Maysa Rodrigues
Dentre os quarenta e seis cromossomos do mapa genético
humano, apenas um diferencia biologicamente as mulheres dos homens. Entretanto, esse detalhe microscópico foi o suficiente para
dividir quase toda humanidade em dois grupos que se interpenetram sem nunca
perderem sua distinção básica. Muitos irão concordar que homens e mulheres são
diferentes do ponto de vista de seus corpos, de sua constituição psicológica e
do papel que ocupam na sociedade. Porém, na contramão da diferença, a
Antropologia teceu ao longo do século passado uma tradição que desmonta muitas
de nossas percepções mais fundamentais sobre os sexos.
Um cromossomo é formado de diversos genes, de forma que o
que separa homens de mulheres é a combinação de alguns bocados dessas partes
minúsculas. Ainda assim, para a Biologia, esses detalhes são responsáveis pela
constituição de corpos diferenciados, compostos de uma maioria de órgãos em
comum e de outros que seriam exclusivos a cada um dos sexos. Além da
caracterização genética e anatômica, há também uma diferenciação hormonal - as
mesmas substâncias, mas em quantidades diferentes nos homens e nas mulheres.
Se a Biologia propõe uma diferença física, a interpretação
do senso comum se apoia em uma diferença de comportamento e de papéis. Acima de
tudo, mulheres são possíveis mães - após serem fecundadas, nutrem, carregam e
dão à luz a um novo indivíduo, que deverá receber atenção por boa parte de sua
vida. A poesia e a literatura descrevem com adoração e reserva esses seres
fantásticos que transitam entre a sensualidade e a maternidade. Já os homens
também tiveram historicamente seu papel: fecundar e prover o sustento para a
mulher e para seus descendentes.
É verdade que as funções para os dois sexos mudaram ao longo
da história. Atualmente, principalmente na sociedade ocidental, boa parte das
mulheres integra o mercado de trabalho, e muitos dos homens realizam funções
domésticas e participam da criação dos filhos. Ainda assim, algumas
expectativas parecem manter-se fixas. Mulheres que abrem mão da maternidade
ainda são vistas com certo estranhamento. Da mesma forma, um homem sustentado
por sua companheira dificilmente não causará algum constrangimento.
Negando os papéis sociais
Em um primeiro momento, negar a ideia de que homens e
mulheres são essencialmente diferentes parece algo absurdo, justamente por essa
ideia ter extrema aceitação pela ciência e pelo senso comum. Entretanto, a
abordagem antropológica sugere uma nova interpretação a partir de trabalhos que
estudaram a fundo outras sociedades (especialmente as ditas sociedades
primitivas) e as variadas maneiras como essas culturas enxergaram a realidade.
Pierre Clastres, no capítulo "O Arco e o Cesto"
de seu célebre livro A Sociedade contra o Estado apresenta a interessante
cultura dos Guaiaquis. Nessa sociedade, assim como na nossa, as tarefas eram
divididas entre homens e mulheres. Os primeiros se responsabilizavam pela caça,
e as segundas, pela coleta e pelos constantes deslocamentos dos objetos pelo
território, uma vez que se tratava de uma sociedade nômade. Sem adentrar
profundamente em toda a rica análise que Clastres faz sobre as interdições
ligadas aos sexos e às famílias, os Guaiaquis são importante para nosso tema
porque trazem um exemplo de sociedade em que impera a poliandria, ou seja, a
união da mulher com mais de um marido. Conforme sugere o autor, as mulheres
Guaiaquis possuíam uma vantagem estrutural em relação aos homens: mesmo
casadas, podiam ter relacionamentos com moços solteiros e transformá-los em
maridos secundários se assim desejassem. Isso não significava que os maridos
principais ficavam felizes, porém, esses não tinham muita escolha: se
abandonassem suas esposas seriam condenados ao celibato, pois a tribo carecia
de mulheres disponíveis. Já as esposas logo encontrariam outro marido, pois
havia o dobro de homens em relação às mulheres.
Muito interessante na análise do autor é a ideia de que a
desproporção numérica entre os sexos poderia ter sido solucionada por outros
meios senão a poliandria. Seria possível que certos parentes considerados
proibidos para o casamento passassem a ser permitidos. Também seria imaginável
que houvesse um incentivo social ao celibato masculino ou que se admitisse o
assassinato de recém-nascidos homens. De qualquer maneira, o modelo matrimonial
verificado nessa tribo evidencia que dentre as infinitas possibilidades das
culturas que já passaram pelo globo terrestre, os Guaiaquis são uma mostra de
que o arranjo tecido pela nossa própria sociedade ao que diz respeito às
relações entre homens e mulheres está longe de ser o único possível.
De forma ainda mais sugestiva para essa ideia, Margaret
Mead*, em seu livro clássico Sexo e Temperamento, questiona as noções mais
comuns dos papéis sexuais ao apresentar três sociedades na Nova Guiné. A autora
toma como base o que considerou serem os padrões norteamericanos: o
comportamento feminino seria caracterizado por ser "dócil, maternal, cooperativo,
não agressivo e suscetível às necessidades e exigências alheias", e o
comportamento masculino seria relativamente oposto a essa caracterização.
Tomando esses padrões como referência, percebemos que cada
uma das três tribos apresenta comportamentos diferentes para homens e mulheres.
Dentre os Arapesh, por exemplo, tanto os homens como as mulheres exibiam uma
personalidade que seria considerada feminina na sociedade norte-americana. Já
os integrantes da tribo Mundugumor eram homens e mulheres "implacáveis,
agressivos e positivamente sexuados, com um mínimo de aspectos carinhosos e
maternais em sua personalidade", apresentando um tipo de comportamento
que, segundo Mead, só seria encontrado em um homem norte-americano
"indisciplinado e extremamente violento". Tchambulli é a terceira
tribo apresentada pela autora e se caracteriza por uma diferenciação entre os
sexos e uma clara inversão das expectativas de temperamento de nossa sociedade:
a mulher é "o parceiro dirigente, dominador e impessoal, e o homem a
pessoa menos responsável e emocionalmente dependente".
Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas.
Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos
que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra
a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de
temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que
"não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de
comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é
quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições
culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das
diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em
sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto
de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção
entre homens e mulheres.
Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas.
Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos
que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra
a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de
temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que
"não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de
comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é
quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições
culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das
diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em
sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto
de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção
entre homens e mulheres.
Nesse sentido, o argumento é interessante no que diz
respeito à diferença entre homens e mulheres: muitas das características
corporais que distinguem os sexos seriam constituídas a partir de um treino
social do corpo. A delicadeza feminina; a postura imponente dos homens; o jeito
discreto de sentar das mulheres recatadas; o largar-se confortavelmente no
sofá, tipicamente masculino; ou então a maneira sensual feminina de andar
movimentando os quadris são todos exemplos das chamadas técnicas do corpo
propostas pelo autor.
Pierre Clastres » Antropólogo francês, Pierre Clastres
nasceu em 1934 e faleceu, vítima de um acidente, em 1977. Castres integrou o
Laboratório de Antropologia Social do Collège de France e deixou como principal
legado o livro A sociedade contra o Estado, coleção de ensaios publicados em
1974 e considerado uma das obras-primas da antropologia.
O conceito de gênero
Mead, Mauss e Clastres, dentre outros autores, incutiram na
tradição antropológica a ideia de que os papéis destinados a homens e mulheres
não são explicados por uma diferença essencial inscrita na natureza de seus
corpos. Ainda que sejam biologicamente diferentes, as peculiaridades anatômicas
não explicariam as inúmeras outras diferenciações sociais entre os sexos: sejam
elas de hierarquia, de status, de poder, de posição na divisão do trabalho, de
personalidade, de comportamento e nem mesmo de seus trejeitos corporais.
Assim, se por um lado essa interpretação não nega
radicalmente a perspectiva da diferença anatômica, afirma que a Biologia nada
explica no que diz respeito à vida social. O argumento principal é que a
natureza dos corpos é interpretada pela cultura que, por sua vez, origina
inúmeros significados que transcendem as diferenças corporais.
A partir dessa rejeição à explicação biológica para as
diferenças sociais, a Antropologia criou o conceito de gênero. "O foco da
Teoria de Gênero é desconstruir a ideia de que existe uma diferença natural
entre homens e mulheres que explique o que acontece nas sociedades",
define Heloisa Buarque de Almeida, antropóloga especialista no tema e
professora da Universidade de São Paulo. "Por muito tempo se dizia que as
mulheres tinham menos poder ou que estavam restritas à esfera doméstica por causa
da reprodução e da maternidade, ou seja, devido a elementos associados ao
próprio corpo feminino. A Teoria de Gênero tenta mostrar que nem todas as
sociedades tratam as mulheres dessa maneira", completa.
A professora explica que a origem do conceito de gênero
estaria inicialmente associada às ciências médicas. "Gênero aparece na
medicina nos anos 1950, no caso dos chamados distúrbios de gênero, como
crianças que nasciam intersexuadas, ou seja, que tinham a genitália que hoje
chamamos de ambígua, ou então pessoas que nasciam de um sexo e se diziam seres
de outro sexo. Era usado quando a identidade do corpo da pessoa não combinava
com aquilo que ela sentia sobre si".
Na Antropologia, apesar da impossibilidade de se traçar uma
genealogia exata, os estudos atuais colocariam a antropóloga norte-americana
Gayle Rubin como uma das precursoras do uso do conceito. "O foco de Rubin
era mostrar que a relação entre os gêneros não deriva da natureza, pois é
histórica, decorre de um arranjo social e tem um momento de fundação. Apesar
disso, acaba aparecendo ideologicamente como naturalizada", explica
Heloisa.
Margaret Mead » Doutora pela Universidade de Columbia e uma
das grandes representantes do culturalismo, a antropóloga norteamericana
Margaret Mead (1901-1978) publicou livros como Adolescência, sexo e cultura em
Samoa (1928) e Sexo e temperamento em três sociedades primitivas (1935).
Debate com a biologia
Se parte dos estudos antropológicos afirmam que a explicação
para a diferença social entre homens e mulheres só pode ser compreendida a
partir do universo social que os permeia - sem, entretanto, negar que existam
diferenças biológicas e anatômicas reais entre os sexos - outra parte
radicaliza o argumento e nega a própria Biologia.
Nesse sentido, diversos estudos realizados nas Ilhas
Trobriands representaram uma primeira aproximação, quase intuitiva, às teorias
que desconstroem radicalmente a ciência. Considerado um dos principais
fundadores da Antropologia, Bronislaw Malinowski intrigou-se no começo do
século passado com a exótica interpretação que os trobriandeses faziam da
gravidez e do intercurso sexual. Para essa tribo, o homem através da relação
sexual que mantinha com a mulher não era responsável pela geração de crianças.
A implementação do bebê no corpo materno seria realizada a partir de espíritos
oriundos exclusivamente do lado da mãe, de forma que a função do pai era a de
"abrir o caminho", ficando excluído da ascendência sobre o novo ser.
Além disso, os homens trobriandeses eram considerados responsáveis pelo
crescimento e pela fisionomia das crianças, que seria formada a partir das
relações sexuais que mantivessem com as mulheres grávidas.
Essa interessante interpretação sobre a reprodução humana
abre caminho para pensarmos que a partir dos mesmos fatos (intercurso sexual,
gestação e nascimento) inúmeras explicações e relações entre causa e efeito
podem ser desenvolvidas pelas culturas. Assim, a compreensão do nascimento como
decorrente da gestação, e esta última como consequência do encontro entre os
gametas femininos e masculinos durante o intercurso sexual, não é uma
decorrência inevitável do pensamento humano, mas sim uma particularidade do
pensamento ocidental.
Por volta de meio século depois das investigações de Malinowski,
Michel Foucault promoveu uma das principais críticas no sentido da
desconstrução da ciência. O autor levou a já exposta ideia de Marcel Mauss (de
que as técnicas do corpo seriam constituídas de um treino social) ao extremo.
Afirma que não apenas os movimentos corporais são construídos socialmente e
incutidos nos indivíduos, como também o próprio corpo é construído
politicamente.
Para ele, absolutamente nada existe anteriormente ou
externamente ao discurso humano. Toda a suposta realidade concreta só seria
concebida pelos indivíduos a partir do "saber", sendo que esse saber
é entendido pelo autor como uma relação de poder que designa, nomeia e confere
sentido a todas as coisas. Sua ideia central é a de que não existe uma
"natureza natural", ou seja, uma realidade anterior ao saberes e aos
discursos humanos. Um bom exemplo nesse sentido é pensarmos que o câncer é uma
enfermidade que tem uma presença relativamente recente no léxico da medicina.
Antigamente, as pessoas que hoje dizemos que morreram em sua decorrência,
morriam porque estavam velhas ou simplesmente sem que se soubesse o porquê.
Apenas a partir do reconhecimento da existência dessa doença pela comunidade
científica é que o câncer passou a existir no linguajar e no pensamento das
pessoas. Da mesma maneira, os sintomas que hoje interpretamos como doença de
Alzheimer ou como outras demências degenerativas eram simplesmente sinais de
velhice, sem possuírem um sentido particular.
O essencial que os dois exemplos pretendem sugerir é de que
apenas quando há um reconhecimento na sociedade de que certo elemento tenha um
determinado sentido, que isso passa a estruturar a vida social e fazer parte da
interpretação comum. Além disso, o reconhecimento dos sentidos das coisas (e
também o reconhecimento da existência das próprias coisas) se realiza por meio
de uma relação de poder. Assim, o saber ou o conhecimento, para Foucault, é
sempre permeado por uma força porque designa positivamente o sentido das
coisas.
Até esse ponto, deve ser coerente dizer que a teoria do
autor implica em uma profunda crítica ao sentido da ciência, uma vez que nega
seu aspecto de saber absoluto, neutro e apolítico, enfatizando a questão do
poder que envolve diretamente todo o conhecimento que existe. Para essa
concepção, ciência não é um aparato de técnicas imparciais, que descobre a
realidade externa, imutável e objetiva. Muito pelo contrário, o argumento de
Foucault sugere que a realidade que nos aparece como objetiva é, na verdade,
construída por um saber inundado de poder.
Nesse mesmo sentido, a medicina seria um saber
institucionalizado que implica em um controle dos corpos dos indivíduos na
mesma medida em que impõe o sentido desses corpos. Assim, podemos começar a
pensar na natureza supostamente diferente dos corpos femininos e masculinos
como uma ideia longe de ser natural.
Para ilustrar a concepção foucaultiana de ciência, Heloisa
Buarque de Almeida explica como ao longo da história da medicina diversos
aspectos do corpo humano foram responsabilizados por determinados comportamentos.
"No final do século XVIII, como mostra a autora Magali Engel, o
comportamento feminino é imputado aos ovários. Quando a mulher é vista como
tendo alguma perturbação mental, como louca ou como promíscua, o protocolo é
tirar os ovários, mesmo que aparentemente estivessem saudáveis".
Depois, conforme completa a antropóloga, o útero surgiria
como o maior culpado pelos problemas emocionais, e a forma de tratamento mais
comum para os chamados desvios mentais se tornaria a extirpação desse órgão.
"Já por volta dos anos 1940-1950, ganha proeminência a ideia dos
hormônios. Aparece na medicina que o comportamento chamado masculino é gerado
pela testosterona, que passa a explicar a virilidade, tanto do ponto de vista
da potência sexual, quanto de um comportamento agressivo e dominador dos
homens. Essa visão também explica o comportamento mais afetivo e carinhoso das
mulheres como sendo algo gerado pelos hormônios", desenvolve.
Hoje em dia, nem mais os hormônios e tão pouco os órgãos
reprodutivos: a força explicativa da ciência estaria na ideia dos genes, que
passa a ser a causa maior da diferença sexual. "Os médicos indicam
aspectos biológicos como determinantes do comportamento, mas esse lugar da
natureza parece estar sempre mudando", finaliza a antropóloga.
Na mesma trilha de Foucault, Thomas Lacqueur dá forma ao
argumento do filósofo. Em seu livro Inventando o Sexo, o autor, a partir de um
levantamento de manuais de medicina e de outros escritos do campo afirma que
até meados do século XVIII havia uma concepção de sexo único, "no qual
homens e mulheres eram classificados conforme seu grau de perfeição metafísica,
seu calor vital ao longo de um eixo cuja causa final era masculina."
Assim, segundo esse modelo que imperou até não muito tempo
atrás, homens e mulheres não eram considerados fisicamente diferentes. Sua
diferença era apenas em grau (homens tinham maior calor vital e maior
perfeição). Essa concepção se manifestava nos manuais de medicina de tal
maneira que não era descrita nenhuma forma de distinção anatômica entre os
sexos. A convergência também se exprimia no fato de haver uma mesma
nomenclatura para os órgãos que hoje são considerados específicos de cada um
dos sexos. Lacquer afirma que "durante milhares de anos acreditou-se que
as mulheres tinham a mesma genitália que os homens", com a diferença de
que a genitália feminina ficava dentro do corpo, enquanto que a masculina era
externa. Os lábios vaginais eram considerados equivalentes ao prepúcio
masculino, o útero era a mesma coisa que o escroto e os ovários seriam uma
transposição dos testículos.
Impressiona na descrição de Lacqueur que essa maneira de
conceber os corpos como iguais prevaleceu à prática da dissecação, evidenciando
que não se tratava de um conhecimento baseado na impossibilidade de ser enxergar
os órgãos, mas sim em uma forma de olhar e de interpretar o corpo diferente da
que impera atualmente.
Também bastante revelador desse modelo de sexo único é a
ideia de que sendo a diferença entre homens e mulheres apenas de grau e não de
natureza, poderia haver uma mudança de sexo: "as meninas podiam tornar-se
meninos, e os homens que se associavam intensamente com mulheres podiam perder
a rigidez e definição de seus corpos perfeitos, e regredir para a
efeminação". Lacqueur apresenta um relato médico do século XVI que atesta
para a possibilidade de se transitar entre os sexos: uma pessoa identificada
até então inquestionavelmente como menina passa a apresentar um "pênis e
um escroto externo".
O caso que seria explicado hoje como um exemplo de intersexo
(ou seja, de um indivíduo que possui o aparelho reprodutor ambíguo e que pode
desenvolver novos órgãos na adolescência) foi considerado, naquela época, como
a prova da possibilidade de mudança sexual. Essa anedota evidencia que,
diferente do que normalmente pensamos, não é a simples visão dos corpos que
condiciona a teorização que se fará sobre eles posteriormente; é o modelo
corrente na sociedade que determinará a imagem que nossos olhos farão do que
está em nossa frente.
No dia 13 de dezembro de 2010, faleceu a socióloga,
professora e pesquisadora Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, reconhecida
internacionalmente por seus estudos sobre as questões de gênero e direito das
mulheres. Professora da Unesp e da PUC -SP, Heleiteh Saffioti publicou o livro
Gênero, Patriarcado e Violência (Fundação Perseu Abramo, 2004) .
Um mundo pós-gênero?
A filósofa Judith Butler em sua obra Problemas de Gênero,
agrega aspectos do pensamento de Foucault e de Lacquer para afirmar que gênero
é sempre um ato performativo, que se constitui apenas nas o feminino e o
masculino. Assim, travestis e drag queens evidenciariam a natureza performática
do feminino e sua artificialidade, inclusive nas mulheres.
Para a autora, se gênero é performance, longe de se
desenvolver livremente, é regulado por uma matriz que pressupõem coerência
entre o sexo biológico, as atuações de gênero, o desejo e a prática sexual.
Assim, pessoas com a genitália feminina devem ser mulheres que têm desejo por
homens e que devem manter relações sexuais e afetivas exclusivamente com o sexo
oposto.
Além disso, não seria possível em nossa sociedade a
inexistência de qualquer performance de gênero pelos indivíduos, uma vez que o
pensamento ocidental, além de incapaz de aceitar as descontinuidades e
incoerências provenientes das subjetividades que não se adéquam à norma, também
seria inábil em parar de localizar os sujeitos em relação às opressoras
categorias de feminino e masculino. Assim, mesmo que os indivíduos subvertam
alguns aspectos dessas regras, ainda estariam se posicionando em relação a
elas.
Apesar da visão antropológica que propõe uma igualdade
radical entre os sexos, Butler parece apontar para uma dificuldade em nos
desvencilharmos das categorias de gênero, que seriam ordenadoras de nosso
pensamento. A persistência se afirma em um mundo que, ao mesmo tempo em que
muda, continua reiterando as barreiras entre homens e mulheres.
Ainda assim, mesmo que a crítica da Antropologia não
implique em uma verdadeira libertação das amarras mais profundas em relação aos
papéis de gênero - tão pouco no fim da opressão das subjetividades humanas
dissidentes e na aceitação das múltiplas formas de sexualidade -, a disciplina
fornece, certamente, um intenso estímulo ao nosso pensamento e à nossa
capacidade de conceber um mundo diferente daquele que se apresenta aos nossos
olhos, especialmente a partir do contato com outras realidades culturais que
nos maravilham com suas vastas possibilidades.
Judith Butler » Filósofa norte-americana e professora da
Universidade de Berkeley, contribuiu decisivamente para os estudos sobre gênero
e teoria feminista. Seu livro Problemas de Gênero é tido como uma obra
fundamental sobre a questão. É desde 2007 integrante da American Philosophical
Society.
O contraponto da psicanálise
As teorias antropológicas sobre gênero em alguns momentos
concorrem e em outros se completam com as perspectivas de outros campos do
saber como, por exemplo, o da História, o da Filosofia, o da Psicologia e o da
Psicanálise. Esta última oferece uma série de reflexões sobre a formação da
personalidade, inclusive em sua interface com o gênero. Em uma conversa com a
psicóloga e psicanalista Magdalena Nigro, professora do curso de especialização
em Sócio-Psicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo,
tentamos nos aproximar da teoria psicanalítica:
Homens e mulheres são diferentes do ponto de vista
psicológico?
Cada ser humano possui uma estrutura de personalidade
própria. Segundo Freud, essa estrutura é composta pelo "id",
"ego" e "superego". O "id" é o domínio da pulsão,
do desejo. Porém, a realidade impõe limitações à satisfação do desejo, por
exemplo, por meio das experiências de espera. Dessa maneira, do confronto do
"id" com a realidade forma-se o "ego", que inicialmente é
algo corporal e depois se torna uma estrutura psíquica. Já o
"superego" é uma consequência do Complexo de Édipo e introduz a lei
na vida da criança. Porém, a estruturação da personalidade ocorre de forma
única em cada sujeito. Assim, as diferenciações de gênero aparecem ao longo do
desenvolvimento do sujeito, em função desse processo de estruturação da
personalidade.
Então, não nascemos sujeitos com gênero. Há um processo que
causa essa diferenciação?
Nascemos com diferenças anatômicas. O corpo do homem e o
corpo da mulher são diferentes. Mas a identidade de gênero, masculina ou
feminina, é algo que no entendimento da psicanálise vai sendo construída ao
longo do tempo, como consequência das vivências do sujeito na vida familiar e
social.
Como as teorias psicanalíticas entendem o processo dessa
diferenciação?
O bebê quando nasce recebe um nome de mulher ou de homem,
segundo seu sexo biológico. Dessa forma será identificado como sendo do sexo
feminino ou masculino. Porém, a identificação sexual e a identidade de gênero
serão constituídas a partir das identificações, fundamentalmente, com o pai e
com a mãe. Imitando o pai ou a mãe, brincando de professor/a, médico/a, etc., o
menino e a menina ingressam no universo do feminino e do masculino por meio da
identificação com essas figuras. No final do complexo de Édipo, a menina se
identifica com a mãe, como mulher, e o menino com o pai, enquanto homem. Assim,
projetam-se no futuro, para fora de sua família original, como homem ou mulher,
iniciando seu caminho para a feminilidade ou masculinidade.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão
da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. São Paulo:
CosacNaify, 2007.
MAUSS , Marcel. "As técnicas do corpo". In:
Sociologia e Antropologia. São Paulo: CosacNaify, 2003.
MEAD , Margareth. Sexo e Temperamento. São Paulo:
Perspectiva, 2000.
Disponível em
http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/33/artigo208724-1.asp.
Acesso em 25 jul 2013.