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sexta-feira, 28 de março de 2014

Médicos e transexuais

Concília Ortona

Ser transexual é uma escolha? Crianças percebem seu transtorno de identidade de gênero? É ético possibilitar o início da transição para a mudança de sexo a adolescentes? Questões sobre estes temas delicados – e pouco abordados – voltaram à tona no Brasil, em julho, quando o Ministério da Saúde (MS) lançou duas portarias em 24 horas: a inicial, entre outros pontos, antecipava, de 18 para 16 anos, o emprego de hormônios a transexuais, e de 21 para 18, a operação, no âmbito do SUS. A norma seguinte derrubou a anterior, até a “definição de protocolos clínicos e de atendimento”.

Enquanto as discussões tomam forma no País, a Ser Médico entrevistou duas autoridades médicas norte-americanas no assunto, que, além de explicações técnicas, transmitem pontos de vista de protagonistas dessa história: são transexuais. A primeira parte da entrevista focaliza a ginecologista Marci L. Bowers, 55 anos, que foi Mark até os 40 – tendo, inclusive, se casado e sido pai de três filhos. Figurando na lista dos Melhores Médicos Norte-Americanos, em 2002 e 2003, atualmente é especialista em mudança de sexo. Na segunda, quem fala é o médico Ben Barres, 58 anos, PhD e presidente do departamento de Neurobiologia da Stanford University School of Medicine. Com 42 anos ainda era Barbara e, apesar de hoje ser oficialmente homem, indigna-se contra pares que sugerem “aptidão intrínseca” do sexo masculino à Ciência. Em ambos os casos, pode-se observar o equívoco de restringirem-se as opções profissionais de transgêneros a determinadas carreiras. Confira, a seguir, as duas entrevistas.

Ser Médico – No Brasil, tentou-se antecipar o início do processo de mudança de sexo, iniciativa derrubada provavelmente por pressões religiosas e/ou políticas. Um adolescente com 16 anos consegue saber, com certeza, se é transexual?
Marci L. Bowers – É vergonhoso e perigoso política e religião desempenharem quaisquer papéis na tomada de decisão médica. De qualquer modo, sou sensível a tal questão. Nos EUA, como em outros locais do mundo, vemos uma população cada vez mais jovem solicitando hormônios e cirurgia. Nem sempre são situações fáceis de se lidar, pois nosso juramento nos impede de tomarmos medidas, quando riscos excedem os benefícios. Em geral, em transexuais, sentimentos confusos quanto ao gênero começam bem cedo, antes da puberdade, sugerindo a existência de uma base biológica de gênero. Só que é preciso cuidado. Apenas um terço das crianças com comportamento não compatível com o sexo biológico vai se tornar um adulto transexual. Por outro lado, o agravamento do desconforto, pela puberdade, é altamente preditivo de identidade de gênero contrária. Pela minha experiência, um bom momento – o início da transição – é a partir dos 17 anos, quando parece haver a combinação perfeita de idade, maturidade e apoio dos pais, necessários para resultados cirúrgicos e sociais bem-sucedidos.

SM – Quando a senhora percebeu que era mulher, depois de viver por tantos anos como homem? Houve horas em que pensou: “posso manter-me como marido e pai, e continuar feliz”?
MB – Sempre pensei em mim como do gênero feminino, mas não conseguia colocar isso em palavras. Naquele tempo, nos anos 60, nem sabíamos a maneira correta de chamar esse tipo de comportamento. Sentia-me esquisito, constrangido e sozinho em meus pensamentos. Bem que tentei dar um jeito de ser machão na adolescência, mas a “persona masculina” simplesmente não se encaixava bem em mim. De forma inconsciente, sabia da disforia de gênero o tempo todo. Muitas das minhas memórias mais antigas e pungentes vinculam-se ao travestismo. Por exemplo, lembro-me de minha mãe chorando, em 1963, porque o presidente Kennedy havia sido assassinado, e ficar mais assustada ainda ao se deparar comigo, com cinco anos, com o vestido de chiffon amarelo da minha irmã. Gostaria de ter feito a transição ao sair do ensino médio, aos 19 anos, mas faltavam coragem e dinheiro. O casamento e a chegada das crianças foram importantes em minha vida adulta, mas perpetuaram meu sacrifício por mais 21 anos, quando finalmente realizei meu destino como mulher. A verdade é que chegou a um ponto em que viver como homem parecia cada vez mais perigoso para a minha saúde mental.

SM – Talvez por preconceito, no Brasil os transexuais parecem ter oportunidades profissionais restritas. Vemos dançarinos, artistas, cabeleireiros, maquiadores, mas raramente médicos ou professores universitários. Acontece o mesmo nos EUA?
MB – Nos EUA, houve um relaxamento dos papéis estipulados por gênero, masculino e feminino, refletindo os avanços sociais conseguidos pela população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). A ideia de que alguém possa ser transexual, e trabalhar como advogado competente, médico ou piloto de avião, reflete essa mudança de atitude. Há 20 anos isso seria inimaginável. Quem se classificasse como transgênero seria visto como mentalmente desequilibrado, na melhor das hipóteses, ou psicologicamente perturbado, na pior.

SM – A senhora já foi considerada por seus pares do Conselho de Pesquisa Americano como um dos Melhores Médicos da América. A que atribui tal reconhecimento?
MB – Durante os 20 anos em que atuei como obstetra, era visto como um profissional compassivo e carinhoso. Essa reputação permaneceu em meu trabalho atual, como cirurgiã especializada em transgenitalização. Depois de ajudar cerca de 2.500 bebês a nascer, fiz meu último parto em 2007. Foi uma época maravilhosa. Sinto falta, principalmente, da intimidade do momento e da alegria de trazer o potencial humano ao mundo. De certa forma, no entanto, mudar a genitália de alguém permite também uma espécie de renascimento para a verdade. Até agora, realizei mais de 1.100 operações do sexo masculino para feminino e cerca de 250, do feminino para o masculino.

SM – Falando sobre este assunto, já enfrentou algum conflito de interesse, por ser transexual e possibilitar mudança de sexo a outras pessoas? Por exemplo:“será que minha experiência influenciou na decisão deste paciente”?
MB – Engraçado... Sabe que ninguém nunca havia me feito essa pergunta antes? Sinceramente não enfrento nenhum conflito, pois estou no fim da engrenagem. Antes de chegar à cirurgia, os pacientes já vivenciaram todas as dúvidas e indefinições, abriram o jogo com familiares e amigos, com psicólogos e psiquiatras, além de terem usado hormônios do sexo oposto, durante, pelo menos, um ano. De qualquer maneira, faço o papel de “advogado do diabo”, falando a respeito de prós e contras, além de voltar no tempo a respeito dos fatos que culminaram em sua decisão. Se ainda assim insistirem, estão prontos. Ninguém nunca me acusou de ter interferido indevidamente, e quase nunca ouço algum paciente reclamando de que cometeu um erro. Na verdade, a pergunta mais fascinante talvez seja “por que há tão pouco arrependimento?”. O que mostra o quanto o gênero é algo pessoal e, se estiver errado, impossível de se ignorar.

SM – O que diria a colegas que alegam “objeção de consciência” à cirurgia de mudança de sexo, comparando-a à “mutilação”?
MB – Machos e fêmeas são, biologicamente, bem mais parecidos do que diferentes. Todos surgimos como embriões do sexo feminino, e os sinais biológicos e hormônios que alteram nossos caminhos na região genital são bem discretos. Na realidade, o que nos separa, na infância, são os limites trazidos pelas expectativas sociais em relação a meninos e meninas. Além disso, há um grande número de bebês nascidos com condição intersexual, com genitália nem essencialmente masculina nem feminina. Como a sociedade mantém-se desconfortável com algo que não seja estritamente masculino ou feminino, logo após o nascimento chamamos rapidamente especialistas, como geneticistas e cirurgiões pediátricos, para suavizar essas confusas situa¬ções. Assim, a partir de uma lógica biológica, pode-se ver por que faz tanto sentido oferecermos mudança de sexo, quando essa se traduz em melhoria da qualidade de vida. Transexuais são mais felizes após a transição, isso é fato. Comparar essa lógica à mutilação ou a fetiches referentes à amputação corresponde a uma tática para assustar os desavisados. É como alertar os pacientes de que a remoção do apêndice pode levar ao Mal de de Alzheimer.

SM – Já se sentiu discriminada por colegas ou pacientes?
MB – Se ocorrer alguma discriminação, é idêntica àquela contra qualquer outra de nós, mulheres. Mas, pensando bem, médicas lidam com dificuldades específicas. Certa vez, uma paciente solicitou um “cirurgião de verdade”, enquanto eu lhe explicava detalhes de sua histerectomia. Da outra, me peguei usando mais calças e jaquetas, a fim de ganhar mais credibilidade profissional. Recentemente, fui apresentada por um colega como: “esta é a nossa médica transexual”. Já pensou como seria se introduzisse alguém como: “este é o meu advogado judeu”. Ou: “conheça o meu contador mexicano”. Ou: “você vai adorar a comida preparada por nosso chef bissexual”. Sim, enfrento mais tensões e desafios do que outros, em muitos aspectos. Mas, como profissional adequadamente remunerada, tive vantagens. Arcar com minha cirurgia foi uma delas. Isso seria bem mais difícil para um transexual que vive nas ruas ou que trabalha em uma oficina mecânica.

SM – Por que decidiu ajudar, gratuitamente, mulheres que passaram pela terrível experiência de amputação de clitóris?
MB – Em 2007, Nadine Gary, diretora da organização internacional Clitoraid, perguntou-me se queria aprender uma técnica desenvolvida em Paris, por Pierre Foldes, para a reconstrução de clitóris mutilados por motivos culturais. Aceitei sem hesitar. É um pequeno sacrifício em repúdio a esse crime contra a humanidade. Só anos mais tarde soube que mais de 30 ginecologistas haviam declinado. Existem céticos que duvidam da eficácia da operação, mas ela funciona, pois, na maioria das vezes, boa parte do órgão permanece sob a pele. Ao apelar à técnica, em parte, as mulheres pensam na função sexual. Só que, principalmente, querem recuperar a identidade perdida. Geralmente se sentem violadas, envergonhadas e diminuídas.

SM – Como é sua relação com seus filhos? Hoje, a senhora diz preferir relacionamentos amorosos com mulheres, em vez de homens. Isso não leva a dúvidas de que sua essência continua sendo masculina?
MB – Meus filhos são fantásticos. A mais velha terminou a faculdade e a outra se prepara para a escola de Medicina. Meu filho tem 17 anos, frequenta o ensino médio e mora comigo. Felizmente, minha ex-esposa manteve-se como um grande apoio e amiga. Depois da transição, eu saía exclusivamente com homens, e não tinha dificuldade em atraí-los. No entanto, com o tempo, descobri que faltava uma certa conexão emocional, pelo menos, em relação àqueles que conheci. Parecia ainda que se sentiam meio intimidados com a minha posição, como médica conhecida. Seria melhor classificar-me como bissexual. A tal conexão emocional acontece atualmente com a mulher com quem vivo há cinco anos, que também é médica.

Barres: transexual feminista

Ser Médico – O senhor é um cientista respeitado, sendo, inclusive, presidente do Departamento de Neurobiologia, em Stanford. Por ser transexual, enfrentou mais desafios, comparado a colegas?
Ben Barres – Minha família, amigos e alunos têm me dado um apoio incrível, desde que anunciei a mudança de sexo, 16 anos atrás. Confesso que, na época, fiquei preocupado com o fato de que minha carreira pudesse acabar, que os colegas não compreendessem, e os estudantes não viessem mais ao meu laboratório. Felizmente, meus medos foram exagerados. Não estou ciente de qualquer financiamento perdido, artigos não publicados, colaborações em trabalhos não aceitas, ou convites para congressos cancelados pelo fato de ser transexual. Não significa que não tenha havido alguma discriminação, só que, pelo visto, não foi relevante. Minha situação pode ter sido diferente da de outros – por viver na Baía de São Francisco, região receptiva dos EUA, e atuar em uma carreira em que é amplamente aceita a ideia de que as diferenças humanas são fundamentais para impulsionar inovação e sucesso na academia. É preciso considerar também que a transição me tornou um homem, em uma sociedade menos propensa a aceitar mulheres em certas áreas. A história de cientistas mulheres, transgêneros do masculino para o feminino ou de gays, pode ser menos positiva.

SM – É mais difícil ser um cientista do sexo feminino do que do masculino? É mais difícil ser mulher do que homem?
BB – A cientista transexual Joan Roughgarden disse bem: em nossa sociedade, se você é mulher, é considerada incompetente até provar o contrário. Se é homem, é competente, até prova em contrário. Portanto, ao longo de suas vidas, homens parecem contar com uma vantagem constante, enquanto as mulheres, com uma desvantagem, que nem percebem, pelo menos enquanto são jovens. Essa diferença simples, em forma de expectativa social, pode ser suficiente para explicar diferenças de realizações entre homens e mulheres.

SM – Por que criticou colegas que diziam que “a razão pela qual há menos mulheres do que homens em Ciência e em cátedras de Engenharia e Matemática é que mulheres não contam com níveis elevados de ‘aptidão intrínseca’ exigidos para essas carreiras”?
BB – Larry Summers (economista norte-americano, secretário do Tesouro no governo de Bill Clinton) e muitos homens antes dele usaram o mote “quanto mais gênios, mais idiotas”, para argumentar que os cérebros masculinos são mais inconstantes – prontos para ir além da normalidade e linearidade –, de modo que haverá um maior número de homens talentosos do que de mulheres igualmente capazes. Não há estudos que confirmem tal raciocínio e, de fato, há uma quantidade cada vez maior de informações contra ele. Simplesmente não conseguimos prever o motivo de algumas pessoas se tornarem grandes artistas, cientistas ou inventores. Tentou-se avaliar, por meio de testes de QI e de matemática, mas acontece que vários ganhadores do Nobel não possuem QI de gênio, e muitos gênios não alcançam grandes feitos.

SM – No decorrer de seus estudos, o senhor encontrou, ou procurou, alguma explicação na Neurobiologia do por que alguém nasce com o corpo contrário à sua essência?
BB – É uma pergunta fascinante. É evidente que existem circuitos neurais que controlam e moldam os comportamentos específicos de gênero. Por exemplo, há evidências de que a exposição a hormônios sexuais exógenos (de causas externas) ou a produtos químicos chamados “disruptores endócrinos”, que imitam os hormônios, é capaz de perturbar o desenvolvimento de circuitos cerebrais e de alterar comportamentos específicos de gênero. Estudos anteriores mostraram que as “filhas de DES” (meninas expostas, enquanto fetos, ao dietilestilbestrol, antineoplásico que inibe a secreção de determinados hormônios) são dez vezes mais propensas ao lesbianismo do que as demais. Além disso, há alguma evidência de que “filhos de DES” são mais propensos ao transexualismo. Quando eu era um feto, fui exposto a uma droga à base de testosterona, e suspeito fortemente de que esta tenha masculinizado meu cérebro, como ocorre com fetos de macacas. No entanto, para a maioria dos transexuais, não há histórico de tal exposição, sendo ainda um mistério do por que eles são transgêneros. É muito provável que as variações genéticas sejam as responsáveis. Enquanto muitos consideram que ser LGBT corresponde a uma escolha, muitos de nós afirmamos estar cientes de sua diferença desde crianças pequenas. Ninguém optaria livremente por enfrentar a angústia emocional e o prejuízo social que surgem de tal “escolha”, a menos que conseguisse viver de um modo coerente à sua identidade sexual inata.


Disponível em http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=694. Acesso em 23 mar 2014.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Sérvia se torna polo para cirurgia de mudança de sexo

Dan Bilefsky
27/07/2012

Vinte anos atrás, jornais sérvios disseram que a transexualidade de ser um ato contra Deus. Hoje, pessoas de todo o mundo vão para a Sérvia para passar por cirurgias de mudança de sexo, que agora são subsidiadas para os cidadãos pelo plano de saúde nacional.

"É surpreendente que um país conservador e patriarcal esteja se tornando um polo de operações de mudança de sexo, mas as atitudes sociais estão mudando lentamente", disse Cristian, um ativista transgênero de Belgrado que, apesar dos avanços na sociedade, optou por não informar seu sobrenome.

Cerca de cem estrangeiros e sérvios passaram por cirurgias de mudança de sexo no ano passado no país e os números estão crescendo, de acordo com o Centro de Belgrado para Cirurgia Reconstrutiva Genital. Os candidatos são de países como França, Rússia e Irã, e de lugares tão distantes como Estados Unidos, África do Sul, Cingapura e Austrália.

A Sérvia está se tornando um centro de cirurgia transexual, dizem os especialistas, em parte porque a cirurgia é cara, complicada e controversa e evitada em muitos outros países da região, incluindo Áustria, Hungria, Romênia, Bulgária e Grécia e outros países da ex-Iugoslávia, de acordo com doutor Miroslav Djordjevic, um professor de urologia que dirige o centro em Belgrado.

Mesmo em países medicinalmente avançados da Europa Ocidental, como a França, alguns cirurgiões se queixam de que não podem obter formação adequada ou que são repreendidos por seus colegas por considerarem a realização de cirurgias de mudança de sexo, o que leva muitas pessoas à Bélgica para realizar o tratamento. No Reino Unido, onde os custos do procedimento chegam a US$ 15 mil e são cobertos pelo Serviço Nacional de Saúde, 143 operações foram realizadas em 2009, segundo a imprensa local.

O doutor Marci Bowers (um ginecologista transexual de San Mateo, Califórnia, que realizou 1,1 mil operações de mudança de sexo nos últimos dez anos) observou que nos Estados Unidos apenas cerca de cinco cirurgiões realizam a operação regularmente. Ela disse que o conservadorismo social e a falta de habilidades cirúrgicas em muitos países, combinados com os temores dos cirurgiões de complicações potencialmente catastróficas, estão promovendo o crescimento do turismo medicinal para a mudança de sexo.

Pacientes estrangeiros dizem que são atraídos para a Sérvia pelo preço: cerca de US$ 10 mil - nos Estados Unidos a operação mais cara, de transformação do sexo masculino para o feminino, não sai por menos de US$ 50 mil.

Os sociólogos dizem que a atitude mais tolerante em relação aos transexuais na Sérvia assinala os primeiros sinais de mudança em um país onde as correntes conservadoras ainda são profundas.

"Somos filhos de dois pais: um é a Igreja Ortodoxa, o outro é o comunismo", disse o doutor Dusan Stanojevic, um pioneiro da cirurgia de mudança de sexo no país.

Ele disse que a transexualidade era tão tabu na antiga Iugoslávia que nem sequer era mencionada nos livros de medicina. Mas o cirurgião Sava Perovic começou a realizar as operações em 1989, após ser abordado por um homem que sofria de transtorno de identidade de gênero.

Na Sérvia, a cirurgia é realizada em um procedimento único de seis horas, poupando o paciente do trauma de várias operações. Complicações podem incluir o arrependimento pós-operatório, problemas de funcionalidade ou infecção.

Para se qualificar para a cirurgia o paciente precisa de duas cartas de recomendação de especialistas psiquiátricos que comprovem que ele ou ela está sofrendo de transtorno de identidade de gênero - quando um homem ou uma mulher se identifica melhor com o sexo oposto. Pelo menos um ano de aconselhamento e um ano de terapia hormonal são necessários antes da cirurgia.

Daniel, um advogado de 25 anos de São Peterburgo, na Rússia, chegou a Belgrado em maio para a cirurgia depois de não conseguir encontrar um médico adequado em seu país. A cirurgia e o tratamento foram tão bem sucedidos que Daniel, que levanta pesos com regularidade e gosta de ostentar barba por fazer, revela poucos sinais de que já foi do sexo feminino.

"Precisei sair do armário duas vezes, primeiro como lésbica, depois como transexual. Isso facilitou o processo", disse ele, um dia depois de passar pela cirurgia. "A Rússia é extremamente homofóbica e fazer isso na Sérvia foi mais fácil para mim."


Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/2012-07-27/servia-se-torna-polo-para-cirurgia-de-mudanca-de-sexo.html>. Acesso em 07 set 2012.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"Eu queria ser menina desde o dia em que nasci"

Claudia Jordão
N° Edição:  2096 |  08.Jan - 21:00


Vinte e dois de novembro de 1963 entrou para a história como o dia em que o então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, foi assassinado. Mas, para a ginecologista e obstetra americana Marci Bowers, a data carrega um significado bem diferente. Marci ainda se chamava Mark, era um menino de 5 anos que morava em Oak Park, Illinois, com os pais e duas irmãs. “Minha mãe entrou em meu quarto chorando e gritando: “O presidente levou um tiro!”, lembra Marci. “E, então, no segundo seguinte, parou de chorar, respirou fundo e me perguntou: ‘O que você está fazendo com o vestido da sua ir mã?’” Foi nesse dia que o pequeno Mark soube que vivia a contradição de ser menina num corpo de menino. O sentimento o perseguiu por mais 32 anos. Mark se tornou especialista em omitir o que pensava e sentia, formou-se em medicina, se casou e teve três filhos – tudo isso para agra dar aos pais. Em 1995, aos 37 anos, finalmente se submeteu a uma cirurgia de troca de sexo.

Hoje, aos 51 anos, é médica e referência no mesmo procedimento que mudou sua vida. Radicada em Trinidad, no Colorado, “a capital da troca de sexo”, realiza essas cirurgias desde 2003. Já fez 800 reversões em homens e mulheres. Seus pacientes chegam a esperar um ano na fila. No ano passado, levou a técnica de reconstrução de clitóris para os EUA. Ela aprendeu o procedimento com o urologista francês Pierre Foldes, criador do procedimento, e realizou, sem cobrar, 12 cirurgias em mulheres vítimas de mutilação sexual.

ISTOÉ - Como era a vida da sra. antes da cirurgia?
MARCI BOWERS - Minha cirurgia de troca de sexo ocorreu no meio dos anos 90. Antes disso, minha vida era bem simples. Morava no centro de Seattle (Estados Unidos), era pai de três filhos e jogava golfe. Ou seja, uma rotina bem entediante. Eu carregava uma grande tristeza dentro de mim, pois queria ser menina desde o dia em que nasci. Eu era muito mais raivosa, conflituosa e imatura. E menos cuidadosa e interessada pelas coisas. Resumindo, mais infeliz. Depois da transição, a vida se tornou muito mais significativa e interessante. Eu tive a oportunidade de experimentar tudo de bom e ruim que a vida me reservava, mas como mulher. E a experiência pôde me mostrar muito claramente como a sociedade trata homens e mulheres de maneira diferente.

ISTOÉ - E a vida sexual nessa época?
MARCI BOWERS - Eu e minha ex-mulher fizemos sexo sem proteção três vezes e tivemos três filhos. Fazíamos tanto sexo quanto qualquer outro casal. Mas acredito que eu era um amante melhor do que a maioria dos homens. Eu só conseguia atingir o clímax na hora em que ela estivesse pronta. E só tinha orgasmos porque me imaginava no lugar dela. Minha vida sexual foi ok até eu começar a tomar hormônios (passo anterior à cirurgia de troca de sexo). A partir daí, permanecemos casados, mas nos tratávamos como irmãs, sem sexo.

ISTOÉ - O que sustentou o casamento?
MARCI BOWERS - Eu tive e continuei tendo um bom casamento, construído graças ao respeito mútuo e à amizade, mais do que àquela paixão ardente. A paixão acaba, mas o respeito e a amizade podem suportar até mesmo isso, uma troca de sexo. Graças à nossa honestidade e ao respeito um pelo outro, nossos três filhos sobreviveram e até prosperaram, o que me enche de orgulho. Minhas filhas têm 19 e 17 anos e planejam ser médicas, assim como eu. Meu filho tem 13 anos, é extremamente interessado, inteligente e feliz. Quem sabe para onde ele irá?

ISTOÉ - Seus pais também a apoiaram?
MARCI BOWERS - Depois que minha mãe me surpreendeu de vestido, aos 5 anos, me tornei especialista em esconder sentimentos. Por isso, conforme eu ia crescendo, minha autoestima ia diminuindo. Me sentia no lugar errado, como se estivesse na posição oposta no time da escola. Quando eu disse à minha família que iria trocar de sexo, eles não me apoiaram, principalmente por medo e ignorância. Mas, aos poucos, se aproximaram. Até mesmo meu pai, que era muito orgulhoso e faleceu em agosto do ano passado, passou a me chamar exclusivamente de Marci e a elogiar minha trajetória como médica.

ISTOÉ - Então, a sra. só contou aos seus pais adulto?
MARCI BOWERS - Sim. Quando eu era adolescente, odiava o meu corpo. Minhas mãos e braços pareciam de menina e eu sempre me imaginava como tal. Mas eu me esforçava para parecer macho, tentando (sem sucesso) ganhar peso e massa muscular. Tentei jogar beisebol e futebol americano. Não jogava muito bem, mas fiz amigos, compartilhei interesses e fui bem na escola. No nono ano, no entanto, fui vítima de bulling logo que eu e a minha família nos mudamos de Estado. Minha vida era triste grande parte do tempo. Nos bastidores, eu invejava a puberdade das minhas irmãs e, sempre que possível, vestia as roupas delas e das suas amigas. Eu me odiava por isso, mas meus sentimentos cresciam exponencialmente.

ISTOÉ - Quando pensou em mudar de sexo pela primeira vez?
MARCI BOWERS - Li uma reportagem na revista “Time” sobre transexuais quando eu tinha 15 anos e soube que se tratava do meu caso. Aos 19 anos, deixei a faculdade e peguei carona para San Diego, na Califórnia, mas não tive condições de passar pela transição para me tornar mulher. Faltava dinheiro para tudo, a situação não se resolvia apenas comprando roupas femininas. Voltei para a faculdade disposto a realizar o sonho dos meus pais de me tornar médico e seguir ignorando meu lado feminino. Quase 20 anos depois, não pude mais negar os meus sentimentos.

ISTOÉ - Quais mudanças de tratamento a sra. percebeu quando finalmente conseguiu fazer a cirurgia?
MARCI BOWERS - Os homens, e muitas mulheres também, passaram a prestar mais atenção em mim e em meus atributos físicos e se tornaram mais gentis. Ir às compras se tornou mais divertido, escolher e vestir roupas também. Resumindo, era muito mais legal acordar de manhã e simplesmente ser eu. O lado negativo foi descobrir que as minhas opiniões não são respeitadas, que o que digo não tem valor e notar que os homens olham para os meus seios para não se entediar com o que eu digo. Também fui vítima de estupro. Desde então, tenho medo de ir a certos lugares e me preocupo com a minha segurança.

ISTOÉ - Então, a vida é mais complicada para as mulheres?
MARCI BOWERS - Muito mais! Especialmente quando se passa por uma transformação tão grande quanto a minha... e quando a idade chega. Minha aparência física desce ladeira abaixo. Com os homens, isso costuma ser diferente. Eu também acho muito difícil pedir para que consertem meu carro ou algo em minha casa. Tudo que digo é interpretado como algo idiota ou sem sentido. O preconceito é grande.

ISTOÉ - Provavelmente é agravado pela sua história.
MARCI BOWERS - Pois é, existem muitos preconceitos que permanecem. Como a minha vida é aberta como um livro alguns sabem do meu passado, insistem em não me tratar como mulher e se referem a mim como se eu fosse algum tipo de atração circense. Mas isso é raro e prefiro pensar que todos me veem 100% mulher.

ISTOÉ - Alguns anos depois da cirurgia, a sra. se separou. Casou-se novamente?
MARCI BOWERS - Sim, tive a sorte de encontrar a pessoa dos meus sonhos há sete meses. No início da transição, me relacionei exclusivamente com homens (incluindo um homem que nasceu mulher e fez a cirurgia), mas depois me envolvi com uma mulher muito interessante e passei os últimos seis anos com ela. Nosso relacionamento era tumultuado e não nos completava totalmente. Quando Allien, minha atual mulher, entrou em minha vida, meu relacionamento com Carol, minha ex, estava terminando. Nos comprometemos como parceiras de vida em 29 de outubro de 2009, em uma cerimônia em Las Vegas, esperamos poder casar em breve e, quem sabe, formar uma família.

ISTOÉ - A sra. era uma próspera ginecologista em Seattle. O que a fez virar uma especialista em mudança de sexo em Trinidad, no Colorado?
MARCI BOWERS - Quem fez a minha cirurgia foi o dr. Stanley Biber, um dos maiores especialistas do mundo em cirurgias de troca de sexo e a maior autoridade em Trinidad. A partir da transição, comecei a me interessar pelo assunto e a estudar muito. Me mudei para Trinidad e fui treinada pelo próprio dr. Biber. Depois que ele se aposentou, assumi seu trabalho. 

ISTOÉ - A sra. também é especialista em reconstrução de clitóris. O que a levou para esse caminho?
MARCI BOWERS - Vitimar a mulher em nome de algo enraizado culturalmente não faz o menor sentido para mim. Se isso fosse feito com homens ou garotos pequenos, o mundo ficaria revoltado e guerras seriam travadas. Me envolvi ao notar a grande demanda por esse tipo de cirurgia. E, também, porque a restauração da sensibilidade da mulher traz mais benefícios para a identidade do que para a vida sexual dela. É exatamente o que acontece com a cirurgia de troca de sexo. Tem a ver com o meu universo. 

ISTOÉ - Que sonho ainda não realizou?
MARCI BOWERS - Minha vida e o lar dos sonhos continuam em Seattle, aonde vou com frequência. Infelizmente, tentei algumas vezes voltar para lá, mas fui ignorada ou dispensada por médicos e administradores de hospitais, apesar do meu currículo.

ISTOÉ - A sra. é considerada uma estrela pelos transexuais de seu país. A admiração traz muita responsabilidade?
MARCI BOWERS - Eu acredito que sim, que isso me dê certa responsabilidade, no sentido de informar e educar o público sobre o que diz respeito aos transexuais. Assim como outros transexuais, me sinto uma mulher como outra qualquer. Não compartilho de todas as questões do universo feminino, mas isso não acontece com nenhuma mulher do mundo. E, olha, que meus seios são verdadeiros!

Disponível em <http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/37419_EU+QUERIA+SER+MENINA+DESDE+O+DIA+EM+QUE+NASCI+>. Acesso em 11 jan 2010.