 de maneira que a perspectiva biomédica não seja a fundamentação para doenças e sofrimentos relacionados à homossexualidade. A intenção é vincular os transtornos – como ansiedade e depressão (que acometem pessoas gays ou bissexuais) – ao ambiente em que vivem, geralmente hostil, designando-os como problemas psicossociais: para isso, são indicadas as categorias Z, que estabelecem protocolos de atendimento para os indivíduos que precisam de aconselhamento em matéria de sexualidade, sem a presença necessária de uma doença mental. Com essas categorias, a possibilidade de se acessar o sistema público de saúde seria mantida, na medida em que a despatologização não representaria uma desmedicalização das dificuldades, problemas e sofrimento que podem afetar os indivíduos.

Do outro lado, alguns profissionais de saúde pesquisados alegam, por sua vez, que as categorias F66 podem ser úteis para melhorar a precisão do diagnóstico, ao servirem como pistas para o trabalho médico, inclusive como sinalização de outras doenças. Por essa lógica, “sexual maturation disorder” ou “sexual relationship disorder” poderiam ser mantidos como diagnósticos alternativos para o transtorno de gênero – utilizado para enquadrar indivíduos transexuais. Também nesse sentido, profissionais de saúde afirmam que o estresse em um/uma pessoa homossexual pode ser evidência de “ego-dystonic sexual orientation”, isto é, quando o indivíduo quer mudar de orientação sexual.

Porém, de acordo com os integrantes do grupo de trabalho, isso não permite afirmar que as categorias F66 melhoram a precisão de diagnóstico e, assim, sejam clinicamente úteis. “Uma situação de estresse, por exemplo, pode ser uma resposta adaptada a um acontecimento, sem ser clinicamente relevante. Por isso, não parece haver evidência que justifique intervenções específicas para orientação sexual, distintas daquelas utilizadas para doenças como depressão e ansiedade. Isso pode levar, inclusive, a um tratamento inapropriado para o paciente. Um estresse ligado a relações sociais ou psicossociais não pode ser considerado transtorno”, pondera Alain Giami.

A associação entre orientação sexual e doença não é recente. Na CID-6 (publicada em 1948), a homossexualidade foi pela primeira vez tratada como patologia, sendo classificada como um desvio sexual ligado a um distúrbio de personalidade. Contudo, pesquisas desenvolvidas ao longo da segunda metade do século XX não corroboraram com a tese. Conforme destacam os autores do artigo do grupo de trabalho da OMS, revisões realizadas em publicações científicas importantes mostraram que a última citação de “ego-dystonic-homossexuality” foi em 1995. Nem mesmo periódicos sobre desenvolvimento psicossexual têm discutido doenças no campo. Além disso, não obstante a CID ser um marco de referência mundial para o monitoramento em saúde pública, as categorias F66 pouco contribuem para esse fim.

Apesar da falta de evidências científicas que sustentem o caráter patológico da orientação sexual, tem sido comum no Brasil e em alguns países africanos a prática da chamada “terapia de reorientação sexual” ou “terapia de conversão”. Formulada e oferecida sobretudo por profissionais da saúde ligados a grupos religiosos dogmáticos, tal terapia consiste em um conjunto de métodos destinados a eliminar a homossexualidade do indivíduo, “restaurando” o desejo por pessoas do outro sexo de modo que as relações sexuais e afetivas sejam heterossexuais. Esse tipo de prática tem sido amplamente criticado e rejeitado por profissionais de saúde, pesquisadores, autoridades e ativistas ao redor do mundo.

No Brasil, inclusive, desde 1999 uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio ou perversão" e que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade”.

A questão dos direitos humanos

Para o grupo de trabalho da OMS, terapias que buscam modificar a orientação sexual de uma pessoa estão à margem dos padrões éticos. Princípios de direitos humanos, especialmente no âmbito dos direitos sexuais, constituem ferramentas importantes para a proposta de eliminação das categorias F66, porque garantem, entre outras prerrogativas, autonomia, liberdade, integridade e escolha livre e responsável para o exercício e manifestação das práticas e desejos sexuais de forma segura. Essas ideias têm sido defendidas e promovidas por órgãos internacionais como forma de combater a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, do que são exemplos a aprovação no final de setembro de resolução pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Declaração dos Direitos Sexuais da Associação Mundial de Direitos Sexuais (WAS, sigla em inglês), que reafirma o respeito e a proteção à orientação sexual.

Não apenas uma questão científica, mas também – e talvez principalmente – política. As lutas travadas em torno da homossexualidade são antigas, envolvendo diversos tipos de linguagens e discursos. Em 1973, quando a Associação Americana de Psiquiatria (APA) retirou-a do rol de doenças definidas pelo seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) , a medida refletiu não apenas argumentos científicos, mas também uma série de mudanças ocorridas após os anos 1960 e o movimento de liberação sexual, momento em que ideias mais inclusivas ganharam densidade em meio às tensões morais que envolvem questões de sexualidade. Por isso, os grupos de trabalho que trabalham na revisão da CID-11 sabem que suas recomendações podem não ser necessariamente aprovadas. As propostas são primeiramente analisadas pelo Comitê Central do capítulo sobre transtornos mentais e comportamentais, seguindo para o Comitê Geral da CID e, por fim, sendo votadas na Assembleia Geral da OMS, com previsão de publicação para 2017.

Um argumento favorável à manutenção das categorias F66 é a proteção que elas oferecem a indivíduos de países que punem, com legislação criminal, relações entre pessoas do mesmo sexo, inclusive com pena de morte. Por essa lógica, a doença os isentaria da execução. No entanto, o estudo do grupo não conseguiu identificar o uso desse tipo de defesa. A realidade de cada país é um desafio difícil de conciliar na proposta de revisão da CID, cuja apreciação é feita em um fórum global, com visões de mundo muito amplas e distintas.

Apesar das dificuldades e dos aspectos tanto científicos quanto políticos, Alain Giami acredita que o grupo de revisão apresenta uma postura relevante. “Nossa recomendação não é oficial, é apenas um documento de trabalho. Mas penso que é um progresso, tendo em vista a possibilidade de se eliminar oficialmente uma linguagem estigmatizante”, conclui Alain Giami, que atua como investigador convidado da Cátedra Francesa da UERJ, no Instituto de Medicina Social (IMS), até o mês de dezembro.


Disponível em http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=11863. Acesso em 22 out 2014.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Lacan e o crossdressing

Eliane Chermann Kogut
CLIPP - Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise, 2012

Resumo: O termo travestismo foi cunhado pelo médico alemão Magnus Hirschfeld em 1910, para designar aqueles que, independentemente de suas inclinações sexuais, têm prazer em vestir roupas do sexo oposto. Hirschfeld investigou inúmeros casos e discriminou as diversas incidências do travestismo, diferenciando-as da homossexualidade. Ao longo do tempo, contudo, o termo passou a agregar significados pejorativos até tornar-se associado à prostituição e eventualmente a comportamentos antissociais. Assim, procurando desvincular-se do estigma do termo, muitos travestis preferem, atualmente, se autodenominar crossdresser. Além disso, surgiu ao longo dos anos 70 e 80 uma “nosologia popular” na qual os próprios praticantes diferenciam crossdresser de travesti, de drag queen e de transexual. Neste trabalho adotaremos preferencialmente, o termo crossdresser (menos carregado de preconceito).

sábado, 26 de abril de 2014

A violência que ousa dizer os seus números: aspectos polêmicos do projeto de lei que criminaliza a homofobia no Brasil à luz da laicidade estatal

Bruno Alves de Sousa
Monografia ao Curso de Direito
Universidade Federal do Ceará
Área de concentração: Direito Homoafetivo
Fortaleza - 2013

Resumo: A violência contra os LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) tem aumentado. Em alguns países do mundo a homossexualidade continua ilegal. A sociedade brasileira tem começado a se preocupar com a homofobia. Recentemente foi proposta uma lei que criminaliza a homofobia, o Projeto de Lei 122/2006. Este trabalho tem o objetivo de analisar os reais impactos desse projeto no combate à discriminação em relação à orientação sexual. Suscita questionamentos sobre uma suposta ofensa aos princípios da liberdade de crença e de expressão em respeito ao princípio da laicidade estatal. Indaga ainda se é possível a solução do problema pela via penal. É uma pesquisa em parte bibliográfica e noutra parte pesquisa de campo. O estudo abordou leituras de outras áreas do conhecimento como a Sociologia e a Psicologia. A investigação ocorreu através de aplicação de questionário a membros de diversos setores sociais. Conclui-se que a matéria ainda causa bastante polêmica. Há visões divergentes dentro do movimento social sobre a estratégia penal de respeito à diversidade sexual, assim como persistem fortes elementos discriminatórios presentes na cultura brasileira.



quinta-feira, 24 de abril de 2014

A guerra declarada contra o menino afeminado

Giancarlo Cornejo

Na escola havia una psicóloga que me torturava. Ela nos aplicava exames que eu não entendia (e ainda não entendo o sentido): desenhávamos pessoas; a nossa família; fazíamos listas de nossos defeitos e virtudes. Ela sempre se queixava com meus pais. Me lembro que uma vez  quando ela chamou a mim e aos meus pais. Vi claramente meu nome em seu caderno de anotações, e no verso dele um X em uma opção que dizia: “problemas de identidade sexual”. Eu não estava presente quando ela conversou com meus pais, mas o que ela disse a eles, e o que eu mais ou menos já intuía, os chateou muito.

Parte desta minha narrativa escrevi inspirado pelo belo ensaio de Eve Sedgwick “How to bring your kids up gay” (1993 [2007]). Nesse ensaio, Sedgwick propõe que a figura do menino afeminado concentra com particular virulência a patologização da homossexualidade. De fato a psicóloga que mencionei declarou que eu tinha um transtorno de identidade de gênero. Este tipo de teorias de gênero foram propostas inicialmente por psicólogos como Richard C. Friedman, para quem “o homossexual saudável é aquele que já é um adulto e (b) age masculinamente” (Sedgwick 1993: 156, tradução minha). Sedgwick, além disso, se lembra que:

O movimento gay nunca foi a fundo para atender os assuntos relativos aos meninos afeminados. Há uma razão desonrosa para essa posição marginal ou estigmatizada a qual, inclusive, os homens gays adultos que são afeminados têm sido relegados no movimento social. Uma razão mais compreensível que a “afeminofobia”  é a necessidade conceitual do movimento gay de interromper uma longa tradição de ver o gênero e a sexualidade como categorias contínuas e coladas – uma tradição de assumir que qualquer pessoa, homem ou mulher, que deseja um homem deve por definição ser feminina, e que qualquer pessoa, homem ou mulher, que deseje uma mulher deve, pela mesma razão, ser masculina. Que uma mulher, como uma mulher, possa desejar a outra; que um homem, como um homem, possa desejar outro: a necessidade indispensável de fazer estas poderosas e subversivas afirmações pareceu, talvez, requerer que se diminuísse a ênfase relativa dos vínculos entre os gays adultos e aqueles meninos em desacordo com o gênero (normativo)… Existe o perigo, no entanto, que este avanço possa deixar o menino afeminado mais uma vez na posição do abjeto inquietante – desta vez o abjeto inquietante do próprio pensamento gay… o eclipse do menino afeminado no discurso gay adulto representaria mais que um vazio teórico prejudicial; representaria um nó de ódio homofóbico, ginecofóbico e pedofóbico internalizado e aniquilante e um elemento central para a uma análise gay afirmativa. O menino afeminado viria a funcionar como o segredo das vozes desautorizadoras de muitos homens gays adultos politizados” (1993: 157-158, tradução minha)

O menino afeminado é um segredo nas vozes e pensamento gay, e isso, pelos motivos apontados por Sedgwick, talvez se deva a um terror à indeterminação de gênero. Finalmente dissociar a homossexualidade da (menos respeitável) transgeneridade provavelmente tem sido uma das formas pela qual a homossexualidade tem aparecido como menos ameaçadora, e foi certamente, uma das formas pelas quais ela foi retirada da lista de patologias do “Manual Diagnóstico e Estatístico dosTranstornos Mentais” (DSM-III). Basta recordar que o DSM-IV, publicado em 1980, foi o primeiro a incluir uma nova entrada: “o transtorno de identidade de gênero na infância”. Não obstante, ou talvez por isso mesmo, minha intenção seja resgatar estas conexões e vínculos entre a transgeneridade e a homossexualidade. Vale ressaltar que estes limites ou fronteiras tem sido amplamente problematizados no caso das lésbicas masculinizadas (butch) e de transgêneros masculinos, como os trabalhos de Judith Halberstam (1998 e 2005) mostram. No entanto, no caso das feminilidades masculinas estas não parecem ser disputadas por gays (Bryant 2008, Valentine 2007). No que escrevo a seguir só poderei dar pistas de como a patologização da figura do menino afeminado cria um tropo[1] discursivo que torna impossível desassociar a transgeneridade da homosexualidade (masculina).

Quase todos meus professores me adoravam, mas me lembro que os que lecionavam educação física eram particularmente hostis a mim. Um destes professores falou com meu pai, porque estava preocupado comigo, e disse a ele (a meu pai) que eu era muito afeminado, e que todos meus colegas zombavam de mim. Meu pai, ao chegar em casa, me repreendeu, e não duvidou em me culpa pela hostilização sistemática pela qual eu passava no colégio. Quando este professor chamou meu pai para falar sobre o meu afeminamento, tornou-se inevitável e óbvia a patologização do meu corpo, como das minhas performances de gênero. O que não era tão óbvio é que, naquele momento, este jovem e atlético professor estava reconhecendo a sua própria impotência para modificar meu afeminamento, sua impotência para me fazer o homem que se supunha eu deveria ser, e sua impotência para marcar claramente os limites entre ele e eu. Me lembro que este não era um professor particularmente hostil a mim. De fato, sempre me convidava para jogar futebol, ou para correr com ele e seu grupo, para fazer longas caminhadas, para fazer abdominais. Na verdade, era bem atencioso comigo. No entanto, eu recusava todos aqueles convites, eu não me deixava impressionar por todos os seus esforços, e certamente eu não lhe dava muita atenção.

Como Sedgwick afirma, e meu pai nunca pode sequer considerar: “Para um menino afeminado protogay identificar-se com o “masculino” pode implicar em seu próprio apagamento”. (1993: 161, tradução minha). O que a cultura me demandava era que me desvanecesse.

Halberstam cita uma potente pergunta retirada da obra de Gertrude Stein intitulada Autobiografia de todo o mundo (de 1937): “De que te serve ser um menino se vais crescer para ser um homem?” (2008:23) De que me servia ser um menino se minha infância era pensada como uma transição a um espaço e a um nome que me parecia inabitável? Por que este menino não podia ter outros futuros?

Por muitos meses sentia demasiada angustia, tinha insônia, me doía a cabeça e o copo, chorava antes de ir dormir, me encontrava querendo dizer coisas que não sabia o que eram exatamente, mas que tinha de dizê-las. Era Natal de 1996, e eu tinha onze anos, e estava só com minha mãe e meu irmão menor. E comecei a chorar, a chorar, a chorar com gemidos muito fortes. Então eu disse para minha mãe que tinha algo para dizer a ela, e o que balbuciei foi: “Mãe, acho que eu tenho atração por homens”. Minha mãe também começou a chorar, porque ela entendeu o que eu quis dizer. Logo, ela nos levou ao cinema para ver uma estúpida comédia de Arnold Schwarzenegger, um suposto símbolo de masculinidade heterossexual branca. Mas será que por acaso minha mãe suspeitava que ele também podia ser um ícone homoerótico?

Se esse menino (que eu fui) viveu meses e anos de dor, angustia, pânico (homossexual) foi porque a díade segredo/revelação é constitutiva do que chamamos hoje homossexualidade (Sedgwick 1998). Este segredo em questão me ameaçava com meu próprio apagamento, mas não apenas com a materialidade que eu havia sido, mas com um apagamento que aniquilava qualquer possibilidade de futuro, e com uma  materialidade que fazia com que o amor  (de qualquer tipo) fosse impossível para mim.

Não posso negar que compartilhar o segredo me causou algum tipo de alívio. Provavelmente se não o houvesse feito naquele momento teria integrado a lista de adolescentes gays que se suicidam. Mas, em que consistia o alívio? Este cenário não questiona (necessariamente) a privatização da homossexualidade nem sua paródica espectacularização como segredo. Estou mais inclinado a pensar, seguindo Mario Pecheny (2002 [2005]), que cita o trabalho de Andras Zempleni, que não é a revelação de uma verdade interna o que mais alivia, mas, ao compartilhar um segredo (e talvez este em particular) se compartilha também a angustia e a dor que encarna a demanda de ocultar-lo/exibi-lo.

Esta pode ser vista como a cena em que saio do armário, mas me recuso a chamá-la e pensá-la assim. Nenhum armário foi destruído, nem os monstros que o habitavam foram domados e aniquilados. O pedido ou súplica que fiz à minha mãe não foi que me ajudasse a sair do armário, mas que o fizesse mais habitável para mim. Eu não sai do armário, na verdade, ela entrou nele.

Neste ponto se faz mais que necessária a seguinte pergunta: Por que uma guerra é declarada contra uma criança? Há uma potente citação de Sedgwick que pode nos dar algumas pistas neste sentido:

A capacidade do corpo de um menino de representar, entre outras coisas, os medos, fúrias, apetites, e perdas das pessoas ao redor… é aterrorizante, quem sabe, em primeiro lugar para elas, mas com um terror que o menino já aprendeu com grande facilidade e, de todos modos, com muita ajuda. (1993 p. 199, tradução minha).

Toda esta dor, toda a angustia que senti nessa época da minha vida pode também ser pensada como melancolia. E aqui eu gostaria de fazer uma contribuição à teoria da melancolia de gênero de Butler (2001). Uma diferença entre a melancolia heterossexual e a homossexual, é que como eu na minha infância, e a maioria de sujeitos não heterossexuais que conheço temos chorado (ou choramos) por não sermos heterossexuais. Alguém poderia argumentar que não é que choremos ou tenhamos chorado por não sermos heterossexuais (e por não podermos amar e desejar sexualmente a mulheres no caso de “ser” homens), mas que choramos por não ter os privilégios que a heterossexualidade implica. Mas estas duas posições são (tão) diferentes assim uma de outra?

Aqueles “tratamentos psicológicos” procuravam, supostamente, fazer com que minha homossexualidade fosse impronunciável, mas faziam, na verdade, que ela proliferasse e que tudo tivesse a ver com ela. Como Butler (2004) argumenta, a homossexualidade em certos contextos pode constituir-se como uma palavra contagiosa.

De fato em nenhuma parte deste ensaio seria mais pertinente fazer referência a seguinte (e  muito citada) passagem de Michel Foucault:

A sodomia… era um tipo de ato interdito e o autor não era mais que seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX torna-se um personagem: um passado, uma história e uma infância, um caráter, uma forma de vida; assim mesmo uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e, quem sabe, uma misteriosa fisiologia. Nada daquilo que ele é escapa a sua sexualidade. Ela está presente em todo seu ser: subjacente em todas suas condutas, posto que constituí seu principio insidioso e indefinidamente ativo; inscrita sem pudor em seu rosto e seu corpo porque consiste em um segredo que sempre se trai… A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi rebaixada da prática da sodomia a uma sorte de androginia interior, de hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, o homossexual é, agora, uma espécie. (1977[2007]: 56-57).

As inumeráveis psicólogas a quais fui levado por meus pais esperavam de mim uma confissão, a confissão de minha verdade interior, uma verdade que era eminentemente sexual. Mas esta “verdade interna” não era tão minha. Nos termos de Foucault: “aquele que escuta não será só o dono do perdão, o juíz que condena ou absolve; será o dono da verdade”. (1977[2007]: 84). Esta era a “verdade” de uma cultura heteronormativa, não a minha. E como Halperin (2000) argumenta, a homofobia é uma pretensão de conhecimento. Isso faria visível que a homofobia tem um fundamento essencialmente prazeroso também, um prazer novo da modernidade sobre o que Foucault comenta:

Frequentemente se diz que temos sido capazes de imaginar prazeres novos.  Ao menos inventamos um prazer diferente: o prazer na verdade do prazer, prazer em saber-la, em expor-la, em descobri-la, em fascinar-la ao vê-la, ao dizê-la, ao cativar e capturar os outros com ela, ao confiná-la secretamente, ao desmascará-la com astucia; prazer específico no discurso verdadeiro sobre o prazer”. (1977[2007]: 89).

Eu não fui o único patologizado por estes professores, psicólogas e psiquiatras, o foram também meus pais, e especialmente minha mãe. Figuras como as do “pai ausente” ou “mãe super protetora” não tardaram a aparecer como explicações de (pois teria que ser explicado) meu afeminamento. Esther Newton cita a obra de Robert Stoller para quem a figura do menino afeminado é produto da grande proximidade e presença da mãe e pouca do pai. Assim, “a verdadeira vilã é a mãe que se ‘gratifica’ muito com seu filho” (Newton 2000: 191, tradução minha). De fato, quem me acompanhava às sessões com diferentes psicólogas era minha mãe. A ela se dirigiam, e sobre ela recaiam as atribuições de culpa e responsabilidade. E de que a culpavam realmente? Talvez por atribuir a ela aquele que é considerado o pior dos crimes: matar a seu próprio filho. Nas palavras de Edelman “[Se] representa a homossexualidade masculina através da figura de uma mãe que mata seu filho, e quem, portanto participa na destruição de continuidade familiar (patriarcal)”. (1994: 167, tradução minha).

Como a homossexualidade de uma criança se transfigura em seu assassinato? Creio que Stockton acerta ao postular que “a frase “menino gay” é uma lápide para marcar o lugar e o momento em que a vida heterossexual de alguém morre” (2009: 7. Tradução minha). Em outras palavras, o berço de um menino mariquinha é a lápide de um menino heterossexual.

A categoria “mulher” é reiterada uma e outra vez nestas intervenções disciplinarias sobre meu corpo de uma maneira heteronormativa e misógina, que já Guy Hocquenghem sublinhou: “‘A mulher’, que por outro lado não tem como tal nenhum lugar na sociedade, designada como o único objeto sexual social, é também a falta atribuída à relação homossexual”. (2009: 54)

Minha mãe era assim patologizada por seu generoso afeto, que por estes “profissionais da saúde” será chamado super proteção e excessiva arogância, e que geraria (em mim) um quadro de neuroses que estaria associado a um ódio em relação às mulheres, que seria no fundo uma projeção de um ódio fecundo em relação à minha mãe. Minha mãe seria essencialmente patologizada também por um outro excesso: por um excesso de masculinidade, que se expressava em sua relativa independência, em sua voz, em suas atitudes (ou na ausência delas), e em ser a principal provedora econômica da minha casa. Não era só era meu gênero aquele a ser disciplinado, o dela também o era.

Na sua míope vontade de saber, o que nenhuma destas psicólogas pôde nem por um segundo considerar, e que Sedgwick sabia, e no que eu quero acreditar, é que “estas misteriosas habilidades para [que um menino afeminado possa] sobreviver, de filiação e de resistência podem derivar de uma firme identificação com a abundancia de recursos de uma mãe” (1993: 160, tradução minha).

Bibliografia
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FOUCAULT, Michel. 1977 (2007). Historia de la Sexualidad 1: La voluntad de saber. México DF: Siglo Veintiuno.
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PECHENY, Mario. 2002 [2005]. “Identidades discretas”. En: Identidades, sujetos y subjetividades. Comp: ARFUCH. Buenos Aires: Prometeo Libros. 131-153.
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VALENTINE, David. 2007. Imagining Transgender: An Ethnography of a Category. Durham & London: Duke University Press.
[1] É uma figura de linguagem onde ocorre uma mudança de significado, seja interna (em nível do pensamento) ou externa (em nível da palavra).

OBS.: O texto foi apresentado no ST coordenado por Larissa Pelúcio e Berenice Bento no Seminário Internacional Fazendo Gênero 2010. Giancarlo Cornejo, sociólogo peruano, permitiu que publicássemos no Ponto Q sua reflexão-homenagem a Eve Kosofsky Sedgwick, criadora da Teoria Queer que morreu em abril de 2009. A tradução é de Larissa Pelúcio.



Disponível em http://www.ufscar.br/cis/2011/04/a-guerra-declarada-contra-o-menino-afeminado/. Acesso em 17 abr 2014.

sábado, 12 de abril de 2014

Queer as Folk: Um dialógo entre os movimentos LGBTT e a teoria Queer

Erivaldo Francisco dos Santos Júnior
Monique Cristine Garcez Barros
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012

Resumo: O artigo tem como proposta analisar a principais temáticas abordadas na primeira temporada do seriado norte-americano Queer as Folk (Os Assumidos), primeira série de cunho, exclusivamente, homossexual, enquadrando-as entre os parâmetros dos Movimentos LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) brasileiros e a Teoria Queer, para com isso demonstrar a possibilidade de se ter abordagem midiática que dialogue com as variadas facetas que existem dentro do “universo” da homossexualidade, além de trazer uma breve discussão sobre a representação dos homossexuais na mídia. 




Palavras-chave: Queer as Folk; Movimentos LGBTT; Teoria Queer; homossexualidade; seriado.


sábado, 29 de março de 2014

A sexualidade: de Kardec a Foucault, um olhar de transcendência e contemporaneidade

Vilmar Antonio Bohnert
Universidade Estadual de Goiás
Quirinópolis, GO
Anais do III Simpósio Nacional de História da UEG / Iporá – Goiás / Agosto/2013


Resumo: Esta pesquisa não é uma extensa análise entre Kardec e Foucault e, sim, uma interface possível sobre a homossexualidade. Neste contexto, pretende-se, todavia, iniciar o leitor ao estudo do tema tão relevante e direcionar o assunto para a esfera acadêmica em relação à homossexualidade, de forma especial, ou qualquer outra forma de expressão sexual do indivíduo. Problematiza-se o cotidiano: Como conviver com essa árdua tarefa diária de respeito mútuo, de ver meu semelhante como ele é, ou se apresenta? Como encarar as conquistas na área jurídico-social como o casamento gay e a adoção de filhos por parte desses casais? Na presente pesquisa propõe-se dar à questão um olhar transcendental e contemporâneo. Busca-se mediante o método da pesquisa bibliográfica, elementos e subsídios que ofereçam uma abordagem teórica sobre o tema. Na visão transcendental será dado um enfoque especial sob a ótica da Doutrina Espírita por meio das obras de Allan Kardec, e outros autores, contrapondo teoricamente com a visão contemporânea de Michel Foucault: História da Sexualidade, volumes I, II e III.







segunda-feira, 24 de março de 2014

Walcyr Carrasco revela bastidores da negociação sigilosa para exibir o beijo gay de ‘Amor à vida’

Zean Bravo
09/02/14

Foi na noite de Natal, acompanhado de sua família, “bem classe média”, que Walcyr Carrasco percebeu de vez a existência de uma torcida para que Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) ficassem juntos em “Amor à vida”. Meses antes, o autor já havia decidido quebrar um tabu com o folhetim que marcou a sua estreia no horário nobre da Globo: levar ao ar um beijo de amor entre dois homens no último capítulo. Exibido no dia 31, o desfecho da trama mostrou o tal carinho entre o sushiman e o vilão regenerado, personagens alçados ao posto de casal principal da novela.

O beijo que entrou para a história das telenovelas brasileiras foi resultado de um romance muito bem pensado pelo autor para angariar a aceitação do público. Félix e Niko estão entre os destaques de um novelão de 221 capítulos marcado por muitas reviravoltas e personagens que mudaram radicalmente de comportamento. Ao longo dos últimos meses, Walcyr, de 62 anos, vivenciou a rotina de escrever — sempre tarde da noite, como prefere — o programa mais visto e comentado da TV.

‘Gravamos várias versões do beijo gay: uma conservadora, uma moderada e uma agressiva. Foi assim que me expressei para explicar o que queria. Numa linguagem de investimento financeiro. Na vida bancária, sempre opto pelo moderado, e na novela foi assim também’

Jornalista, autor de novelas e peças de teatro, com 60 livros lançados, ele chegou a dormir em cima do teclado ao criar histórias de “Amor à vida” “praticamente dopado” por remédios para aliviar a dor que sentiu após a extração e o implante de cinco dentes, em meados do ano passado. Dizendo-se de luto pelo fim da novela, Walcyr fazia a primeira refeição do dia às 15h30 quando recebeu, na semana passada, a Revista da TV em seu apartamento carioca — ele vive entre Rio e São Paulo.

O autor detesta acordar cedo e mostra sua face “gente como a gente” ao comentar o alto custo de vida das duas cidades onde vive. Ele ainda não se desligou do recente trabalho. Domingo passado, jantou com Mateus Solano e sua mulher, a atriz Paula Braun, também do elenco da novela, num restaurante do Leblon. O ator era um dos poucos que já sabiam sobre o beijo, planejado sob total sigilo.

‘Félix não foi autobiográfico. O meu pai me amava e sempre me incentivou’, diz Walcyr

Nesta entrevista, parte da série com autores de novelas iniciada pela Revista da TV em janeiro, o criador de tramas como “O cravo e a rosa” (2000), “Caras & bocas” (2009), em reprise atualmente nas tardes da Globo, e da mais recente versão de “Gabriela” (2012), conta detalhes sobre a aprovação e a gravação da cena do beijo. Ele esclarece boatos, como a fama de ser vingativo com atores que não seguem à risca o texto que escreve. E comenta ainda os sucessos e os percalços da carreira como autor de novelas, iniciada com a “Cortina de vidro”, exibida pelo SBT em 1989.

Por que deixou o beijo para o final da novela?
Sempre quis deixar para o último capítulo porque sabia que seria uma bomba, algo que iria surpreender a sociedade.

Como surgiu a iniciativa de exibir a cena?
A imaginação de todo mundo é maior do que a realidade. Não tive nenhum problema em relação ao beijo. Eu tinha uma história e, há quatro meses, fui ao diretor-geral de entretenimento (Manoel Martins) e falei: “Acho que está na hora desse beijo acontecer porque a história está pedindo”. Naquele momento, o casal Félix e Niko ainda não tinha acontecido com força. Mas a questão da família estava presente entre Niko e Eron. O beijo poderia ter sido entre o Thiago e o Marcello Antony. Eu propus um beijo de despedida entre o casal, algo do dia a dia, de pessoas que estão juntas e dão um beijo quando um deles vai trabalhar.

Já imaginava que o beijo seria aprovado quando foi conversar com a direção da emissora?
É importante dizer que essa não é uma decisão que se toma sozinho. Isso afeta toda a estrutura da Globo. Mas a emissora vive um processo de atualização neste momento de sua história e está buscando uma sintonia fina com a sociedade. Dois dias depois, o Manoel me respondeu com um OK, caso a cena fosse feita dessa forma que falei.

A novela abordou diferentes formações familiares. Por que escolheu mostrar o casal gay nesse contexto?
Brinco muito que o movimento LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis) busca cada vez mais a família, o casamento. Todos os valores que, de certa forma, compõem a vida da sociedade. Por isso propus o beijo dentro de um contexto familiar.

A emissora fez algum tipo de pedido?
A postura da emissora era de manter sigilo e respeito. E a minha também.

Essa história de que você recebeu carta branca da emissora para decidir se teria ou não beijo é verdade?
Hoje em dia há uma grande parcela da imprensa extremamente fantasiosa e reacionária. Principalmente a feita na internet, que cria um movimento de especulação em cima das novelas. E que não é do bem. Essa história de carta branca nunca existiu. Foi uma invenção. O que houve é fruto de uma decisão que eu, como autor, levei para a empresa. Mas se falasse com a imprensa naquele momento sobre isso, a especulação teria sido ainda mais absurda.

Como conseguiram manter o sigilo?
Quase ninguém sabia que haveria o beijo. Combinei pessoalmente com o Mauro Mendonça Filho (diretor-geral): “Quando aparecer tal sinal no texto, será o beijo”. Quem quer que tenha tido acesso ao capítulo não notou. O código foi uma linha de asteriscos.

Quantas versões do beijo foram gravadas?
Gravamos várias versões: uma conservadora, uma moderada e uma agressiva. Foi assim que me expressei para explicar o que queria. Numa linguagem de investimento financeiro. Na vida bancária, sempre opto pelo moderado, e na novela foi assim também. Achava que não poderia ser a versão conservadora, que era pouco mais do que um selinho, nem a agressiva. Por um simples fato. Eles estavam se despedindo, não indo para a cama. Esse outro beijo (de língua) é dado quando você está indo para a cama. Não era a situação. Foi gravado, sim, até para a gente ter opções. Mas sabia que não seria esse. Nem sei dizer quantas vezes eles gravaram porque fizeram em vários ângulos. Tinha: opção A, com meio corpo, A só com rosto, e por aí vai...

Quis ver a cena antes?
Claro. Até para discutir qual seria o beijo que representaria a situação que a gente queria. A decisão foi unânime. Eu queria um beijo tradicional, mas de amor. Era essencial. Era um momento do casal que não pressupunha um beijo mais intenso. Acho que o amor promove aceitação, e a novela falava disso. Mas a gente também precisava da aceitação do público.

Quando foi a escolha?
No dia do último capítulo. Tenho horror de acordar cedo, mas tinha que ver o quanto antes porque a cena precisava ser editada. Acordei às 8h, saí de casa um caco. Mauro, que dirigiu a cena, e o Wolf (Maya, diretor de núcleo) estavam presentes. Vimos juntos e levamos nossa opção à direção. É um assunto sério. Quando você faz uma coisa pioneira, tudo tem que estar de acordo com a emissora. O Manoel Martins é o diretor de entretenimento e tinha que participar. Ele fechou com o que a gente tinha fechado.

Existia entre vocês a sensação de que fariam História?
Eu tinha o sentimento de que ia fazer História. Sei que daqui a 50 anos em qualquer livro sobre a TV brasileira, vai ter esse beijo. Tenho uma relação mais próxima com o Mateus, gosto muito dele como pessoa também. Quando falei para ele, em segredo, disse que entraria para a história da TV.

Quando conversou com o Mateus já havia decidido que Niko ficaria com Félix?
Sim, mas já tem um tempinho que contei a ele. A história estava em branco quando comecei a ver a questão do beijo, mas foi tomando outros rumos. Niko tinha se separado do Eron. Naquele instante o Félix tinha ficado pobre e começado a se redimir.

Você construiu o romance de Félix e Niko para torná-los o casal principal da trama?
A estrutura do romance deles é a de um namoro hetero de novela. Eles se conhecem, brigam sempre no final do papo. De repente, Eron faz uma fofoca para separar os dois. Niko, que cuida de duas criancinhas com todo amor, acredita que Félix está com outro, sofre. Tudo proporcionou um desfecho natural. As pessoas já viam o romance com tranquilidade.

Quando percebeu que tinha acertado?
Tive certeza absoluta de que estava no caminho certo na noite de Natal, em família. A gente faz um Natal bem classe média, com amigo secreto... E, de repente, na sala, a discussão das mulheres era Félix e Niko. A minha sobrinha Andrea disse: “Vocês têm noção de que há 4 ou 5 anos a gente não estaria discutindo isso?”. E eles não estavam falando da novela porque eu estava lá. Não conto nada da trama nem para a família.

Como define os rumos da história?
Sento e assisto à novela todas as noites, como se fosse o público. E desenvolvo um diálogo com os atores através do que vejo. Danielle Winits, por exemplo, foi hábil. Viu por onde iria brilhar e brilhou. Acho que o beijo aconteceu porque tínhamos dois astros nos papéis. Tanto que, ao procurar a mulher para fazer a Amarilys, pensei na Danielle. Ela faria bem o que chamo de “bruxa de bicha”, ela tem essa cara.

Costuma levar em consideração o que é dito na web?
Eu não me acostumei com isso. O autor não pode dar ouvido ao que falam. A internet ainda não expressa a opinião da totalidade da população brasileira. Mas dá para acompanhar a repercussão de uma cena. Durante a novela, a Amarilys estourava na internet quando aparecia. Mesmo que sejam tuítes contrários, é sinal de que a personagem pegou.

E as cobranças de que muitas das tramas de “Amor à vida” não eram verossímeis?
No Twitter, as pessoas escrevem: “Essa novela só tem maldade, e as coisas não dão certo”. Como se a TV fosse a culpada. E a literatura? Do que se trata? Da alma humana, das contradições, dos desencontros... A novela tem vilões e histórias de amor que não dão certo, como na literatura. Só o Pequeno Príncipe é bonzinho o tempo todo.

Muitos acusaram o texto da novela de ser didático em alguns momentos...
A novela se passa num hospital, e achei que tinha que trazer mensagens sociais, como a doação de órgãos. Mas não se pode confundir a novela com uma aula ou um documentário.

Por que abordar temas variados, como alcoolismo e o vírus HIV, sem aprofundar essas discussões?
Não dava para explorar todos os temas. Eu quis tocar neles, falar que existem e, talvez, causar um ponto de curiosidade.

“Amor à vida” foi esticada e terminou com 221 capítulos. Foi sofrido?
Não tenho problema com isso. Adoro escrever, seja o que for. Seja livro, um texto para teatro... E adoro escrever novela. “Caras & bocas” teve 232 capítulos. “Morde & assopra” foi a única que não foi aumentada e teve 180. O projeto inicial de “O cravo e a rosa” era de 90 capítulos e acabou com 221. Lembro que tive que criar um hotel para ter um cenário para botar mais personagens.

Como é o seu processo de criação?
Tenho uma velocidade muito grande para escrever. Sento para criar o capítulo à noite, após a exibição da novela. Escrevo em 4 horas, no máximo. Não gosto de acordar cedo. Durante o dia penso na novela. Preciso de um período de calmaria. Não faço escaleta. O meu método de trabalho é o caos. Tive agora quatro colaboradores. O capítulo vai montado, mas deixo uns buracos de cenas para eles escreverem.

É verdade que não tolera ator que altera seu texto?
Eu odeio (diz, com ênfase nesta palavra) ator que usa caco. É uma prova de que ele não é bom, que não consegue botar intenção naquilo que está escrito e precisa usar muletas, falar do seu jeito. Se um ator diz o texto sempre do jeito dele, faz tudo sempre igual.

O que faz com os atores que usam cacos?
Eu deixo de me interessar pelo personagem. Houve um caso em que parei de escrever para o ator, que virou quase um figurante.

Você matou a personagem da Marina Ruy Barbosa porque ela não cortou o cabelo?
Neste caso, não tinha o que fazer. Foi o caso de uma atriz que subverteu a trama. A personagem da Marina morreu porque não tive alternativa. Ela tinha uma doença fatal. Para se curar, teria que mostrar as consequências físicas do tratamento. Já tinha dito que ela estava perdendo cabelo em cena.

Voltaria a trabalhar com a Marina?
Não devemos dizer nunca. As pessoas mudam, se transformam. Com atores que apoiaram seus personagens em cacos, não voltei a trabalhar.

Voltando ao início de sua carreira. Como lidou quando a sua parceria com Walter Avancini, inciada em “Xica da Silva”, foi interrompida com a morte do diretor durante “A padroeira” (2001)?
Ele era meu grande parceiro. Na época de “Xica”, a gente se falava todos os dias ao telefone. Sua morte foi um choque e perdi o passo. A novela não foi um fracasso, mas deu menos audiência para a época.

Como foi a experiência de substituir Benedito Ruy Barbosa nos últimos capítulos de “Esperança”, em 2002?
Peguei a novela na sexta e tinha que escrever o capítulo de terça. Era uma trama a que eu não assistia todos os dias. Fiz do meu jeito e acho que Benedito tem uma mágoa grande.

Quais os maiores problemas que enfrentou durante “Amor à vida”?
Tive um problema nos dentes durante a novela, sentia muita dor. Tomava remédio de duas em duas horas e cheguei a dormir em cima do teclado.

Qual é a sua novela preferida?
Sou contra ter novelas ou livros preferidos. A gente é educado para ser sempre o melhor. E você começa a botar a sua vida para disputar com ela mesma. Depois de uma certa idade, você não é o mais bonito da festa, nem o mais bem vestido. Tem que aprender que não é necessário ser o melhor. Nem o melhor autor do Brasil. Cada trabalho dá uma satisfação.

Como lida com o sucesso?
Certas coisas se tornam um vício na vida. E o sucesso não pode virar isso. Aprendi olhando pessoas que entram nessa.

O que pode adiantar da sua próxima novela?
Será uma comédia de época para o horário das 18h. Da próxima vez, quero ter menos personagens para não ficar em dívida com ninguém. Eliane Giardini e José Wilker são grande atores e mereciam mais em “Amor à vida”. Não quero mais ficar em dívida. Grande atores terão papéis para seu tamanho.

Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/walcyr-carrasco-revela-bastidores-da-negociacao-sigilosa-para-exibir-beijo-gay-de-amor-vida-11540390. Acesso em 23 mar 2014.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Os efeitos de personagens LGBT de telenovelas na formação de opinião dos telespectadores sobre a homossexualidade

Welton Danner Trindade
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP
XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
Recife, PE – 2 a 6 de setembro de 2011

Resumo: De 2003 a 2008, a Rede Globo de Televisão exibiu nove telenovelas consecutivas no horário das 21h com personagens LGBT, cujas histórias retratam a homofobia e a busca desse segmento por igualdade de direitos e aceitação. Esta pesquisa analisa os efeitos que a exibição dessas trajetórias têm na formação de opinião a respeito do tema por parte de telespectadores do Distrito Federal. Foram aplicados 260 questionários junto a integrantes da audiência. São bases teóricas principais desta pesquisa os Estudos Culturais e a perspectiva das multimediações, de Guillermo Orozco Gómez, a qual coloca como necessário ver o receptor pelo prisma dos grupos sociais aos quais ele pertence. A conclusão é que as personagens homossexuais mostradas pelas telenovelas influíram de forma significativa na maior aceitação pelos telespectadores de pessoas não-heterossexuais e de direitos por elas reivindicados.



sábado, 15 de março de 2014

Para além das representações: uma análise das estratégias de produção e distribuição de filmes com temática LGBT no Brasil

André Ricardo Araujo Virgens
Clarissa Bittencourt de Pinho e Braga
Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA
XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012


Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir a produção de filmes nacionais que abordam o universo da homossexualidade do ponto de vista de suas estratégias de produção e distribuição. Assim, partindo de um breve histórico das produções cinematográficas que abordam esse universo, e com foco especial no chamado período da “retomada”, realizaremos uma analise comparativa de diferentes estratégias, posicionamentos e retorno de público a partir do estudo de caso de três filmes: Elvis e Madonna (2011, de Marcelo Laffitte); Rainhas (2008, de Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno); e Cazuza (2004, de Sandra Werneck e Walter Carvalho).



quinta-feira, 6 de março de 2014

O quebra-cabeça evolutivo da homossexualidade

William Kremer
23 de fevereiro, 2014

Na música Same Love, que se tornou um hino não-oficial de apoio ao casamento gay nos Estados Unidos, a dupla Macklemore e Ryan Lewis, vencedores do prêmio Grammy de Melhor Artista Revelação na última edição do prêmio musical, ironiza quem diz acreditar que a homossexualidade é fruto de uma "escolha".

A opinião científica parece estar do lado deles. Desde o início da década de 90, pesquisadores vêm mostrando que a homossexualidade é mais comum em irmãos e parentes da mesma linhagem materna.

Segundo esses cientistas, isso se deve a um fator genético. Também relevantes – apesar de ainda não amplamente comprovadas – são as pesquisas que identificam diferenças fisiológicas nos cérebros de heterossexuais e de gays, assim como os estudos que afirmam que o comportamento homossexual também está presente em animais.

Mas, como gays e lésbicas têm normalmente menos filhos biológicos do que os heterossexuais, uma questão continua intrigando pesquisadores de todo o mundo.

"Se a homossexualidade masculina, por exemplo, é um traço genético, como teria perdurado ao longo do tempo se os indíviduos que carregam 'esses genes' não se reproduzem?", indaga o pesquisador Paul Vasey, da Universidade de Lethbridge, no Canadá.

"Trata-se de um paradoxo do ponto de vista evolucionário."

Muitas das teorias envolvem pesquisas realizadas sobre a homossexualidade masculina. A evolução do lesbianismo permanece muito pouco estudada. Ela pode ser semelhante ou muito diferente.

Os cientistas ainda não sabem a resposta para esse quebra-cabeça darwinista, mas há muitas teorias em jogo e é possível que diferentes mecanismos atuem em cada pessoa.

Conheça algumas das principais teorias a respeito do assunto:

Genes que definem a homossexualidade também ajudam na reprodução

O alelo – um grupo de genes - que às vezes influencia a orientação homossexual também pode trazer vantagens reprodutivas. Isso compensaria a falta de reprodução da população gay e asseguraria a continuação dessa característica, uma vez que não-homossexuais também poderiam herdar esses genes e transmiti-los a seus descendentes.

Há duas ou mais maneiras pelas quais esta transmissão dos genes pode acontecer. Uma possibilidade é que este grupo de genes crie um traço psicológico que torne os homens heterossexuais mais atraentes para mulheres, ou as mulheres heterossexuais mais atraentes para os homens.

"Sabemos que as mulheres tendem a gostar de traços e comportamentos mais femininos nos homens e isso pode estar associado com coisas como o talento para ser pai e a empatia", diz Qazi Rahman, coautor do livro Born Gay; The Psychobiology of Sex Orientation ("Nascido Gay, A Psicobiologia da Orientação Sexual", em tradução livre).

De acordo com essa teoria, uma quantidade pequena desses alelos aumentaria as chances de sucesso reprodutivo do portador desses genes, porque o torna atraente para o sexo oposto.

De vez em quando, um membro da família recebe uma "porção" maior destes genes, que se reflete na sua orientação sexual. Mas porque este alelo traz vantagens reprodutivas, ele permanece no DNA humano através das gerações.

Gays seriam 'ajudantes no ninho'

Alguns pesquisadores acreditam que, para entender a evolução dos homossexuais, é preciso observar qual é o papel que os gays têm nas sociedades humanas.

A pesquisa de Paul Vasey em Samoa, na Polinésia, baseou-se na teoria da seleção de parentesco ou hipótese do "ajudante no ninho".

A ideia é que os homossexuais compensariam a falta de filhos ao promover a aptidão reprodutiva de irmãos e irmãs, contribuindo financeiramente ou cuidando dos sobrinhos. Partes do código genético de um gay são compartilhadas com sobrinhas e sobrinhos e, segundo a teoria, os genes que determinam a orientação sexual também podem ser transmitidos.

Vasey ainda não mediu o quanto que ser homossexual aumenta a taxa de reprodução dos irmãos, mas comprovou que em Samoa, homens gays passam mais tempo fazendo "atividades de tio" do que homens heterossexuais.

Atividade homossexual em animais

  • Cerca de 400 espécies têm atividade homossexual, incluindo os macacos bonobos (machos e fêmeas), que são parentes próximos dos humanos.
  • Em alguns casos há razões reprodutivas. Os peixes machos da família Goodeidae, por exemplo, imitam fêmeas para enganar os rivais.
  • A preferência de longo prazo por parceiros do mesmo sexo é rara entre os animais, mas 6% dos carneiros-selvagens machos (na foto) são, de fato, "gays".
  • Pesquisas sobre o comportamento animal ajudaram a anular as leis contra a sodomia no Texas - mesmo assim, os cientistas ressaltam que a homossexualidade humana pode ser muito diferente da animal.

Fonte: Artigo "Same-sex sexual behavior and evolution", de Nathan Bailey e Marlene Zuk, napublicação Trends in Ecology and Evolution.

"Ninguém ficou mais surpreso que eu", disse Vasey sobre suas descobertas. Seu laboratório já havia comprovado que homens gays no Japão não eram mais atenciosos ou generosos com seus sobrinhos e sobrinhas do que homens e mulheres heterossexuais sem filhos. O mesmo resultado foi encontrado na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no Canadá.

Vasey acredita que o resultado em Samoa foi diferente porque os homens que ele estudou lá eram diferentes. Ele pesquisou os fa'afafine, que se identificam como um terceiro gênero, vestindo-se como mulheres e tendo relações sexuais com homens que se consideram heterossexuais. Os fa'afafine são parte de um grupo transgênero e não gostam de ser chamados de gays nem de homossexuais.

O pesquisador especulam que parte da razão pela qual os fa'afafine são mais atenciosos com seus sobrinhos e sobrinhas é sua aceitação na cultura de Samoa, em comparação com os gays no Ocidente e no Japão. A lógica é a de que gays que são rejeitados tendem a ajudar menos os familiares a criarem seus filhos.

Mas ele também acredita que há alguma coisa no estilo de vida dos fa'afafine que os torna mais propensos a serem carinhosos com seus sobrinhos e sobrinhas. E especula que encontrará resultados semelhantes em outros grupos de "terceiro gênero" ao redor do mundo.

Se isso for comprovado, a teoria do "ajudante no ninho" pode explicar em parte como um traço genético da atração pelo mesmo sexo não foi excluído dos humanos ao longo da evolução.

Mesmo com uma menor capacidade de se reproduzir, homossexuais que se identificam como um "terceiro gênero" ajudariam a aumentar a capacidade reprodutiva de seus parentes heterossexuais, ao assumirem cuidados com as crianças.

Homossexuais também têm filhos

Nos Estados Unidos, cerca de 37% da população lésbica, gay, bissexual e transsexual Cliquetêm filhos, 60% dos quais são biológicos. De acordo com o Instituto Williams, casais gays com filhos têm, em média, dois.

Estes números podem não ser altos o suficiente para sustentar que traços genéticos específicos ao grupo sejam passados adiante, mas o biólogo evolucionista Jeremy Yoder lembra que durante boa parte da história moderna, pessoas gays não viveram vidas abertamente homossexuais.

Obrigadas pela sociedade a casarem e terem filhos, suas taxas reprodutivas devem ter sido mais altas do que são hoje.

Medir a quantidade de gays que têm filhos também depende de como você define "ser gay". Muitos dos homens heterossexuais que têm relações sexuais com os fa'afafine em Samoa casam-se com mulheres e têm filhos.

"A categoria da atração pelo mesmo sexo se torna muito difusa quando temos uma perspectiva multicultural", diz Joan Roughgarden, um biólogo evolucionista na Universidade do Havaí.

No Ocidente há indícios de que muitas pessoas passam por uma fase de atividade homossexual, mesmo que sejam principalmente heterossexuais.
Isso tornaria mais complicado afirmar que somente pais que levam uma vida homossexual poderiam passar "genes gays" adiante.

Nos anos 1940, o pesquisador de sexo americano Alfred Kinsey descobriu que apenas 4% dos homens brancos eram exclusivamente gays após a adolescência, mas 10% dos homens tiveram um período de atividade gay de 3 anos e 37% tiveram relações com alguém do mesmo sexo em algum momento de suas vidas.

Uma pesquisa nacional de atitudes em relação ao sexo feita na Grã-Bretanha em 2013 apresentou número mais baixos. Cerca de 16% das mulheres disseram ter tido alguma experiência sexual com outra mulher (8% tiveram contato genital) e 7% dos homens disseram ter tido alguma experiência sexual com um homem (5% tiveram contato genital).

Mas a maior parte dos cientistas pesquisando a evolução gay estão mais interessados na existência de um padrão de desejo interno contínuo. Identificar-se como gay ou heterossexual não é tão importante, nem ter relações homossexuais com maior ou menor frequência.

"A identidade sexual e os comportamentos sexuais não são boas medidas da orientação sexual. Os sentimentos sexuais, sim", diz Paul Vasey.

Nem tudo está no DNA

Qazi Rahmandiz afirma que grupos de genes que determinam a atração pelo mesmo sexo só explicam parte da variedade da sexualidade humana.

Outros fatores biológicos que variam naturalmente também interferem. Um em cada sete homens, por exemplo, devem sua sexualidade ao "Efeito Big Brother": observou-se que garotos com irmãos mais velhos têm maiores chances de serem gays - cada irmão mais velho aumentaria as chances de homossexualidade em cerca de um terço.

Ainda não se sabe o porquê, mas uma teoria é a de que a cada gravidez de um bebê do sexo masculino, o corpo da mulher desenvolve uma reação imunológica a proteínas que tem um papel no desenvolvimento do cérebro masculino.

Como isto só interfere de alguma forma no bebê depois que muitos irmãos já nasceram - a maioria dos quais serão heterossexuais e terão filhos - esta peculiaridade pré-natal não foi descartada pela evolução.

A exposição a níveis incomuns de hormônios antes do nascimento também pode afetar a sexualidade. Por exemplo, fetos de fêmeas expostos a altos níveis de testosterona antes do nascimento demonstram altos índices de lesbianismo depois.

"A identidade sexual e os comportamentos sexuais não são boas medidas da orientação sexual. Os sentimentos sexuais, sim."
Paul Vasey

Estudos mostram que mulheres lésbicas e homens "machões" tem uma diferença no comprimento dos dedos indicador e anular - que demonstra a exposição pré-natal à testosterona. Em lésbicas "femininas" esta diferença é muito menor.

Os gêmeos idênticos também provocam questionamentos. Pesquisas descobriram que se um gêmeo é gay, há cerca de 20% de chance de que seu gêmeo idêntico tenha a mesma orientação sexual. Apesar de a probabilidade ser maior do que o normal, ainda é pequena considerando que os dois tem o mesmo código genético.

William Rice, da Universidade da Califórnia Santa Barbara, diz que pode ser possível explicar isso olhando não para nosso código genético, mas para o modo como ele é processado. Rice e seus colegas se referem ao campo emergente da epigenética, que estuda como partes do nosso DNA são "ligadas" ou "desligadas".

Para Qazi Rahman, é a mídia que simplifica excessivamente as teorias genéticas da sexualidade, com suas reportagens sobre a descoberta do "gene gay". Ele acredita que a sexualidade envolve dezenas ou centenas de grupos de genes que provavelmente levaremos décadas até descobrir.


Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/02/140219_quebra_cabeca_evolucao_homossexualidade_lgb.shtml. Acesso em 26 fev 2014.