Igor Zahir
01/10/2013
É com frequência que as pessoas relacionam travestis com
prostituição de rua. Muita gente, ao falar do assunto, menciona de imediato a
cena que se transformou em marca registrada: homens com trajes femininos (e
corpos muitas vezes modificados a base de hormônios) nas esquinas, esperando
clientes em busca de sexo.
O que esquecem é que, por trás disso, há pessoas com vida
própria, que além de serem travestis, cuidam de casa, têm um cotidiano como
qualquer outro e lutam por igualdade social. Pensando assim, a fotógrafa
carioca Ana Carolina Fernandes criou a série “Mem de Sá, 100”. O projeto nasceu
depois de quase três anos de observação da rotina das travestis num casarão
antigo na Lapa, no Rio de Janeiro. A série, que já ficou exposta no Rio, ganha
agora uma mostra na DOC Galeria, em São Paulo, a partir do dia 1º de outubro,
com curadoria de Eder Chiodetto. Marie Claire conversou com Ana sobre “Mem de
Sá, 100”:
Marie Claire: Quando surgiu a ideia de fazer essa série e
com qual objetivo?
Ana Carolina Fernandes: Tudo começou há uns 10 anos. Através
de um amigo em comum, conheci a Luana Muniz, travesti de grande influência no
Rio de Janeiro, sobretudo na Lapa. Ela me convidou para ir a um show de transformistas
em um clube no qual se apresentava. Fui, fiquei fascinada por aquela estética,
mas na época trabalhava como correspondente do jornal "Folha de S.
Paulo" no Rio e não me sentia capaz de desenvolver o projeto com o
envolvimento que gostaria de ter. Fiquei amiga da Luana, nos encontrávamos às
vezes e, em 2008, saí do jornal. Em 2010, nos encontramos para um café, a Luana
me levou para conhecer o casarão onde ela alugava quartos para cerca de 25
travestis na Lapa e decidi que daria início ao projeto. Sempre tive fascínio
pelas travestis, pela estética e universo curiosos (até então bastante
desconhecidos para mim). Mas meu interesse era retratar o cotidiano, não a vida
de prostituição. Em fevereiro de 2011, dei início à série.
MC: Como era a rotina de fotos?
Ana: A ideia inicial era que eu ficasse em um quarto vazio
na casa, para dormir e acordar por lá. Mas isso não foi possível, pois o quarto
foi alugado. Então a Luana me deu passe livre, para entrar e sair quando
quisesse. Eu ia 3, 4 vezes na semana. Passava 2 semanas sem ir. Não era algo
regrado, com prazo. O trabalho foi acontecendo à medida que eu estava lá. Nada
foi pré-concebido, nem a ideia de virar exposição. Quando tive as fotos em
mãos, mostrei para o Eder Chiodetto, que havia sido meu editor na Folha, ele
adorou e passou a ser não só curador como também meu orientador no projeto.
MC: As travestis carregam em sua estética traços masculinos
e femininos. Você acha que por clicá-las em suas rotinas diárias, ao invés de
seu trabalho nas ruas, essas características ficaram mais aparentes?
Ana: Sem dúvida. Esse era o principal objetivo. Geralmente
os fotógrafos, quando estão fazendo trabalhos humanistas, querem dar uma voz a
esses grupos. Mas eu tinha interesse em dar um corpo, e não voz. O que queria
era mostrar a dualidade, a beleza e a sensualidade que tinha certeza de que
existia. Senti necessidade de mostrar essa relação “masculino-feminino” que as
travestis trazem, seja na alma ou no corpo. A intimidade do convívio, com
certeza, facilitou meu objetivo.
MC: Elas ainda lutam por igualdade social ou já não sofrem
tanto preconceito como antes?
Ana: Sofrem muito, sim. A Lapa é uma espécie de gueto, de
refúgio das travestis. Mas você não vê tanto elas fora dali. A sociedade ainda
discrimina muito e a própria família também. É muito comum que os parentes as
coloquem para fora de casa e não as aceitem. Sofrem preconceito, são olhadas de
banda. É um universo à parte.
MC: É um mundo paralelo...
Ana: Com certeza. Tanto que algumas vão para a Europa,
trabalham, mas são poucas. Nem todas sobrevivem emocionalmente porque, além de
viverem à margem da sociedade, vivem num mundo com violência, drogas, HIV.
MC: Drogas e prostituição são realidade dessas travestis?
Ana: Todas as meninas que fotografei são prostitutas. Quanto
às drogas e ao HIV, são coisas tristes, porém presentes na vida de muitas.
Afinal, elas são prostitutas que, querendo ou não, acabam sujeitas ao risco,
além de não realizarem um acompanhamento médico constante. Elas não têm
dinheiro para médicos particulares. A Luana até luta com uma ONG por essa
causa. Ela consegue com pessoas famosas e anônimas um apoio maior para ajudar
as travestis nessa questão da saúde. É algo muito triste porque, quando são
bonitas e bem cuidadas, tem quem queira. Quando estão acabadas pela AIDS ou
pelas drogas, ficam jogadas. O resultado é abandono e degradação.
MC: As travestis que você clicou fizeram cirurgia de mudança
de sexo?
Ana: Não. Elas tomaram hormônios, colocaram silicone, se
vestem e agem como mulher. Mas, no trabalho delas, funciona até aí. Os homens
que as procuram (muitas vezes, ricos, heterossexuais e casados) querem transar
com alguém que tenha características de mulher, mas que na verdade sejam
homens.
MC: Qual o maior sonho delas?
Ana: Encontrar um amor. Casar, ter uma vida digna como a de
qualquer outra pessoa. Inclusive cliquei uma com um travesseiro com o nome
“Cinderela”. Elas têm esse sonho de princesa: alguém que chegue e as tire dessa
vida atual.
MC: Então a prostituição, no caso delas, é uma necessidade?
Ana: Sim, claro. Prostituição das travestis é totalmente
necessidade e não opção. Não existe emprego para travestis em outra área.
Poucas estudaram mais do que o 2º grau. Não fizeram faculdade. Não tem essa
parte de educação, até porque muitas vêm de zonas pobres. Já vi casos delas
trabalharem em outras profissões, enquanto não sabiam da condição delas. Quando
se assumiram, perderam o rabalho. É uma situação muito difícil, delicada, e
elas precisam se manter de alguma forma. Já basta não terem o apoio da família.
A prostituição é uma das poucas opções que restam.
MC: Enquanto você fazia essa série, alguma história te
marcou?
Ana: Duas travestis tinham um relacionamento amoroso há 2
anos e queriam formar uma família. Quer dizer, eram dois homens, que na verdade
eram duas mulheres, que se relacionavam e não se consideravam homossexuais e
ainda queriam adotar uma criança, formar uma família. Outra que me marcou foi
uma que acabou morando na rua, mesmo após ter tido carro e vivido na Europa.
Chegou ao fundo do poço por causa das drogas. Houve também um caso de uma
travesti que morreu de AIDS e a família não queria deixar ela ser enterrada
como mulher. A Luana teve que brigar com a família da garota, pois ela sabia
que ia morrer, e afirmou em vida que queria ser enterrada como mulher.
MC: Você acha que a série vai conscientizar as pessoas e
diminuir o preconceito?
Ana: Acredito que sim. Esse trabalho teve uma enorme
aceitação aqui no Rio, apareceu até em uma revista norte-americana. Só espero
que, com isso, as pessoas abram mais a mente, não tenham ideias tão
pré-concebidas sobre a sexualidade alheia. Acho que estou, sim, conseguindo
isso. Afinal, estamos em 2013, não cabe mais tanto preconceito no mundo, é um
absurdo!
Disponível em http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/10/prostituicao-entre-travestis-e-necessidade-e-nao-opcao-diz-fotografa-carioca.html.
Acesso em 02 out 2013.