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sábado, 27 de setembro de 2014

O anonimato nas redes sociais

Gisele Meter
  
Engana-se quem acredita que as redes sociais só existem por causa da tecnologia. O termo rede social está relacionado a interação social e é exatamente por meio dessa troca que se constituiu o que hoje chamamos de sociedade.

Participar de uma rede social é sentir-se pertencente e atuante em seu meio, seja pela expressão de ideias, exposição de pensamentos e ou até mesmo pela avaliação de determinado comportamento de alguém do grupo.

Interagir socialmente é necessário na medida em que estamos em constante evolução. Grande parte dessa transformação pessoal também é “injetada” em nossa subjetividade por meio da socialização com outras pessoas.

Com o advento tecnológico nos foi permitida uma interação social que independe de fronteiras, pois o acesso à Internet possibilitou a derrubada de barreiras espaciais e temporais em prol desta interação, formando uma linha tênue que hoje separa a vida real da virtual.

A popularização da Internet ocorreu na década de 1990, quando os e-mails faziam a função de conectar pessoas. A partir de então, houve uma dinâmica no sentido de estarmos cada vez mais em contato com outros indivíduos de maneira abrangente. Surgiram, assim, os chats – ferramentas para conversa em tempo real através de dois computadores. Desde aquela época o anonimato já era comum em salas de bate-papo de grandes sites. Pessoas se identificavam com um nickname sem a necessidade de revelar suas identidades verdadeiras.

Os chats passaram a conectar pessoas. No entanto, começaram a perder força para seus sucessores: Mirc, ICQ, que posteriormente foram substituídos pelo MSN Messenger e outros do gênero. A utilização destes programas permitia não somente que fizéssemos interação social, mas que também constituíssemos nossa própria rede de contatos, utilizando nomes verdadeiros e identidades reais.

A evolução da comunicação virtual, a cada nova atualização, provocou migrações em massa. O fato foi constatado expressivamente em 2003, com o surgimento da primeira rede social denominada MySpace que no ano seguinte, foi praticamente engolida pelo Orkut (2004) e que, consequentemente, também foi quase extinta com o surgimento do Facebook (2004), Twitt er (2006) e Instagram (2010). No entanto, o que todas tinham em comum, além de serem redes sociais, era a necessidade de utilizar a identidade real para assim constituir também a sua identidade virtual interativa.

Em 2007, com a popularização dos smartphones no Brasil, as redes sociais ganharam mais força, sendo utilizadas amplamente via dispositivos móveis para a conexão social virtual, não sendo mais necessário estar diante de um computador para interagir com outras pessoas.
Desde o surgimento de chats anônimos no início da Internet até hoje, com a conexão via celular a qualquer hora e em qualquer lugar, podemos perceber como a questão da identidade é relevante no mundo virtual.

Em 2013, ocorreu novamente outra dinâmica de configuração que veio para intrigar até mesmo grandes especialistas da área tecnológica. Houve, assim, um boom de programas que têm sua interação exclusivamente permeada pelo anonimato.

Atualmente, parece que esse tema retornou com força total, desafiando não somente a lógica evolutiva das redes sociais, mas também da própria interação humana, pois a identidade se resigna a um segundo plano, priorizando novamente a não-identidade para o estabelecimento tanto de relações como de interações sociais.

Avaliação virtual

A diferença do anonimato do início da Internet para o que estamos presenciando hoje se baseia, principalmente, na forma de interação.

Se anteriormente as pessoas utilizavam o anonimato para conversas, hoje elas utilizam também para emitir opiniões sobre outras pessoas, avaliando, expondo e deixando registrado o que pensam para quem quiser ver. Logo, conversas que ficariam restritas a um pequeno grupo passam a ter abrangência assustadoramente incalculável.

Com a popularização dos smartphones no Brasil, as redes sociais ganharam mais força, sendo utilizadas amplamente para a conexão social virtual

Essa prática ficou ainda mais evidente com o surgimento de aplicativos sociais para dispositivos móveis. Prova disso foi o frisson causado no final de 2013 pelo aplicativo feminino denominado Lulu, que até a data do fechamento deste artigo encontrava- se indisponível para download nas lojas AppStore e Google Play. No Brasil, tal aplicativo teve por objetivo o compartilhamento anônimo de informações e percepções acerca de outro indivíduo, no caso, do sexo masculino. Sem o seu conhecimento ou tampouco o seu consentimento, o que causou grande insatisfação de muitos homens no país, cuja exposição em tal programa “puxava” informações de outra rede social (Facebook), exportando-as para a sua plataforma, e era feita por meio avaliações com notas ou hashtags. Caso volte ao ar, algumas mudanças deverão ser feitas, como manter no sistema somente usuários que autorizem fornecer suas informações.

Pensadora contemporânea
Filósofa política alemã de origem judaica, Hannah Arendt é uma das mulheres mais influentes do século XX. Seu trabalho abarca temas como a política, a autoridade, o totalitarismo, a educação, a condição laboral, a violência e a condição feminina. Seu primeiro livro leva o título O Conceito do Amor em Santo Agostinho: Ensaio de uma interpretação filosófica. Trata-se de sua tese, editada em 1929 em Berlim, na qual ela enlaça elementos da Filosofia de Martin Heidegger com os de Karl Jaspers e já enfatiza a importância do nascimento, tanto para o indivíduo como para seu próximo. Em As Origens do Totalitarismo (1951) consolida o seu prestígio como uma das maiores figuras do pensamento político ocidental. Hannah assemelha de forma polêmica, como ideologias totalitárias, o nazismo e o stalinismo. Faz isso com uma explicação compreensiva da sociedade, mas também da vida individual, e mostra como a via totalitária depende da banalização do terror, da manipulação das massas, do acriticismo face à mensagem do poder.

O que chama a atenção, no entanto, é a dinâmica assumida por essas novas plataformas sociais que têm por objetivo não mais somente a interação voltada para o encontro social, mas também a intenção de impactar diretamente a construção da identidade virtual de um indivíduo.

Dessa forma, aplicativos de avaliação virtual favorecem a dinâmica de um comportamento que em uma situação não-virtual da vida cotidiana poderia não ser observado. Isso ocorre porque muitos desses aplicativos usam, justamente, o subterfúgio do anonimato para estimular a avaliação indiscriminada de outros indivíduos, estando quem avalia protegido por uma espécie de máscara, permitindo que possa exercer seu próprio crivo virtual sem nenhum tipo de receio ou culpa. Afinal, a consequência de suas atitudes não voltará para essa pessoa. Ao privilegiar o anonimato em aplicativos sociais, há uma estimulação do comportamento impulsivo sem a devida reflexão de suas consequências.

A conduta fica a critério do bom senso dos usuários que fazem suas próprias regras virtuais, independente dos danos que poderão causar

Além disso, quando avaliamos virtualmente outras pessoas sob uma única perspectiva, tendemos a acreditar que nossas avaliações são apenas virtuais e que, de certa forma, não prejudicaria o outro de forma real e efetiva. É como se, além do anonimato, colocássemos também um véu de deturpação da realidade sobre as consequências de nossos comportamentos, acreditando não estar fazendo mal a ninguém e, assim, enganando a nós mesmos.

É preciso refletir sobre essas ferramentas com um olhar mais crítico para entender o que elas podem impactar em nosso meio. Quando não pensamos nas consequências de nossos julgamentos, tendemos a dissipar a culpa, pois existe a ilusão de que as avaliações proferidas não passam de uma mera brincadeira.

PARA SABER MAIS
Brasileiros e smartphones
Segundo uma pesquisa realizada pela Nielsen provedora global de informações e insights sobre consumidores no ano de 2013, smartphones para os brasileiros servem mesmo é para navegar por redes sociais. O estudo indicou que 75% dos usuários desses dispositivos digitais usam o aparelho primariamente para acesso a redes sociais. O uso ultrapassa a Rússia (59%), Índia (26%), China (62%) e até mesmo os Estados Unidos (63%). O Brasil, hoje, já é destaque pela expressiva participação nas redes sociais, e isso foi replicado no mundo móvel, pois algumas pessoas veem smartphones como uma extensão da conexão à Internet, e outras, ainda, têm os dispositivos móveis como seu único ponto de contato com o mundo digital.

Quando avaliamos virtualmente outra pessoa, estamos não somente julgando seu comportamento ou a sua forma de ser, mas também acabamos por deixar registrada a realidade a partir de experiências pontuais que acreditamos ser uma verdade absoluta, e isso é feito a partir de uma única perspectiva – a do avaliador anônimo. Impulsionadas pela euforia e pelo falso poder de fazer o que desejarem sem serem descobertas, essas pessoas raramente param para pensar sobre o uso da rede em si e quais as consequências que isso pode causar. É como se fosse um movimento egoísta, com o intuito de afetar o outro de forma intencional, e, ao mesmo tempo, um passatempo sem grandes implicações.

É ilusório acreditar que aplicativos de avaliação social não impactam a subjetividade ou a construção da identidade de um sujeito. A partir do momento em que tecemos considerações sobre uma pessoa, baseados naquilo em que percebemos, vivemos ou observamos, estamos deixando de pensar no impacto social de nossas ações, e exercendo o que a teórica política alemã Hannah Arendt chama de mal banal. Ou seja, tomando atitudes que possam prejudicar outras pessoas, sem efetivamente refletir sobre as consequências do ato praticado.

Quem avalia normalmente acaba manifestando comportamentos que, se revelados no mundo real, poderiam não ser aceitos como adequados, logo a importância do anonimato.

É ilusório acreditar que aplicativos de avaliação social não impactam a subjetividade
ou a construção da identidade de um sujeito

Dessa forma, quando uma pessoa avalia outro sujeito sem refletir sobre o mal que pode causar à sua subjetividade ou a seu processo de socialização, acaba por tolher, tanto de forma virtual como real, a potencialidade de ser da pessoa que é avaliada. Isso porque, quando colocamos uma informação na Internet, independente de qual seja, não temos como mensurar suas consequências.

O que ocorre, no entanto é que, hoje, não existe praticamente nenhuma regulação ou norma de conduta efetiva em relação a redes sociais que permita que um usuário interaja anonimamente. É o caso de aplicativos como o “Secret” e o “Whisper” – em que as pessoas utilizam o subterfúgio do anonimato para expor o que pensam sem que os outros fiquem sabendo de onde ou de quem partiu tal informação.

A conduta, por sua vez, fica a critério do bom senso dos usuários que fazem suas próprias regras virtuais, independente dos danos que poderão causar. Afinal, para todas as vantagens individuais que tais programas trazem, sempre existirá um impacto social potencialmente prejudicial para um grande número de pessoas, tanto subjetivamente quando do ponto de vista interacional.

Comportamentos

A comunicação indiscriminada e anônima através de programas ou aplicativos na Internet tende a fomentar comportamentos compulsivos, imediatistas, ansiosos e narcisistas, enfraquecendo consideravelmente os grupos sociais nos quais se está interagindo.

A Psicologia Social entende que a construção da identidade de uma pessoa se dá por meio da interação pela qual o indivíduo exerce um papel atuante e dinâmico, afetando o seu meio e, consequentemente, também sendo afetado por ele.

A comunicação indiscriminada e anônima por meio de programas ou aplicativos na Internet tende a fomentar comportamentos compulsivos

Essa dinâmica ocorre sob diversos fatores, tais como a percepção social que dá significado ao que vemos e sentimos, a comunicação que envolve a codificação e a decodificação para a interpretação das mensagens que emitimos ou recebemos, independente de ser constituída apenas pelo verbal, mas passando por aspectos gestuais, posturais e comportamentais.

Para a interação social também devemos considerar as atitudes que são baseadas em comportamentos como resposta a percepção e comunicação do meio em que se está inserido. Sendo assim, a interação via redes sociais pode ser considerada um fenômeno atual e potencialmente transformador, tanto das relações estabelecidas, como da construção da identidade do indivíduo. Isso porque, apesar das relações sociais serem mediadas por um processo não presencial, a profundidade das relações provoca em cada indivíduo uma sensação real de afetação mediad a virtualmente. O que pode ser comprometedor, pois nem todas as ferramentas de interação estão ao alcance do usuário virtual, e interferir consideravelmente em uma relação baseada na realidade.

Esse novo fenômeno desperta interesse da Psicologia Social devido a forma como estas ferramentas digitais estabeleceram um novo padrão não somente de interação, mas também de percepção entre as pessoas cujo contato físico deixa de ser o principal fator de mediação relacional, e o crivo social passa a ser considerado através de uma perspectiva virtual.

Esta dinâmica de conexão interativa pode impactar diretamente no processo de socialização de cada indivíduo que utiliza a Internet como uma forma de se conectar a um grupo ou até mesmo para se sentir atuante ao meio em que pertence. Se considerarmos a máxima de que o sujeito transforma e é transformado pelo meio em que vive, podemos compreender melhor este paradigma.

Realidade inventada

Quando nos referimos a aplicativos sociais que se baseiam no anonimato como forma de interação, devemos levar em consideração que a ideia de percepção social acaba por ser anulada. Isso ocorre uma vez que a compreensão e a percepção do outro, além de suas características, não nos possibilitam ter uma impressão real permeada por dados observáveis, mas apenas naquilo que acreditamos, baseado em nossas próprias percepções. Ou seja, através de tais ferramentas, podemos afetar também nossa forma de interação.

Diferente da relação social permeada pela identidade do sujeito que em contato com outras pessoas organiza informações e categoriza atos, aplicativos sociais podem distorcer a percepção que temos, sendo esta consideravelmente prejudicada. Além de não sabermos quem são as pessoas que interagem em tal programa, ainda existe uma precariedade na recepção das mensagens. Isso ocorre porque nos utilizamos apenas do sentido da visão para constituirmos a percepção que acreditamos ser realidade.

Aplicativos que utilizam subterfúgios do anonimato potencializam a superficialidade analítica que fazemos de outras pessoas, deixando de considerar nossa capacidade de construção do outro e, consequentemente, de nós mesmos. Fazemos assim uma relação social rasa, superficial e não verdadeira.

Aplicativo Lulu no Brasil
O aplicativo Lulu, que permite que mulheres avaliem anonimamente seus amigos do Facebook e causou polêmica no seu lançamento no Brasil, anunciou duas mudanças na ferramenta, exclusivas para o país. Desde dezembro, somente homens que optarem por participar do Lulu serão avaliados no aplicativo. Além disso, o Lulu permite que os homens tenham acesso à sua nota na brincadeira, informação que até agora estava disponível apenas para mulheres. O Lulu chegou ao Brasil em novembro de 2013 e permite apenas que mulheres deem notas e opiniões anônimas sobre homens. O serviço fez sucesso, mas gerou discussões a respeito da privacidade na Internet e enfrentou ações na Justiça. Todo o barulho, porém, alavancou o Brasil como o país com mais usuários no serviço.

Especula-se que o anonimato nas redes sociais seja uma forma de estimular a interação entre as pessoas alegando ser uma relação “anônima mais humana”. No entanto, se considerarmos os aspectos determinados pela Psicologia Social para o processo de interação percebemos que sua essência pode ser totalmente descaracterizada. Afinal, percepção, comunicação como troca de informações, atitudes que podem ser modificadas com novas informações, afetos ou comportamentos, além do processo de socialização e construção da subjetividade são comprometidos pela superficialidade relacional que acaba por não concluir o ciclo completo de recolhimento de dados, baseando-se somente na “verdade única” exposta em tal programa ou na própria percepção sobre um aspecto de outra pessoa.

Aplicativos que utilizam subterfúgios do anonimato potencializam a superficialidade
analítica que fazemos de outras pessoas

Com a virtualização da linguagem, se observarmos por outras perspectivas, o “aqui e o agora” se perdem, possibilitando “flutuar” entre o tempo e o espaço, e assim uma situação mal-resolvida, por exemplo, um amor não correspondido no passado, pode se transformar em uma “nota” ou comentário baseado apenas naquilo que foi vivido e percebido por uma das pessoas envolvidas. É como se pudéssemos ficar vulneráveis ao que os outros pensam, não tendo assim a chance de nos defendermos ou, ao menos, tentarmos reparar aquilo que foi dito ou vivido.

Pegada digital

Grande parte das pessoas hoje tem algum tipo de informação na Internet. Para comprovar isso, basta digitar um nome qualquer em um site de busca para que as informações apareçam rapidamente na tela. Isto é o que chamamos de Pegada Digital, ou seja, informações registradas na Web sobre uma pessoa.

Ter informações negativas registradas no mundo virtual (independente se são verdadeira) pode afetar diretamente os papéis sociais que um indivíduo exerce, isso porque não há controle sobre elas. Pedro Burgos, em seu livro Conecte-se ao que importa (Ed. Leya, 2014) reforça a ideia de pegada digital, afirmando que as fronteiras entre o online e o offline desapareceram e, hoje, ter um perfil “sujo” na Internet é como andar com uma letra escarlate. É importante que em alguns casos a ideia de esquecimento coletivo exista, defende o autor. Por causa da tecnologia digital, a habilidade da sociedade de esquecer foi suspensa, substituída pela memória perfeita, que pode ser acessada a qualquer momento.

Quando pensamos em contextos históricos, a possibilidade de explorar o passado do homem como uma busca pela resolução de problemas presente é totalmente válida, mas quando falamos de construção de uma subjetividade, a questão pode ser analisada sob outro ponto de vista. É preciso que deixemos que cada sujeito constitua sua própria identidade virtual. Não temos o direito de exercer tamanha influência.

Devemos basear nossa relação social na construção de crescimento e possibilidades e não por meio de julgamentos e percepções individuais que influenciem o meio em que o indivíduo está inserido. Ao analisarmos, julgarmos e tecermos opiniões virtuais, devemos nos conscientizar e assumir a responsabilidade de que estaremos minimizando justamente a potencialidade do ser e a transformação permanente das pessoas.

REFERÊNCIAS
  • BOCK, A. M. B.. Psicologia: uma introdução ao estudo de psicologia, 13. Ed reform e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
  • BURGOS, P.. Conecte-se ao que Importa: um manual para a vida digital saudável. São Paulo: Leya, 2014.
  • 75% dos Brasileiros usam Smartphones para acessar Redes Sociais, disponível em: http://idgnow.com. br/mobilidade/2013/07/02/75-dosbrasileiros- usa-smartphones-paraacessar- redes-sociais/#sthash. PrcOXhCh.dpuf. (acessos em 25/02/2014)

Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/edicoes/100/artigo311476-1.asp. Acesso em 30 ago 2014.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Ficções da mente

Helen Philips
fevereiro de 2007

Em uma das últimas vezes que vi minha avó, ela falou animada sobre o filho que estava longe, estudando na universidade. Parecia absolutamente convicta e muito orgulhosa, apesar de também reconhecer que seu único filho, sentado ao nosso lado, já tinha idade para se aposentar. Sem aparentar confusão ou angústia, seu relato era lúcido e complexo, como se uma história perfeitamente plausível tivesse saltado de algum ponto do passado para o vazio de sua memória recente.

Muitas pessoas idosas desenvolvem gradualmente amnésia para acontecimentos recentes, ao passo que as lembranças da juventude se mantêm ricas e detalhadas. Costumam inventar histórias para esconder seu constrangimento em relação aos lapsos, e em geral têm noção de que sua memória é confusa. Depois de uma série de derrames, o tipo de histórias que minha avó contava era um pouco diferente - os neurologistas as chamam confabulação, uma história ou memória fictícia da qual se tem certeza da veracidade. Não é mentira, pois não há intenção de enganar, e as pessoas parecem acreditar no que estão dizendo. Até recentemente isso era visto apenas como deficiência neurológica, um sinal de que algo está errado. Atualmente, no entanto, sabe-se que pessoas saudáveis também recorrem a essa prática.

"A confabulação é sem dúvida mais que o resultado de um déficit na memória", afirma o neurologista e filósofo William Hirstein, da Faculdade de Elmhurst, em Chicago, e autor do livro Brain fiction, de 2005. Crianças e adultos confabulam quando pressionados a falar sobre algo de que não têm nenhum conhecimento, ou após uma sessão de hipnose. Isso levanta dúvidas sobre a precisão dos depoimentos de testemunhas. Na verdade, todos nós podemos confabular de forma rotineira conforme tentamos racionalizar decisões ou justificar opiniões. Por que você me ama? Por que comprou aquela roupa? Por que escolheu determinada carreira? De forma mais extrema, alguns especialistas defendem que nunca temos a certeza do que é realidade, então precisamos confabular o tempo todo para tentar compreender o mundo à nossa volta.

A confabulação foi mencionada pela primeira vez na literatura médica no final da década de 1880 pelo psiquiatra russo Sergei Korsakoff (1853-1900). Ele descreveu um tipo distinto de déficit de memória apresentado por pessoas que abusaram do álcool ao longo de muitos anos. Esses indivíduos não tinham memória de eventos recentes, e preenchiam as lacunas espontaneamente com histórias algumas vezes fantásticas e impossíveis.

Teste de realidade

O neurologista Oliver Sacks, da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova York, escreveu sobre um homem com a síndrome de Korsakoff em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de 1985. O senhor Thompson nunca lembrava onde estava e por que, ou quem era seu interlocutor, mas inventava explicações elaboradas para as situações em que se encontrava. Se uma pessoa entrava na sala, por exemplo, ele a cumprimentava como se fosse um cliente de sua loja. Um médico de jaleco branco podia se tornar o açougueiro. Para o senhor Thompson essas ficções eram plausíveis, e ele parecia não perceber que elas se modificavam o tempo todo. Comportava-se como se seu mundo improvisado fosse um lugar perfeitamente normal e estável.

Outros que também compartilham o hábito de contar histórias - e acreditar nelas - são aqueles que sofreram aneurisma ou ruptura da artéria comunicante anterior, um vaso sangüíneo cerebral que leva sangue para regiões do lobo frontal. Essas pessoas têm amnésia profunda, mas não parecem notar o problema e confabulam para preencher as lacunas. A mesma coisa pode acontecer com as que têm a doença de Alzheimer e outras formas de demência, bem como com quem teve o cérebro lesionado por um derrame.

O neurologista Armin Schnider, do Hospital da Universidade Cantonal de Genebra, diz que a vasta maioria das confabulações que escutou de seus pacientes até hoje se relacionava de forma direta ao início de sua vida. Um deles, dentista aposentado há décadas, preocupava-se muito pelo fato de deixar seus pacientes esperando. Uma mulher idosa falava do filho como se ele ainda fosse bebê. A maioria desses pacientes tinha lesões nos lobos temporais, especialmente no hipocampo, região estreitamente relacionada à memória. Parecia provável que eles tivessem de alguma forma perdido a capacidade de criar novos registros mnemônicos, por isso passaram a acessar os antigos. Era intrigante o fato de não perceberem isso; estavam convencidos de suas histórias, alguns até agiam com base nelas.

Estudando mais detalhadamente o funcionamento mental dessas pessoas, Schnider observou que elas realmente se lembravam de muito pouca coisa. Se lhes fosse pedido que decorassem uma lista de palavras, meia hora mais tarde não recordavam de nenhuma. Mas o problema seria criar novas memórias ou acessá-las mais tarde? Para responder a questão, Schnider mostrou a cada pessoa uma série de imagens e pediu que apontasse sempre que alguma delas aparecesse pela segunda vez.

Falharam na tarefa todos os amnésicos que não confabulavam e apenas alguns que criavam ficções. A freqüência de acertos foi maior nos confabuladores considerados "avançados".

O fato mais revelador do experimento surgiu quando Schnider o repetiu uma hora mais tarde, usando as mesmas imagens, mas em ordem diferente, alterando inclusive as que eram repetidas. O pesquisador pediu aos participantes que apontassem as novas repetições, sem levar em conta a sessão anterior. A pontuação dos amnésicos que não inventavam histórias foi idêntica à da primeira sessão, mas desta vez os confabuladores tiveram desempenho muito pior. Era comum dizerem que determinada imagem já havia aparecido antes na segunda sessão, quando na verdade eles a tinham visto no teste anterior. Assim, o problema dos confabuladores não é necessariamente não conseguir criar novas memórias, mas confundir lembranças e instante presente. "Eles parecem ser incapazes de suprimir recordações irrelevantes para a realidade em andamento", diz Schnider.

O pesquisador acredita que todos temos um mecanismo pré-consciente que distinguiria a realidade atual da fantasia, ou de uma memória sem grande importância. "O cérebro decide muito antes de o pensamento se tornar consciente", diz. Seus estudos usando eletroencefalografia (EEG) indicam que, quando os indivíduos capazes de suprimir memórias irrelevantes vêem as imagens na segunda sessão, um padrão de atividade característico ocorre em 0,2 a 0,3 segundo. Entretanto, eles levam o dobro do tempo para ter consciência do que está acontecendo. O processo de decisão, rápido demais para a percepção, também se dá de forma inconsciente. "Nosso cérebro distingue fato de ficção bem antes de termos acesso aos nossos pensamentos", conclui Schnider. A confabulação pode resultar da incapacidade de reconhecer quais memórias são relevantes, reais e atuais. "Mas essa não é a única razão pela qual as pessoas inventam histórias", pondera William Hirstein. Segundo ele, a maior parte dos confabuladores são pessoas que têm ilusões ou falsas crenças sobre a própria doença (ver Mente&Cérebro, no 162, pág. 33.)

Embora surpreendente, é comum que, alguns dias após um derrame, muitos pacientes se neguem a acreditar que algo de errado aconteceu, mesmo quando estão com membros paralisados ou até cegos. Então inventam histórias elaboradas para explicar seus problemas. Uma das pacientes de Hirstein, por exemplo, tinha o braço esquerdo paralisado, mas acreditava que ele funcionava normalmente. Dizia que o membro deitado ao lado dela não era de fato o seu. No momento em que Hirstein apontou a aliança de casamento, ela disse com horror que alguém a havia pegado. Quando o médico pediu que a paciente provasse que nada havia de errado com seu braço esquerdo, ela disse que estava passando por uma crise de artrite.

Trabalhando com pessoas na mesma situação, o neurocientista Vilayanur Ramachandran, da Universidade da Califórnia em San Diego, ofereceu-lhes uma quantia em dinheiro como recompensa por tarefas que eles seguramente não podiam realizar, como bater palmas ou trocar uma lâmpada. Tarefas para as quais eles eram capazes eram pagas com quantias menores. Os pacientes sempre se ofereciam para as que pagavam mais, como se não tivessem a menor idéia de que iriam falhar.

Uma condição rara pode fazer as pessoas confabularem de forma ainda mais complexa. Depois de um derrame, algumas manifestam a síndrome de Capgras, cuja principal característica é a de acreditar que seus parentes próximos tenham sido substituídos por impostores disfarçados (ver "Invasão dos sósias". Mente&Cérebro, no 143, dezembro de 2004.) Para se justificar, inventam histórias de abdução por alienígenas e as mais estranhas conspirações. Em casos extremos, deixam de se reconhecer no espelho, ou acreditam que todos estão mortos. Para cada situação, confabulam para explicar os absurdos.

O que todos esses distúrbios têm em comum é uma discrepância aparente entre percepção e sentimentos do paciente, e a informação que recebe. "Em todos os casos a confabulação é um problema de conhecimento", diz Hirstein. Quer seja uma lembrança, uma resposta emocional ou uma imagem corporal perdida, se o conhecimento não está lá, algo preenche a lacuna.

Uma região do cérebro chamada córtex órbito-frontal (COF), situada nos lobos frontais, pode ajudar a entender o fenômeno. Também conhecido como parte do sistema de recompensa, o COF nos induz a fazer coisas prazerosas ou buscar o que precisamos. Hirstein e Schnider sugerem, entretanto, que esse sistema teria papel ainda mais básico. Essa e outras regiões frontais estariam ocupadas monitorando as informações geradas por nossos sentidos, memória e imaginação, suprimindo o que não é necessário e definindo o que é compatível com a realidade e relevante.

Segundo o neurocientista Morten Kringelbach, da Universidade de Oxford, esse rastreamento da realidade nos permite classificar tudo objetivamente para que possamos definir nossas preferências e prioridades.

Pessoas que confabulam podem ter lesões no COF, o que significa não receber toda a informação ou não a classificar corretamente. Outra possibilidade é haver lesões em outras regiões que se comunicam com essa área do cérebro. De qualquer forma, quando a informação recebida é incompleta ou contraditória, há um esforço extra para fazer as coisas se encaixarem - e o resultado disso é a ficção. Kringelbach suspeita, porém, que as pessoas não confabulam apenas quando há algo errado.

Experimentos feitos pelo filósofo Lars Hall, da Universidade de Lund, Suécia, desenvolveram ainda mais essa idéia. Foram mostrados aos voluntários pares de cartas com retratos. Em seguida perguntou-se qual deles era o mais atraente. Detalhe importante: o sujeito que apresentava o experimento era um mágico profissional e trocava a carta escolhida pela rejeitada, sem que o participante percebesse, claro. Depois o voluntário deveria responder por que escolhera cada retrato. As pessoas usaram argumentos elaborados sobre cor do cabelo, olhar ou personalidade presumida com base no rosto substituído. Ficou claro que todos confabulam sempre que não sabem por que fizeram uma opção em particular. A confabulação poderia ser uma rotina para justificar as escolhas cotidianas? Quem sabe.

Há muitas evidências de que boa parte do que fazemos seja resultado do processamento inconsciente. Em 1985, Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia em San Francisco, sugeriu que um sinal para mover um dedo é "visualizado" no cérebro vários milésimos de segundo antes de alguém estar ciente de que pretendia movê-lo. A idéia de livre-arbítrio pode, portanto, ser mera ilusão. "Não temos acesso a todas as informações nas quais baseamos nossas decisões, por isso criamos ficções para racionalizá-las", diz Kringelbach. Segundo ele, isso deve ser bom, pois talvez ficássemos paralisados se fôssemos cientes de como tomamos cada decisão. Wilson concorda e fornece números: estudos indicam que nossos sentidos podem captar mais de 11 milhões de fragmentos de informação por segundo, ao passo que a estimativa mais otimista sugere que apenas 40 sejam percebidos conscientemente. Talvez tudo que nossa mente faça seja imaginar histórias para entender o mundo. "Fica em aberto a possibilidade de que, no extremo, todo mundo confabule o tempo todo", diz Hall.

Lembranças confusas

A tendência de confabular pode causar preocupação quando o assunto é a psicologia do testemunho. Com que facilidade histórias inventadas se convertem em falsas memórias? A psicóloga Maria Zaragoza, da Universidade Estadual Kent, em Ohio, mostrou um vídeo a um grupo e depois fez perguntas individuais com a resposta sutilmente sugerida na própria pergunta. Quando os indivíduos não conseguiam responder - porque a informação simplesmente não estava na fita -, a pesquisadora os encorajava a inventá-la. As pessoas ficavam constrangidas, diziam que não sabiam e estavam apenas inventando uma resposta. Uma semana depois, porém, mais da metade confirmou suas declarações falsas como se fossem verdadeiras.

Outro estudo revelou que crianças se comportam da mesma maneira. Quando perguntaram a elas se o homem da manutenção, que elas viram numa sala de espera, havia quebrado algo que na verdade nem havia tocado, todas disseram que nada viram ou que o homem não tinha culpa de nada. Então se pediu que elas inventassem uma história na qual ele havia quebrado coisa alguma. Na semana seguinte, muitas crianças acreditavam em suas próprias mentiras. Assim como nos adultos, o efeito foi mais evidente quando o pesquisador forneceu um feedback positivo, dizendo à pessoa que a resposta inventada era a correta.

Para Zaragoza, esses resultados alertam para a forma como os testemunhos judiciais são feitos e colocam em xeque sua credibilidade. Pelo mesmo motivo o uso da hipnose como técnica forense foi muito criticado nos anos 80. Nessa época a psicóloga Jane Dywan, da Universidade de Brock, em Ontário, conduziu um estudo no qual mostrou fotos a cada participante e depois testou sua capacidade de recordar nos dias seguintes. Uma semana depois, hipnotizou os mesmo sujeitos e perguntou o que conseguiam lembrar. Todos tiveram mais recordações do que antes, mas quase todas eram falsas. Segundo Dywan, a hipnose aumenta o foco de atenção e a facilidade com que as informações vem à tona, e isso pode nos dar maior familiaridade em relação às memórias falsas, que normalmente só teríamos com as verdadeiras. "Combine essa confiança a uma maior capacidade de lembrar e teremos uma situação perigosa", diz a psicóloga.

Representação do ...

As letras X, P, e Z fora dos quadrados indicam eventos, e as de dentro representam traços de memória. Segundo o modelo proposto pelo pesquisador A. Schnider, o tamanho de cada uma equivale a sua relevância. Em pessoas saudáveis, novas informações adquirem alta relevância na representação cortical (X) e geram associações mentais. Algumas perdem conexão com a realidade corrente e tornam-se fantasias. As informações subseqüentes (P, Z) tornam-se então altamente relevantes e suscitam novas associações. Já as prévias, sem relação com a realidade corrente, são suprimidas ou desativadas.

Na amnésia clássica, um novo evento também provoca associações, porém o dado assimilado não é retido ou consolidado. O "agora" é representado no pensamento, mas as informações são logo perdidas.

Na confabulação espontânea, as informações parecem provocar associações mentais, mas quando as novas (P, Z) são processadas, aquelas associações prévias não são desativadas. Qualquer traço de memória ativado, pertinente ou não, pode guiar o pensamento e o comportamento.

Fonte: Spontaneous confabulations, disorientation and the processing of "now". A. Schnider, em Neuropsychologia, vol. 38, págs. 175-185, 2000.

Para conhecer mais
O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. O. Sacks. Companhia das Letras, 1997.
Brain fiction. William Hirstein. MIT Press, 2005.
One cause for all confabulations? A. Schnider, em Science, vol. 27, pág. 1262, 2005.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/ficcees_da_mente.html. Acesso em 03 ago 2013.